Em 1º de dezembro de 1958 se divulgou que o bombardeiro soviético M-50 seria propulsionado por motores com fonte de energia nuclear, algo totalmente irreal. Valia tudo naquela época para deixar o inimigo com medo. Era o equilíbrio pelo terror. Ninguém atacava ninguém porque não se sabia o tamanho da represália. Muito provavelmente por isso mesmo continuamos a habitar esse planeta.
O OKB-23, birô experimental de construções Myasishchev, foi criado em 1951 por Vladmir de mesmo sobrenome, e fez um avião bombardeiro arrepiante que voaria oito anos depois, batizado apenas como M-50.
Os EUA já tinham o Convair B-58 Hustler em elaboração, um dos mais espetaculares aviões de todos os tempos (matéria sobre ele em breve), e a contrapartida comunista não tardou a aparecer, como sempre com certo exagero.
Em 1955 o OKB-23 foi nomeado para desenvolver o avião para fazer frente ao B-58, do qual não muito se sabia, mas era certeza que seria um equivalente feroz no ataque a território inimigo. Depois de alguns anos ficou pública a informação que um avião ainda melhor, o North American XB-70 Valkyrie, seria o grande risco à URSS, e este depois se revelou muito superior em desempenho até mesmo face ao B-58, mas nunca viu serviço operacional.
Mas a história do M-50 começou antes dessa fase de propaganda enganosa e confundidora, alguns anos depois que a barreira do som fora alcançada e ultrapassada, quando o conceito de um avião supersônico gerava emoção no imaginário popular e, por tabela, na imprensa. Só os engenheiros entendiam o tamanho da confusão que poderia se tornar o projeto de um avião grande e supersônico. Essa era uma tarefa gigantesca. A própria forma geral ou configuração básica do avião era um grande problema, já que tudo era novidade.
Foram estudadas 30 configurações iniciais, 13 com formato canard, com pequenas asas adiante das principais, e 16 com cauda dupla vertical ou inclinada, sem contar as mais 12 posições possíveis para os motores, que tiveram que ser em número de quatro, para tentar atingir a velocidade desejada de mais de 1.800 km/h e altitudes de 15.000 metros.
Para tentar facilitar para o M-50, avaliou-se a possibilidade de fazê-lo iniciar o vôo a partir de um avião lançador, que teria obviamente que ser enorme, de maneira a não consumir combustível para decolagem e subida, fazendo-o sobrar para a corrida de bombardeio e rápida evasão do território inimigo. Não foi em frente, pois o desafio de um projeto desse tipo passaria a ser duplo. O alcance prático com uma carga de bombas de 5.000 kg foi estimado em 13.000 km nessa fase.
Em dezembro de 1955, a empresa mostrou um projeto preliminar da máquina, e em maio do ano seguinte construiu um mock-up, já resolvida a forma final, depois da equipe da Myasishchev concentrar os esforços para selecionar a configuração aerodinâmica otimizada da aeronave. Em túneis de vento foram testados os diferentes modelos e o esquema canard havia sido escolhido.
Passou-se cerca de um ano em experiências com essa configuração. Mas se alterou para uma asa delta com área grande, e deriva tradicional, com estabilizador vertical, leme de direção e dois estabilizadores horizontais atuando como profundores. Os motores na posição em que foram definidos são obra de Fedotov, um dos dirigentes da empresa, junto com Ilenko, com os dois motores abaixo das asas dotados de pós-combustores, e a problemática instalação de mais dois nas pontas das asas, esses menores e mais leves, mas sem o recurso da pós-combustão.
Uma interessante característica era o embarque dos dois tripulantes. Inacreditavelmente complicada e sem explicação, requeria escadas para os tripulantes subirem, manobrarem o corpo para sentar nos bancos dependurados, e depois acionar motores elétricos que faziam os bancos subirem para dentro do avião, fechando a escotilha abaixo deles. Não se tem informação de bancos ejetáveis, e nem se sabe se a saída de emergência era pelo mesmo procedimento da entrada, o que seria certamente amedrontador.
