— Cahho!, cahho! — seguia um dos meus netos dizendo e apontando o carrinho de fricção que lhe dei, enquanto todos nós na sala, rindo, nos olhávamos com caras de bobos, pois “carro”, a seu modo, estava sendo a primeira palavra que objetivamente pronunciava. Não foi mamãe nem papai, não foi vovó nem vovô. Foi carro. E antes que o colega autoentusiasta venha me culpar por isso, adianto que não tenho nada a ver com a coisa. Ele gosta de carro e boa. Parece que nasceu gostando, tal como eu, então se culpa há, ela é do nosso DNA.
Desde já, com o bebê ainda recém-desmamado, fui incumbido de lhe ensinar a dirigir; tarefa com que sonho. E ensinar a dirigir, a meu ver, não é só ensiná-lo a mover o carro para lá e para cá, como o fazem nas autoescolas, dando só uma noção tosca, básica, o suficiente para conseguir tirar carteira de habilitação e depois sair por aí fazendo besteira. Ensinar a dirigir é, além de ensinar a controlar a máquina, também ensinar a controlar a si mesmo.
Partindo do princípio de que na sua infância ele terá as mesmas tendências que tive na minha, dentre elas a atração pela velocidade, tratei de rememorar como foi que comecei a me relacionar com carros e motos, como foi que aprendi a dirigir, quem me ensinou. Sabendo como eu era, saberei melhor entendê-lo.
E assim foi que me toquei que ninguém, especificamente, me ensinou. Não teve uma pessoa que me colocou na direção e começou explicando do zero, como costuma acontecer com a maioria. Aprendi — e aprendo, porque pretendo continuar a aprender — observando atentamente como o faziam. Até que chegou um belo dia — sim, um belo, ensolarado e calorento dia, eu com uns onze anos, isso lá por 1967 ou 68 —, em que virei para o Dorival, o faz-tudo da fazenda, tratorista, motorista, mecânico etc., e lhe pedi a direção da Kombi em que fôramos buscar mudas de capim Napier num sítio vizinho. Era uma estradinha de terra, vazia, então praticamente não havia risco algum. Além do mais, eu já aprontava misérias com meu mini-bugue, daí que noção de direção eu tinha de sobra. O Dorival sabia que eu não ia socar a Kombi no mato feito um destrambelhado, desde que fosse devagar; e eu prometi que iria devagar, do jeito que ele mandasse.
Ele ponderou que meu pai poderia bronquear, mas diante de minha insistência, do seu sangue-bom, da nossa amizade e da segurança que demonstrei dizendo-lhe “Deixa comigo. Deixa comigo que eu dou conta!”, ele arriscou. Trocamos de lugar e de cara saí guiando direitinho, como se já o tivesse feito diversas vezes. Logo o Dorival apoiou o braço na janela e sossegou, e fomos pra fazenda para continuar o trabalho.
Mas Kombi é moleza guiar. Talvez aprender com ela seja ainda mais fácil do que com o Fusca, carro em que a maioria de minha geração aprendeu. Devido à “cara chata” da Kombi, estando ao seu volante temos a exata noção de sua dimensão. Seus comandos, volante, trambulador de câmbio e pedais, são leves e precisos. Molezinha. A coisa só complicou um pouco quando em seguida tive que guiar o Fordeco. O Fordeco era a picape Ford 1929 do Sr. João Morais, o gerente do gado. Acontece que para ficar mais fácil de eu estar junto ao retiro (curral onde as vacas são ordenhadas), que era um tanto distante da sede da fazenda, construíram para mim um quartinho junto à casa do Sr. João; e era lá que eu jantava maravilhosamente bem e dormia nos finais de semana e férias. Ia para a sede só para mostrar aos meus pais que eu estava vivo e para almoçar.
A ordenha começava cedo, ainda noite fechada, e antes dela saíamos a cavalo para buscar as vacas nos pastos. Essa era a rotina, seja debaixo de nuvens pesadas derramando chuva, seja debaixo de um céu enluarado num frio de lascar. Dureza? Não. Absolutamente, não; era a vida que eu queria viver.
E volta e meia, depois da ordenha da tarde, costumávamos, o Sr. João e eu, ir de Fordeco até a venda tomar uns goles. Ele, goles de cerveja, e eu, guaraná. E assim, sob a luz baça e ondulante de lampiões, o papo rolava sobre vacas e cavalos, terra e capim, e eu aprendia com a sua sabedoria, seu bom senso e sua vasta experiência. Voltávamos já de noite, escutando a tosse crônica do Fordeco em sua luta para vencer as ladeiras da estradinha de terra. Acontece que numa dessas, logo depois dessa tal primeira guiada na Kombi, o Sr. João, sei lá por qual motivo, tomou mais cerveja que de costume e ao sairmos da venda ele nem sabia sob que árvore estacionara o Fordeco. Ficou andando pra lá e pra cá na escuridão.
— Está aqui, Seu João! O Fordeco está aqui — chamei-o. O senhor está meio grogue, deixa que eu guio— falei.
— Guia mesmo? — perguntou.
— Deixa comigo — respondi seguro de mim, enquanto jogava o meu cachorro Zorro, e o Bidú, o cachorro do Seu João, na caçamba de madeira.
Se você quiser criar um homem e não um paspalho, trate de mostrar confiança na criança. Dê-lhe responsabilidades. Assim agia meu pai, assim agia o Sr. João.
