Lembro certa vez que um conhecido sentiu-se desafiado em uma conversa, no café do corredor, por que alguns colegas de trabalho insistiam que o carro que ele dirigia (sempre o mesmo modelo, apenas renovado a cada dois anos) era muito feio. Ele então, sempre expressando com maestria seu ar de indignado com a opinião de outrem, prontamente respondeu sem pestanejar: se não gostam do que estão vendo o problema é de vocês não meu, eu ando é dentro do carro, não do lado de fora.
Falar do interior de um automóvel obviamente não traduz a velocidade, a dinâmica, ou o seu comportamento na estrada. Muitas vezes deixado como secundário na avaliação de um automóvel, nem sempre é glamoroso discutir o carro por dentro. Se um carro é bonito ou não, quase na totalidade das vezes estamos falando da carroceria e apêndices da mesma, rodas, faróis e lanternas são muito mais conhecidos e comentados do que o volante de direção, por exemplo. Mas vamos lembrar que o lugar onde passamos o tempo em que realmente podemos desfrutar de tudo isso é lá dentro, como já indicavam as palavras provocativas daquele velho conhecido.
Nosso primeiro carro com plástico cobrindo o painel, substituindo o velho conhecido painel de aço estampado, causou insatisfação quando chegou lá em casa, no final dos anos 1970. Meu pai praguejou muito o projetista que tinha colocado todo aquele plástico ali, no lugar da esperada, resistente e confiável chapa de aço de outrora. Injuriado, meu pai teve também teve que dar outro destino aos “santinhos” e termômetros magnéticos que não encontravam mais seu lugar no painel, como antes.
Assim como aconteceu com o meu velho, a reação que temos ao entrar em um ambiente novo quase sempre causa estranheza, e não é diferente com os automóveis. Lembro-me bem que quando eu era pequeno eu custava a acostumar com o carro de alguém que não fosse da família, e não era da cor da carroceria ou do ronco do motor que eu sentia falta, era do cheiro, da textura dos bancos e da ambientação interna. Os carros de estranhos não tinham o sabor de casa, eram universos diferentes e incertos ao primeiro contato.
O tempo passou e me acostumei a conhecer e dirigir carros diferentes, mas ainda fica sempre aquela sensação de ansiedade e receio da primeira vez, quando desejamos ter o melhor aproveitamento da experiência, mesmo que a posição dos pedais ou o alcance das alavancas de comando estejam em posições ainda não conhecidas no novo ambiente a ser desbravado.
Gosto de desenvolver a teoria que explica que um bom carro não é só feito de um elemento, como a potência do motor, por exemplo, e sim montado a partir de um conjunto de soluções de engenharia e design, voltadas para proporcionar transporte individual ou de um pequeno núcleo de seres humanos, casais, amigos, família e caronas em geral. Por isso aprecio produtos feitos com esmero e que se revelam caprichados em seus detalhes.
Sobretudo, gosto muito de interiores de automóveis bem-feitos. Não gosto de abrir a porta de um carro novo, desconhecido ou de um lançamento e ter que pensar em voz alta: “mas é só isso?”. Escrevemos certa vez aqui no AE sobre o Maserati Quattroporte, um carro que sempre teve em seu acabamento interno o cuidado de demonstrar estilo e luxo, tanto importante que até mesmo a linha de cintura e a área envidraçada da carroceria era pensada para que a iluminação externa pudesse privilegiar os seus detalhes internos.
Considerando evidente que carros de uma gama superior serão mais comumente agraciados com materiais nobres e sofisticados, não falo apenas de luxo no interior, falo também de esmero em encontrar boas soluções de ergonomia e design interno, em qualquer segmento. Mesmo em modelos simples podemos notar quando o capricho foi parte da planilha de escopo dos projetistas. Simplicidade e feiura não são sinônimos. Os primeiros Ford Ka, de 20 anos atrás, por exemplo tinham boas idéias de acabamento, e mesmo mostrando chapa apenas coberta com pintura em alguns lugares do interior do veículo, apresentava o seu encanto.
Gostava também da época em que se podia fuçar um pouco no habitáculo de um automóvel. Na época de Fuscas, Brasílias, Chevettes, Opalas e Corcel, era mais fácil conseguir um novo volante de direção, bagageiros e porta-objetos internos, tampões para alto-falantes, manoplas de câmbio e até mesmo capas para bancos feitas com retalho de tecido, além dos clássicos bancos Procar. Saudade do tempo em que se podia mexer no carro à vontade sem medo de passar vergonha!