A fim de resolver todos os problemas encontrados em vôo, era necessário automatizar totalmente a aeronave ou fazer com que os dois tripulantes participassem da pilotagem. Isso era claramente inviável, já que o segundo membro seria o operador de equipamentos eletrônicos, navegador e bombardeador, e se passou a trabalhar na automatização para diminuir a carga de trabalho do piloto, o que gerou uma primeira aplicação oriental de um sistema similar ao que viria a ser chamado de fly-by-wire. Não foi o primeiro de todos, pois funcionou cerca de um ano depois daquele do Avro Arrow, já que o primeiro vôo do M-50 foi em 27 de outubro de 1959.
Se houvesse falha dos dispositivos de estabilidade artificial, um comportamento de instabilidade seria rapidamente atingido, e para evitar isso, a área do estabilizador horizontal aumentou duas vezes, trazendo uma maior autoridade de profundor, como se diz no jargão dos engenheiros aeronáuticos.
Os movimentos dos comandos eram transmitidos às superfícies de controle por via hidromecânica e elétrica. Não era, portanto, um vôo por fios como é hoje, mas foi também uma das tentativas pioneiras. Em emergência, poderia ser acionado manualmente, com os potenciômetros acoplados aos comandos do piloto se desligando, e o comando sendo apenas hidráulico. Para produção, isso seria abolido, e mais redundância eletroeletrônica seria adotada, para trabalhar em caso de falha dos sistema principal. O peso estimado a ser economizado estava por volta de 1.000 kg.
Essa automação forçou a indústria soviética de equipamentos de radioeletrônica a acelerar a miniaturização de componentes, para que o benefício de menos peso fosse real.
O sistema de navegação também foi bem modernizado para o M-50, assim o equipamento inclui três estações de radiocomunicação, altímetro de alta e baixa altitude e transponder com proteção contra o inimigo.
O M-50 foi inicialmente definido com quatro motores NK-6, o mais potente turbofan soviético. Com peso de 3.500 kg, tinha empuxo com pós-combustão de 22.000 kgf. Em novembro de 1960, gerou 22.400 kgf de força de empuxo, No entanto, logo ficou claro que, para garantir durabilidade acima de 50 horas sem revisão, o empuxo deveria ficar na faixa dos 19.000 kgf no máximo, e um valor ótimo para segurança e durabilidade seria 13.000 kgf.
Mas no ponto do programa em que os NK-6 se fizeram indispensáveis para prosseguir o desenvolvimento, eles não estavam prontos, e os Dobrynin VD-7 e VD-7F foram adotados. Estes, na versão F, montados debaixo da asas tinham pós-combustores, aumentando de 9.750 kgf para 14.000 kgf o empuxo. Empuxo total era então de 47.500 kgf. Haveria uma evolução com motores Zubets 16-17, em um segundo avião foi batizado de M-52.
O que acontece aerodinamicamente na transição de subsônico para supersônico é que o centro de pressão das forças aerodinâmicas da asa se move na direção da cauda, fazendo o nariz do avião baixar. Este efeito, que muitas vezes levava ao desastre da primeira aeronave em alguns projetos, forçou os aerodinamicistas a procurar novas maneiras de preservar a necessária estabilidade longitudinal. Quando se reduz a velocidade e volta-se novamente para velocidades abaixo da do som, o efeito é contrário.
Assim, houve uma proposta para mudar, dependendo do modo de vôo, a posição do centro de gravidade da aeronave por transferência do combustível de um tanque para outro. Esta solução foi aplicada pela primeira vez no M-50, em seguida, encontrou uma ampla aplicação, incluindo o Tupolev Tu-144 e o Concorde. Se isso não fosse feito, o estabilizador horizontal deveria ser ainda maior, prejudicando o peso total.
As asas tiveram também um pioneirismo em se tratando de método de projeto. Houve pela primeira vez o uso de análise de elementos finitos para simulação de funcionamento das asas em vários regimes de uso, junto com o sistema de controle por fios. Tudo isso foi também somado ao desenvolvimento de um simulador. Em resumo, um grande programa de computador que recebia informações e respondia com mais informações.
