Relembrando a matéria de estréia do Josias Silveira no AE, publicada em 3/12/2012:
Este post marca a chegada – uma grande chegada! – de mais um nome ao time do AUTOentusiastas: Josias Silveira. Ele é, sem nenhuma dúvida, um dos expoentes da imprensa automobilistica brasileira. Muitos leitores conhecem o trabalho dele comandando as revistas Duas Rodas e Oficina Mecânica, editadas a partir de 1974 e 1987, respectivamente, com quem, nesta última, tive o prazer de trabalhar (e aprender) de 1988 a 1992. Mais do que jornalista, porém, o Josias é o próprio autoentusiasta, em toda sua essência. Convidá-lo foi sugestão de um leitor, o Leister, depois que leu o post sobre o novo Clio, no qual conto a viagem de volta do Rio com o Josias e a Ana Flávia Furlan. Depois de falar no dia seguinte com ele, nos encontramos no evento da apresentação do Fusca à imprensa no dia 28 último, quando finalmente acertamos o ingresso dele no nosso time.
A estréia do Josias é com a reportagem/conto “Sorvete de Graxa”, inédita na internet, bem como as fotos, que acabou dando origem ao livro homônimo, da Editora Europa (www.europanet.com.br), escrito pelo Josias.
É uma história deliciosa, que tem a cara dele, e tenho certeza de que os leitores a apreciarão, bem como as outras que virão. Bem-vindo ao AUTOentusiastas, amigo Josias!
Bob Sharp e a equipe de editores
Sorvete de Graxa
Por Josias Silveira
Aquele terreno cheio de carros velhos no meio da neve parecia a entrada do Paraíso. Coisa de maluco. Ou de maluco por carros velhos. Apesar de gastar boa parte do meu tempo testando e analisando automóveis novinhos – quase sempre antes do lançamento – adoro um caco velho. Automóvel novo parece eletrodoméstico, e no Brasil tem sempre das mesmas cores (entre o prata e o preto) iguais ao do vizinho, prontos para serem perdidos no estacionamento do shopping…
Já um carrinho bem usado tem personalidade, tem vontade própria, você precisa negociar e conversar com ele para ir longe. É único. Um monte de emoção aprisionado em peças velhas, esforçadas para continuar na luta. Ou na estrada.
Por isso, aquele dia cheio de neve no norte dos Estados Unidos tinha tudo para render bons momentos de graxa e felicidade. E meu velho Subaru, lá no Brasil, ia ganhar vida nova com as peças velhas catadas no estado de Michigan, em pleno rigor do inverno.
Tudo começou uns poucos dias antes de embarcar para o Salão de Detroit. Comprei um Subaru Impreza, uma wagon com motor 1,8 e tração 4×4, depois de um namoro de uns vinte anos, uma história que começou exatamente nos Estados Unidos. Mas o Subarão (já que na minha vida também existe um Subarinho, um Vivio de apenas 660 cm³, ou 0,66 litro), saiu da fábrica em 1994. Apesar do bom estado, perdeu algumas peças pela vida e alguns componentes desgastados atrapalhavam um funcionamento realmente legal. A injeção pedia novos bicos, a bobina às vezes soltava faísca para o lugar errado…
Tentei mudar a passagem de volta de Detroit para procurar peças com mais calma. Alta temporada, não deu para alterar a data. Iam sobrar umas 15 horas livres antes de embarcar de volta.
Existem peças novas no Brasil, mas seu custo não combina com um carrinho que vale pouco. Peças “paralelas” ou usadas são encontradas na internet, mas também são difíceis e caras. E os injetores funcionaram a vida toda com nossa “alcolina”, a mistura nem sempre saudável vendida aqui como “combustível ecológico”. Ou seja, injetores usados no Brasil estariam em pior estado que os meus, que “gotejavam”, pingando gasolina fora de hora.
O motor boxer quatro-cilindros “queimava preto”, gastando muita gasolina e rendendo mal. Era um problema já crônico, que o dono anterior não conseguiu resolver. Tanto que até tirou o catalisador, que deve ter entupido de tanta fumaceira.
Com pouco tempo disponível depois do Salão de Detroit, o jeito era apelar para os santos. Ou para a família. Quis a Providência Divina que meu primo, Itiberê, morasse a apenas 60 km de Detroit, em Ann Arbor. Logo após o último jantar oficial do Salão, ele me pegou no hotel. No outro dia, às 16 horas, tinha de estar no aeroporto. Dormi na casa dele, sob a guarda e as lambidas do Gordo, um simpático e “feroz” bulldog (bravo só com quem ele não vai com a cara).
