Fim de ano, férias se aproximando. Com o objetivo de aumentar seu faturamento, várias oficinas começam a propagandear promoções de “revisões de férias”. Ultimamente, até seguradoras têm entrado nessa, oferecendo descontos e estimulando que seus segurados revisem seus carros antes das viagens das férias de fim de ano. A idéia pode ter uma boa intenção, mas ela esconde mais um dos muitos pontos de deseducação do motorista brasileiro.
Esta prática de revisão de férias é comum e arraigada. É só falar que vai viajar nas férias que amigos e parentes perguntam “revisou o carro para viajar”? Imagino que todos os leitores já tenham ouvido tal recomendação. Pois não deste que vos escreve. Revisão de férias é revisão para motorista desleixado. Quem precisa revisar seu carro para poder fazer uma viagem com segurança não está cuidando dele como deveria.
É notório que em alguns pontos dirigir na estrada é bem mais crítico do que dirigir na cidade. Em caso de acidente, a tendência é que sua gravidade seja muito maior, dada as maiores velocidades envolvidas. Alguns sistemas do carro são mais exigidos, o motor trabalha por um tempo mais longo e sob um regime de carga maior, por exemplo. Uma pane mecânica na estrada também pode tornar-se mais complicada, dada a maior distância a ser percorrida pelo socorro e, para piorar, a possibilidade dela ocorrer em uma região sem sinal de cobertura celular para pedir socorro. Já aconteceu comigo. Um cárter perfurado por uma pedra em uma estrada de terra e tive que andar três quilômetros para conseguir sinal para pedir socorro. Realmente inconveniente.
Para evitar estes dissabores, convencionou-se que deve ser feita a revisão de férias. Estando tudo “em dia”, a chance de algo dar errado diminui. Faz sentido. Porém, parte de um pressuposto incômodo: que se você precisa fazer uma revisão para deixar tudo “em dia”, é porque normalmente seu carro não anda “em dia”.
Existem três tipos de manutenção: preventiva, preditiva e corretiva. A manutenção preventiva prevê a troca de componentes de desgaste a prazos regulares, independente de verificação de sua condição. Ela acontece com componentes de difícil avaliação de seu estado ou que possam apresentar falha de uma vez sem prévio aviso. Desta forma, o componente é trocado por tempo ou por uso (km). Exemplos disso são óleo, filtros e fluido de freio. Troca-se ao passar um prazo ou km, sem verificar se o desgaste de fato ocorreu.
A manutenção preditiva é aquela que avalia o estado do componente para decidir se a troca é necessária. É indicada para componentes que apresentam desgaste gradual, sendo possível avaliar com um teste em que fase da vida útil estão. Exemplos disso são pastilhas de freio e amortecedores. Nas revisões, inspecionam-se estes componentes e só os substituem-se se houverem chegado ao final da vida útil.
A manutenção corretiva é trocar o componente que já apresentou falha. Obviamente é a menos desejável delas, pois, dependendo do que falhou, a parada do veículo já pode ter ocorrido. Além disso, há componentes que, quando falham, ocasionam a falha de outros, fazendo com que a reparação seja mais custosa. As manutenções preventiva e preditiva existem para evitar que sejam necessárias manutenções corretivas. Claro que há manutenções que sempre serão corretivas porque a falha não é previsível: um pneu furado, por exemplo. Não há manutenção que o evite.
Houve um tempo em que revisão de férias fazia sentido. Várias décadas atrás a manutenção era mais freqüente. Trocava-se óleo a cada 2.500 km, limpava-se velas a cada 5.000 km, regulava-se platinado e ponto de ignição a cada 10.000 km, limpava-se carburador nesta quilometragem também, havia componentes da suspensão que necessitavam ser engraxados, o dínamo tinha peças com vida útil limitada, a regulagem das lonas de freio era manual (hoje, nos carros que ainda possuem freio a tambor, ela é automática), enfim, havia muita coisa a ser ajustada em intervalos freqüentes, então fazia sentido “zerar” tudo antes de cair na estrada.
Hoje, graças ao desenvolvimento dos materiais e à eletrônica, a manutenção é muito mais infreqüente. É possível chegar aos 50.000 km em alguns carros trocando apenas óleo e filtros, coisa impensável na década de 1960, o carro deixaria o motorista “na mão” muito antes. Sendo assim, é muito fácil manter o carro sempre “em dia”.