A falta de experiência de pilotar aeronave com asa delta levou à criação de um simulador analógico, onde os pilotos de teste familiarizados com a gestão das futuras máquinas ao mesmo tempo aprendiam a voá-lo, isso já acontecendo no final de 1958, quando os pilotos de testes N.I. Goryainov e A. S. Lipko estavam voando no simulador e ao mesmo tempo ensinando o M-50 a voar, progressivamente refinando as características de controle. Não havia slats no bordo de ataque das asas, mas os flaps eram quatro, de fenda dupla, com os externos agindo como ailerons com auxílio de spoilers.
No M-50 recusou-se o emprego de tanques suplementares, e o combustível era todo armazenado nos compartimentos selados de fuselagem e da asa. Os tanques externos modificariam o fluxo de ar junto das asas, incutindo variações nesses fluxos de acordo com a atitude (inclinação do avião em relação ao vento relativo) da aeronave, agravado pela variação de peso que acompanha o consumo. Tudo muito complicado e incerto, sendo que a asa em delta era uma novidade em uma aeronave desse tamanho, de forma que foi mais simples rejeitar o uso desses tanques em projeto.
O trem de pouso tinha a configuração já usada anteriormente no M-4 Bison, mas com a diferença de que no M-50 o trem dianteiro tinha pistões hidráulicos sobre as pernas do trem que o estendiam a 300 km/h, tornando desnecessário o piloto puxar o manche para rotacionar o avião e fazê-lo voar. Com a extensão automática a atitude mudava, aumentando o ângulo de ataque e fazendo o avião decolar sozinho. Isso existe também em aviões navais, como o francês Super Eténdard e o americano F-4 Phantom, entre outros.
Com os motores Dobrynin os testes prosseguiram, e os números obtidos nessa fase foram uma autonomia de 12.000 km com velocidade de cruzeiro subsônica, e rápida aceleração para 1.700~1.800 km/h no ensaio de evasão pós-ataque, com cerca de 30 minutos nesse regime. Assim, sem reabastecimento em vôo não estava garantida a autonomia de mais de 14.000 km. Para alcançar esta distância, o M-50 deveria voar a velocidade subsônica por 3.000 km, e a menos de 8.000 m de altitude, o que é inaceitável, porque nessas condições o avião poderia ser facilmente interceptado pelo adversário. Ou ser usado o reabastecimento em vôo por duas vezes, para poder voar mais rápido.
Outro problema de desempenho foi a resolução do Conselho de Ministros da URSS para decolagem em pistas de menos de 3.000 m, que deveria ser executada sem o uso de assistência de foguetes (boosters), não ter sido atingida. Foguetes adicionais descartáveis precisariam ser usados para garantir operação em até 2.500 m de pista a fim de operar a aeronave a partir dos aeródromos existentes com cargas próximas à máxima.
Com todos esses problemas, uma reprovação foi dada para o programa, ao que o comandante da força aérea veio em defesa do avião em fevereiro de 1956, justificando ser o primeiro bombardeiro supersônico. Suas explicações foram a favor da Myasishchev, que estava trabalhando sem os motores que haviam sido prometidos. Para o peso máximo de 200 toneladas era óbvio a ele que os boosters deveriam ser usados.
Em 27 de outubro de 1959, pilotado por Nikolai I. Goryainov e tendo como navegador A S Lipko, o protótipo M-50A decolou pela primeira vez. Logo nos primeiros vôos o avião ultrapassou Mach 1, mas nunca decolou com peso acima de 115 toneladas, bem abaixo das 200 planejadas.
Mas, pouco depois, no outono de 1960, Vladmir Mikhailovich Myasishchev foi nomeado chefe do TsAGI (Central Aerohydrodynamic Institute – Instituto Central de Aerohidrodinâmica) e o OKB-23 foi dissolvido. A equipe teve as atribuições mudadas para tecnologia espacial, visando continuar à frente dos americanos nessa agora mais prioritária corrida, além do desenvolvimento de mísseis balísticos.