Devemos lembrar inclusive que alguns modelos do passado estavam à frente do seu tempo. Devido ao acabamento interno caprichado, muitas pessoas à época compararam o SP2 a modelos europeus esportivos. Os bancos em couro com encosto para a cabeça do motorista e do acompanhante eram reclinados e anatômicos, e ofereciam ótimo conforto ao motorista e passageiro, principalmente em viagens longas, além de aumentar o estilo esportivo do modelo. E mesmo pensado em transportar apenas duas pessoas, apresentava um razoável espaço interno.
Nos SP2, a alavanca do câmbio e o puxador do freio de estacionamento foram colocados em lugares estratégicos acompanhando o conforto dos assentos, nota-se que foram estudados e projetados truques no desenho do interior para que a ergonomia do veículo se destacasse. Além disso, algumas partes foram revestidas com madeira de jacarandá, oferecendo um interior um pouco mais luxuoso do que se conseguia entregar em outros nacionais da época.
Sacadas como o material do painel de instrumentos produzido em plástico maleável, para evitar ferimentos graves aos ocupantes em caso de acidente, e pequenos mimos como relógio elétrico e amperímetro, além do controle da iluminação do painel, completavam o plantel de diferenciações do modelo desde o momento do seu lançamento no início dos anos 1970. Soluções de interior de veículos como as encontradas no VW SP2 me fazem lembrar como se pode ter um carro bacana, clássico, inteligente e bonito por fora, sem abrir mão de estar dentro dele com razoável conforto, dirigindo ou apenas curtindo.
Fazendo um salto na linha da história temos, por exemplo o Novo Twingo, lançado na Europa no ano passado. Ele consegue manter a escola de sucesso iniciada com modelo original de 1993, e o inusitado interior que ele trazia. Sempre tive apreço pelo pequeno Renault, e as maluquices que se permitiam fazer dentro dele eram todas agradáveis e faziam sempre sentido (sempre no bom sentido da frase). Espaço interno gigante perto do volume externo da carroceria, um ambiente iluminado pela luz natural e com cores vibrantes faziam do Twingo original um lugar agradável de estar.
A modularidade do espaço traseiro e seu banco com ajuste longitudinal resolviam quase todos os problemas de transporte, das coisas e gente que se costuma transportar em um veículo compacto e urbano. Tivemos um Twingo em casa durante cinco anos e confesso que deixou boas lembranças, ainda hoje me vejo folheando anúncios de usados na esperança de encontrar um bom exemplar à venda.
Já o novo Twingo traz um volante multifuncional, uma nova modularidade na disposição dos bancos e a tela tátil de 7 polegadas, mesmo que quase um clichê dos dias de hoje. A tela colocada em alto e no centro do painel demonstra a vontade de inovar e agradar os ocupantes do interior do Renault, e transformam novamente o pequeno urbano em um local desejado de se estar.
Assim como hoje é comum encontrarmos automóveis oferecidos com sistemas multimídia e GPS incorporado, há um tempo atrás o bacana era encontrar os amigos para mostrar o painel digital do seu Kadett GSi. Bancos em veludo em cores não neutras equipavam a família Palio de outrora, sempre proporcionado uma sensação diferente ao usá-los. Bancos bem-feitos sempre tiveram o meu louvor em se falando de automóveis. Alguns modelos que passaram suas temporadas na garagem de casa tiveram particular sucesso no quesito, como o Peugeot 307 e suas duas poltronas dianteiras, viagens longas sempre foram prazerosas nestes automóveis.
Como seria leviano tentar identificar os melhores interiores dos automóveis da história, mesmo porque tem um grande apelo pessoal e de gosto próprio no tema. Resolvi arriscar uma pequena menção a modelos que a meu ver saíram-se muito bem na proposta de tornar a vivência dentro do carro uma sensação agradável, modelos estes modelos que tiveram suas fotos distribuídas para ilustrar esta matéria.
Como não precisamos do carro em movimento para degustar de um bom projeto interior, desejo a todos que possam curtir uma boa estada. Qualquer que seja a sua estrada.
FM