Mantenho meu carro assim: faço manutenção preventiva e tudo que apresenta desgaste ou defeito é imediatamente reparado. Se, a qualquer tempo, eu precisar fazer uma viagem de 1.000 km na urgência, meu carro está em plenas condições para isso, talvez no máximo trocando óleo e filtro de óleo se estes estiverem perto de vencer.
Isto reduz também o custo de manutenção: uma peça trabalhando fora de suas especificações pode sobrecarregar outras que trabalham em conjunto com ela e, se for esperar quebrar de vez para repará-la, o conserto sairá mais caro, fora o dissabor de ficar na rua esperando o guincho, muitas vezes em situações para lá de inconvenientes.
Considero vergonhoso voltar para casa de guincho, um atestado de desleixo, exceto, claro, se for por uma causa que não tinha como ser prevista. Mas se poderia ser evitado por manutenção… Vergonha! Prova de desleixo.
Neste ponto digo que a revisão de férias é a revisão do desleixado. Se o motorista não tem condições de colocar seu carro na estrada a qualquer tempo, é porque vem negligenciando e empurrando com a barriga a manutenção dele. Anda com o carro sem manutenção na cidade porque os riscos envolvidos são menores, aí vai “empurrando com a barriga” a manutenção. Já vi carro com a bateria em fim de vida, com grande dificuldade de girar o arranque, aí eu disse à dona: tem que trocar essa bateria urgente, ela está avisando que vai te deixar na rua. A pessoa respondeu: deixa “virar o cartão” que eu troco (virar o cartão – fechar a fatura para a despesa cair no outro mês). No que repliquei: legal, vamos fazer uma aposta então? O que acontece primeiro, seu cartão virar ou você ficar na rua sem bateria? Foi o suficiente para convencê-la da urgência da troca. Detalhe: já era a segunda vez que o carro quase não ligava. Tem gente que realmente adia até a coisa ser totalmente inadiável.
Bem, e o que é deixar a manutenção do carro em dia? É checar e/ou substituir vários itens de desgaste do carro para evitar que estes venham a falhar. À exceção do óleo, que para a saúde do motor eu gosto de trocar a cada 5.000 km se o uso for severo (atenção, anda e pára é uso severo!!!), uma revisão de vários itens a cada 10.000 km já previne muitos problemas. Fiz uma lista, não é exaustiva, mas tentei que fosse genérica para servir para o maior número possível de casos.
Óleo: se o uso for severo (baixas velocidades, percursos curtos, trânsito intenso), trocar a cada 5.000 km ou 6 meses. Se o uso predominante for em estrada em velocidade de cruzeiro entre 100 e 120 km/h, dá para esticar para 10.000 km. Mas os 6 meses continuam. Troque sempre o óleo e seu filtro, são itens muito mais baratos do que uma retífica de motor.
Freio a disco: A cada 10.000 km é bom olhar o estado das pastilhas. Se estiverem do meio da vida para baixo, troque. Conferir também a espessura do disco, se estiver abaixo da recomendada pelo fabricante, troque junto com as pastilhas.
Freio a tambor: Hoje quase esquecido, principalmente depois do advento da regulagem automática. E, como só é usado na traseira, gasta muito pouco mesmo. Mas a cada 40.000 km é bom abrir os tambores e checar como andam as coisas lá dentro. Lonas abaixo de meia vida pedem troca. Checar os cilindros de roda quanto a vazamentos, se não estiverem úmidos não precisa mexer. Feche tudo e só abra de novo dali a mais 40.000 km.
Fluido de freio: Com o tempo, absorve água e abaixa o ponto de ebulição, podendo vir a ferver em uma situação extrema, como uma descida de serra. Trocar o fluido e fazer sangria do sistema para eliminar todo o ar a cada dois anos. Esse é por tempo, não por quilometragem.