Mesmo gastando parte da madrugada atualizando fofocas familiares, levantamos cedo. Itiberê dispara:
— Revenda ou ferro-velho?
Como boa parte da família, ele também tem ferrugem no sangue. Claro que a resposta foi “ferro-velho”. E lá fomos nós para Ypsilanti, uma cidadezinha vizinha a Ann Arbor. “Lá tem um bom junkyard de carros importados”.
Junkyard, algo como “terreno do lixo”, é como os americanos chamam um ferro-velho. Detalhe: havia nevado a noite toda e temperatura era de uns – 8 ºC.
Mesmo assim, aquele terrenão cheio de carros sem vida parecia uma praia nas Bahamas. Tudo dividido por marcas e uma bela ilha cheia de Subaru, com pelo menos duas Impreza, irmãs da minha que estava a mais de 8.000 km de distância.
Eles retiram motor e câmbio, que vai para um grande galpão, e o restante do carro fica montado, esperando freguês para que as peças de carroceria sejam retiradas.
Um simpático “tio”, o John Lawson, veio ajudar a achar as peças. Os injetores e a bobina estavam dentro do galpão, mas havia um problema: por lá, os Impreza eram quase todos 2,0 ou 2,2. Pouquíssimos 1,8 como a minha. John disse que ia me dar os injetores de um motor 2,0, pois eram os mesmos. Veio também com uma bobina (retirada de um carro bem mais novo, acidentado), além dos bicos, ainda montados nas flautas, com regulador de pressão e uns pedaços de cano de borracha escorrendo gasolina. Saía aquele cheirinho de benzina, de “gasosa da boa”: “Leva tudo. Se não servir, troque as flautas do teu carro também”.
Aí cometi o pecado original, de novo:
— Vamos dar uma olhadinha nas Impreza pra ver se eu preciso de alguma coisa mais.
Ferrou! Precisava de tudo daquela SW 2,2 cor de vinho, um modelo mais esportivo que a minha. A começar por um spoiler no vidro traseiro, raríssimo no Brasil. Queria também uma grade diferente, mais bonita, uma enorme lanterna traseira, a tampa do alojamento do macaco, uma persiana que cobre o porta-malas e mais uma dezena de cacarecos. E lá fomos nós, no meio da neve, ajudar o pobre do John a retirar peças.
— Vou gastar várias horas para desmontar tudo nesta neve.
— A gente ajuda, pois não temos tanto tempo.
Em minutos, já havia pelo menos uma dezena de peças amontoadas na neve. Retirar o spoiler, aquele “boné” do vidro traseiro, foi um capítulo à parte. Mesmo soltando todos os parafusos, a peça não saía, parecia colada. John, do alto de sua experiência de trabalhar no frio, sentenciou:
— Tá congelado.
Bastou um soco no meio do spoiler para o gelo se quebrar e ele desgrudar do vidro. Só que aí começou a parte mais difícil. Os suportes eram colados no vidro, com um adesivo japonês, que pode ser classificado, no mínimo, como filha da puta. Não soltava de jeito nenhum. John, de novo:
— Isso aqui só sai com um soprador de ar quente, bem quente.
— Então vamos tirar a tampa inteira e levar lá para dentro para soprar.
— Só que meu soprador tá quebrado — diz John.
Toca fazer força, com duas chaves de fenda. O tonto aqui, com umas luvinhas de algodão, logo sentiu os dedos molhados. Meu primo avisa:
— Cara, não brinca com as mãos neste frio. Você pode perder uns dedinhos.
— Não, tá só molhado.
Em três minutos a água virou gelo e comecei a não sentir meus dedos.
— Vai lá para dentro se esquentar — berraram John e meu primo.
E lá fui eu botar as mãos no aquecedor e conversar com o Silas McCashin, que ficou muito impressionado com o fato de ser verão no Brasil e de meu celular/rádio “conversar” direto com o dele, bastava apertar um botão.
— Podemos conversar de graça, quando você voltar para o Brasil. Assim você me encomenda a peça que quiser e eu entrego para o seu primo.
Mais quente e com as mãos secas, voltei para o pátio, onde John e meu primo ainda brigavam com o primeiro suporte. Com todo aquele frio, a bexiga de meu primo congelou:
— Preciso de um banheiro.
— Vai na cerca mesmo, tá mais perto — diz John.
Enquanto Itiberê vai amassando neve em direção a cerca, John sentencia:
— Se ele for fazer o número dois, vai congelar a bunda.