— Se você diz que toca ele direito, então que toque — e falando isso o Sr. João ajeitou seu troncudo corpo no banco de molas cansadas do Fordeco, bateu a barulhenta porta, encostou-se nas latas cheias de rebarbas da lateral e baixou o suado chapéu de palha sobre os olhos. Logo ressonava o profundo sono dos bons e justos.
A coisa ficou só entre eu, o Fordeco e a escuridão quase cega, porque não tinha essa regalia de luzinha no teto nem nada. Rolou certa apreensão, mas vamos em frente, na seqüência e no tato. Antes de tudo, pé no freio, para só então embrear e desengatar a marcha, que estava na ré, já que se aquele Fordeco um dia teve um freio de mão, fazia tempo que dele já se esquecera. O câmbio de três marchas à frente é o chamado universal, com 1ª para trás, no lugar onde nos carros atuais costuma estar a 2ª, e com 2ª aonde hoje vai a 3ª. A 3ª no lugar da 4ª. A ré é aonde hoje vai a 1ª. Por décadas essa era a disposição mais comum das marchas, e três bastavam para aqueles motores de pouca potência, mas bom torque desde baixa. Câmbio “seco”, não sincronizado; uma delícia esse câmbio da Ford. A Ford já sabia fazer carro bom de guiar, como esse Modelo A.
Alavanca fina e longa espetada no assoalho, com bola de massa preta para a pegada. Volante grande, também de massa, da largura dos ombros de um homem, para facilitar nossa aplicação de força sobre ele. Era mais largo que os ombros de um menino de onze ou doze anos, então eu o pegava abrindo os braços. Força para isso eu já tinha, força ganha na ordenha das vacas, de pegar bezerro zebu à unha, essas coisas da roça que desde cedo vão dando rigidez a um cara.
Os pedais de embreagem e freio eram grandes como sapatas, e suas hastes, perpendiculares à parte inclinada do assoalho de tábua, se afundavam neste. O pedal do acelerador não era um pedal, mas sim um pino grosso que brotava do assoalho inclinado. Acelerador de curso curto, bem curto, mas tudo bem, porque havia pouco a acelerar. Daí vem a expressão “pé na tábua”, por sinal.
Para dar a partida era ligar a chave no painel e apertar o botão no painel. O sistema elétrico de 6 volts do Fordeco é um sistema preguiçoso. Faz o que tem que fazer, mas o faz a seu tempo, com preguiça, nos deixando claro que está fazendo um esforço danado, e age como se estivesse nos fazendo um favor e não sua obrigação. Se ele conseguir fazer o motor pegar, ótimo, a gente sente que saiu no lucro. Se ele não conseguir, você que se conforme e se vire.
Dessa vez o sistema não se dispôs a me ajudar. No primeiro “nhoc” que o motor de arranque deu já vi que ele não estava a fim de virar os ferros do motor. Apertei a embreagem, para aliviar um pouquinho o peso para aquele miserável, dei outra apertada no botão de partida, e veio um “nhoc” ainda mais fraco do lazarento.
Mas o Seu João sabia bem que não podia contar com a boa vontade do tal 6-volts e havia deixado o Fordeco numa descida. Embreei, meti a 2ª marcha e tirei o pé do freio. Com pouco embalo e um só tranquinho o motor pegou e lá fomos nós. Logo liguei os faróis e sua luz amarelada me mostrou a estradinha. Não tenho certeza se é minha memória que está meio embaçada ou se a luminosidade dos faróis era tão pouca que só se enxergava embaçado, mesmo, mas o que se via era o bastante. Por exemplo, era o suficiente para ver que ora me dirigia para um barranco e ora para o outro, já que a folga da direção era algo como meia volta do volante. Desviar de um trazia a conseqüência de nos apontar para o outro. Buracos e subidas também tinham grandes e imprevisíveis influências no rumo que tomaríamos. Os freios eram mais que pastosos, como manteiga. A ordem para frear não era bem uma ordem, expressa pelo apertar do pedal, mas uma sugestão. De qualquer modo, tocar a 30 ou 40 km/h aquele Fordeco, naquelas condições, exigia concentração e reflexos de um piloto de rali. E com chuva era mais legal ainda.
Só sei que chegamos e sem sangue derramado e sem sustos. Jantamos o saboroso jantar da Dona Manuela – enriquecido com um frango à cabidela que pouco antes fora pego pelo Bidú (era só apontar para o coitado do frango que ela escolhia, que o Bidú corria e o pegava pelo pescoço) – e o Seu João e eu, de barriga cheia, fomos nos recostar no banco de madeira. Os bezerros mugiam respondendo às suas mães, a Lua nascia, e daí veio o assunto da viagem a ela que o Homem pretendia fazer no ano seguinte, 1969.
— O Homem nunca vai pisar na Lua — disse o Sr. João.
— Vai, sim. Tem uma tal de Nasa que está com um foguete que vai levar uns caras pra lá — eu disse.
— Não dá – disse o Seu João – não tem onde pisar. A Lua não é uma bola de pedra, senão ela não ficaria flutuando assim no céu. A Lua é só uma coisa para a gente ver.
Foi o seu modo de dizer o que filósofos mais renomados, complicadamente, disseram, que este mundo material é uma ilusão.
Depois dessa noite virei o motorista oficial do Fordeco. Vou acabar comprando um para passear com meus netos, e boa. Amo esse carro.
AK