Velas: Esqueça o que alguns fabricantes dizem de durar 40.000 km. Hoje as velas “duram” mais porque as bobinas ficaram mais fortes e agüentam mais desaforo, as antigas “abriam o bico” mais cedo. Só que uma vela desgastada faz a bobina trabalhar em voltagens maiores, o que acelera seu desgaste, além de aumentar as chances de “misfiring” (falha de queima) quando o motor é exigido em alta carga, prejudicando consumo, emissões e podendo encurtar a vida do catalisador. Velas comuns, com eletrodo central de cobre, devem ser retiradas com 10.000 km para acerto da folga e substituídas com 20.000 km. Bobina e catalisador agradecem. Ao mexer nas velas, checar os cabos. Se houver sinais de zinabre em seus contatos, é bom trocá-los.
Velas de irídio realmente duram 50.000 km sem mexer. Velas de irídio e platina (“Laser Iridium”) são feitas para durar 100.000 km. São velas mais caras, mas é um ponto a menos para olhar. De quebra, por terem eletrodo mais fino, proporcionam uma faísca mais precisa, diminuindo as chances de “misfiring”. Eu uso e recomendo. A diferença prática da “Laser Iridium” para a Iridium comum é só a durabilidade mesmo.
Sistema de alimentação: Verificar a cada 20.000 km, checando pressão e vazão da bomba de combustível. Trocar o filtro de combustível a cada 20.000 km. O filtro de ar pode ser limpo com leves batidinhas e LEVE jato de ar no sentido contrário do fluxo com 10.000 km, substituindo-se aos 20.000 km. Não colocar jato de ar forte porque destrói as fibras. Há uma controvérsia em relação à limpeza de válvulas (“bicos”) injetoras, mas eu particularmente recomendo a verificação da equalização e da estanqueidade a cada 40.000 km. Se houver diferença nos volumes (bicos desequalizados), pode-se tentar uma limpeza para equalizá-los. Como o sistema de injeção de auto-ajusta, mais importante que o valor absoluto injetado é a equalização das válvulas injetoras. Não há ajuste que resista a um bico injetando diferente do outro. Se estiverem estanques e equalizados, é só colocar de volta, não é necessário fazer limpeza preventiva. Não se limpa o que não está sujo… Nesta desmontagem a cada 40.000 km para medir os bicos, aproveitar para limpar o corpo de borboleta.
Suspensão: Conferir o alinhamento a cada 10.000 km, se estiver dentro do intervalo especificado não precisa nem mexer. Faça em oficina de confiança, está cheio de empurroterapeuta querendo vender “cambagem” desnecessária. Olhando por baixo do carro, checar estado do escapamento e dos outros componentes da suspensão, além das coifas das juntas homocinéticas. Só trocar o que estiver ruim, nada ali se troca por quilometragem, só troca quando apresenta desgaste mesmo. Esta regra também vale para os amortecedores: não existe essa de “troque os amortecedores a cada 30.000 km”, isto foi uma campanha de marketing de uma empresa de autopeças para aumentar suas vendas. Amortecedores, como os outros componentes da suspensão, se testam e se trocam apenas quando estiverem desgastados.
Iluminação: Uma vez por mês, acender todas as lâmpadas e checar se tem alguma queimada. E só. Uma vez a cada seis meses confira a regulagem de altura dos faróis. Esta é uma coisa que eu faço também antes de pegar estrada se vou dirigir muito à noite. Não custa e os faróis bem regulados são essenciais para a sua visão e para não ofuscar quem vem em sentido contrário. E quando for viajar levar uma lâmpada reserva de cada tipo das usadas em faróis, lanternas, luz de freio e pisca-pisca. Lâmpada não tem validade, mas não escolhe hora para queimar.
Pneus: Calibragem a cada duas semanas, sempre com o pneu frio. Antes de viajar, colocar 3 lb/pol² a mais de pressão. Calibrar junto o estepe, sempre com a maior pressão colocada nos outros pneus. Em relação a desgaste: as marcas de desgaste (TWI – Tread Wear Indicator – Indicador de Desgaste da Banda) indicam que os sulcos chegaram a 1,6 mm (2/32″). Este é o limite permitido pela legislação. Pneus com sulcos menores que 1,6 mm estão legalmente “carecas” e podem fazer com que o policial retenha o carro até a regularização (ou seja, troca dos pneus). Só que este é o limite LEGAL. Com 1,6 mm, os pneus já estão demasiadamente gastos e têm sua capacidade de escoamento de água severamente comprometida. Um vídeo feito pelo site americano Tire Rack comparou o desempenho de frenagem em pista molhada de pneus novos (10/32″ – 8 mm), usados (4/32″ – 3,2 mm) e em fim de vida útil legal (2/32″ – 1,6 mm). Quanto menor a profundidade do sulco, maior a a distância necessária para frenagem. Portanto, não é conveniente, em termos de segurança, esperar que os pneus cheguem ao limite legal para substituí-los. Quando a profundidade de seus sulcos atingir 3,2 mm, é conveniente providenciar a troca, pois o desempenho em pista molhada fica muito comprometido a partir deste ponto.