O fim do OKB-23 significava que não se poderia continuar a desenvolver nem modificar aviões já feitos, e o famoso entusiasmo pelos mísseis balísticos intercontinentais parecia mesmo acabar com o SAC (Comando Estratégico Aéreo) americano, e arrefecer os desenvolvimentos aeronáuticos soviéticos. O M-50 fez dezoito vôos de teste quando, em 1960, decidiu-se deixar de trabalhar sobre ele e partir para a evolução M-52, que seria, de fato, uma modificação do seu antecessor.
Há várias razões, mas as principais características da aeronave são irrelevantes, dado que a decisão do Conselho de Ministros foi claramente política. Menosprezava-se o papel de uma força de aeronaves na guerra moderna, onde os mísseis balísticos passavam a ser a verdadeira arma do Juízo Final.
Nos testes a aeronave apresentou problemas sérios. Um dos motores se soltou no solo e caiu em pé matando um operador de rádio chamado Kruchinina. Um caso ocorrido em vôo foi uma explosão causada por duto de combustível com vazamento. As chamas não se propagaram por pura sorte, e o avião conseguiu retornar e pousar em segurança, embora avariado.
Mas antes do OKB-23 acabar, o M-52 estava sendo fabricado, com um profundor extra no topo da deriva vertical, modificação na posição dos motores das pontas das asas e pilones externos para quatro mísseis ar-terra. Também um mais moderno sistema de reabastecimento estava nos planos. O avião foi construído, mas nem chegou a voar, em mais um típico desperdício de recursos.
O M-50 ficou parado por um bom tempo, numa demonstração de total inércia política, impedindo a tecnologia de progredir, e em 1967 decidiu-se mostrar o avião em um show aéreo em Tushino. Depois de quatro ensaios, o avião voou com o número alterado de 023 para 12, acompanhado por dois MiG-21. Foi então mais claramente divulgado no Ocidente, com a OTAN o batizando de Bounder (pessoa com mau comportamento social, imoral) e chegou-se a divulgar que estava sendo produzido em série, quando teria dois mísseis de cruzeiro montados na lateral da fuselagem, sonda para reabastecimento em vôo, suíte completa de aviônicos e asas integralmente funcionando como tanques de combustível.
Houve outros estudos de evolução, com o seguinte, M-54, adotando o desenho de planta das asas e a posição dos motores muito similar ao do B-58, numa clara tentativa de fazer evoluir a ponto de levar o avião à produção, mas não houve progresso. O avião que viria a ser construído em série para a função que o M-50 teria foi de outro fabricante, a Tupolev, com o Tu-160, batizado pela OTAN de Blackjack, uma cópia mais ou menos livre do Rockwell B-1 americano, com asas de enflechamento variável e duas vezes a velocidade do som. Ficou pronto apenas em 1981. Hoje constitui a linha de frente dos bombardeiros estratégicos velozes da Rússia, sendo gerado quase totalmente depois do final da Guerra Fria.
O único M-50 está bem conservado hoje, ao menos externamente, e pode ser visto no museu da Força Aérea soviética, em Monino, a leste de Moscou.
Apenas para constar, em 2008 e novamente em 2013 dois Tu-160 estiveram na Venezuela e realizaram exercícios na região, chegando a invadir o espaço aéreo colombiano, quando foram interceptados e deram meia-volta. Passaram mais alguns dias na região, e realizaram ao menos um vôo de longo alcance, seguindo na direção sul no Atlântico e retornando a Caracas. Se a ameaça da Guerra Fria se foi há tanto tempo, há outros problemas que ainda não foram resolvidos.
Características básicas:
Comprimento 57,48 m
Envergadura 35,10 m
Altura 8,25 m
Área alar 290,6 m²
Peso vazio 85.000 kg
Peso com combustível máximo 175.000 kg
Peso máximo de decolagem 200.000 kg
Velocidade máxima 1.950 km/h
Velocidade de cruzeiro supersônico 1.500 km/h
Raio de ação entre 6.000 km e 7.400 km voando subsônico, dependendo da fonte pesquisada.
Teto de serviço 16.500 m
Armamento 25.000 kg de bombas e mísseis carregados internamente.
JJ