Preparando o motorista
Em vez de pensar em preparar o carro para as férias, é mais produtivo pensar em preparar o motorista para a estrada. Primeiro, planejamento. Dirigir por horas a fio é cansativo e o cansaço é um fator crítico para a segurança. Hoje em dia o corpo não é mais muito exigido, exceto por permanecer muito tempo em uma posição. Já vão longe os dias de direção “queixo duro” (sem assistência hidráulica ou elétrica) e freios “a feijão” (sem servofreio). Porém, o cérebro é muito exigido por ter que permanecer em constante estado de atenção e, muitas vezes, de tensão, como em uma estrada pista simples cheia de caminhões. O excesso de cansaço é um inimigo perigosíssimo, pois reduz a atenção e pode fazer o motorista dormir sem perceber. Ao primeiro sinal de sono, deve-se parar na primeira cidade e procurar um hotel para dormir. Nada de bancar o herói e enfrentar o sono, pois ele é um adversário forte e traiçoeiro que sempre vence no fim.
Sendo assim, é recomendável planejar horários de saída e de chegada, evitando dirigir mais do que 8 horas em um dia, sem contar as paradas. Paradas, aliás, que devem ser feitas a cada duas horas, para “esticar as pernas” e assim diminuir os efeitos do corpo estar sempre na mesma posição. Exercícios de alongamento nas paradas são bem-vindos. Se possível, dividir o volante com alguém, com este revezamento dá para dirigir 12 horas em um dia, seis horas cada um. Contando as paradas, dá umas 14 a 15 horas, número que não deve ser ultrapassado por conta do perigo do sono.
Para planejar distâncias e prováveis locais de parada para dormir, é conveniente contar com uma velocidade média de 80 km/h. Parece baixo, mas haverá paradas, trechos atrás de caminhões procurando um ponto de ultrapassagem, trechos cruzando cidades com lombadas, etc. Das minhas experiências, 80 km/h é uma média bem realista para uma velocidade de cruzeiro de 110 km/h.
Por conta do sono também se deve tomar cuidado com a alimentação: comidas pesadas dão sono, portanto, nas paradas, deve-se dar preferência a comidas leves. Evitar também o excesso de comida, que também dá sono. Falando em comida, não se pode esquecer das bebidas. Ao viajar por horas, é muito fácil desidratar. Por isso, é conveniente levar garrafas com água para ir bebendo durante o trajeto, evitando a desidratação.
Além de tudo isso, é bom sempre levar uma maleta de ferramentas, mesmo que não se saiba usá-las. É improvável que haja uma pane na estrada, mas nada pior do que, caso houver, um bom samaritano que entenda de mecânica não conseguir consertar por falta de um alicate ou de uma chave de fenda.
Outro item importante é levar sempre uma lanterna. Estradas não têm iluminação e os faróis iluminam apenas à frente do carro. Imagine trocar um pneu sem conseguir enxergar o pneu, os parafusos e a chave de roda. A lanterna salva a pátria nestas horas. Sei que hoje os celulares têm lanternas, mas onde apoiá-lo se as duas mãos estão sendo usadas? Uma lanterna simples, de 12V, que liga no acendedor de cigarro ou na bateria é muito mais útil, pois emite luz em todas as direções, é fácil deixá-la apoiada no asfalto iluminando tudo à sua volta.
Com o carro sempre em dia, não haverá preocupação quando se for cair na estrada. Cuidando sempre da manutenção, o custo total desta diminuirá, o consumo será mantido em níveis menores e o carro será mais confiável, com menos probabilidade de panes e de acidentes. Além disso, um carro bem cuidado sempre é mais fácil de ser comercializado e será mais valorizado quando da hora da troca. Não há motivo para não se fazer a manutenção do carro, só há vantagens nisso. E é uma situação em que se leva vantagem sem ser Gérson.
CMF