Depois de muita briga com primeiro suporte, aconteceu o que John havia previsto: o vidro estourou. Olhamos para o John, com cara de cachorro que mijou no tapete e um ar de interrogação:
— Não se preocupe, pelo menos o outro suporte sai fácil.
Em seguida, o segundo suporte jazia na neve, cheio de cacos de vidro colados. Veio assim mesmo para o Brasil.
Levamos aquele monte de cacarecos para o Silas avaliar lá no barracão aquecido. Atrás dele, uma placa esclarecedora: “Os preços variam de acordo com a atitude do cliente”. Olhou sério para aquela montoeira de componentes e sentenciou:
— Você tá bem disposto. Vai reconstruir um Subaru no Brasil? Que tal US$ 150? Tálegal pra você?
Estava ótimo. Tudo aquilo custou menos que um único injetor no Brasil.
Claro que o spoiler e a persiana do porta-malas não cabiam nas minhas malas. E lá fui eu para o aeroporto com as peças caindo do carrinho de malas, tentando embarcar como “bagagem de mão”. Em tempos de “alerta vermelho” contra terrorismo, um catador de peças em ferro-velho não tem moleza. Tudo teve de ser despachado como “bagagem extra”. Mais US$ 100. Tudo bem. Bastava olhar para as malas estufadas por outras peças para não reclamar.
Agora só faltava a alfândega em Guarulhos, onde ainda reinava uma portaria proibindo a entrada de peças no Brasil, culpa de um pessoal que andou abusando ao trazer componentes da Argentina para revender aqui. Ao passar pela nossa alfândega, levava o spoiler e a persiana com o cuidado de um pagador de promessas que carrega sua cruz para Aparecida. O fiscal viu as peças, olhou para minha cara:
— Vai embora, Tio. Tá tudo bem.
O suspiro de alívio deve ter ecoado pela Via Dutra. Meu Subaru estava salvo.
Pintei a grade de preto fosco e o spoiler com o azul de minha wagon (o código de cor está na plaqueta de identificação). Coloquei tudo, mais os injetores, que serviram como luva nas flautas originais. A bobina ficou de estepe, já que a velha resolveu criar vergonha e parar de espirrar faíscas para os lados. É sempre assim: basta ter um componente para substituir que a peça velha cria vergonha, com medo de ir para lixo.
Montei todas as peças, dei um passinho para trás para olhar o Subarão com as peças “novas”. Toca o radinho:
— Hi, are you back to Brazil?
Era o Silas, falando lá do norte dos Estados Unidos.
— Sim, voltei e acabei de colocar as peças que trouxe do seu ferro-velho. O carro tá lindo e o motor, ronronando.
— E o tempo aí, como está? Aqui tá nevando. De novo.
— Pois é, Silas. Aqui tá chovendo. De novo.
Além das peças, tinha trazido mais um amigo na bagagem, pronto para ajudar a manter meu carro estranho. Afinal, aqui no Brasil, algumas marcas são para trouxas ou para quem gosta muito de carro. Ou como eu, um trouxa que gosta muito de carro.
Esta admiração por (mais) uma marca diferente, que teve final feliz depois de duas décadas, começou exatamente nos Estados Unidos, no início dos anos 1990. Eu nem sabia o que era um Subaru. Depois de fazer uma matéria nos Estados Unidos, resolvi passar uns dias na Califórnia. Cheguei à locadora e o cara me ofereceu uma “barganha”. Adoro barganhas.
— Tenho um Subaru aqui que está meio feinho e esta será a ultima locação dele. Te faço metade do preço do carro que você reservou. Se ele quebrar, me liga que te mando um automóvel zerinho para substituir, sem custo. Mas ele não vai quebrar. E você vai adorar o jeito como ele faz curvas.
Peguei o sedã Impreza 4×4, que tava bem ralado. O vidro do motorista só subia ajudado pelas mãos, amassados em todos os cantos, escape furado, frisos caindo… Aposentadoria de carro de locadora é sempre triste, em qualquer lugar do mundo.
Depois de algumas curvas rápidas, que o carro nem percebeu, parei para olhar o motor, que me intrigava com um balanço e um barulho típicos de Fusca. Embaixo do capô, achei um boxer (quatro cilindros, opostos dois a dois). Era o que o Fusca deveria ter sido, mas nunca foi. Refrigerado a água, comandos nos cabeçotes, com 16 válvulas, mas cheio de força em baixa rotação.
Rodei quase 2.000 km com aquele Impreza sucata, que nem ameaçou quebrar. Só queria estrada e nem fazia questão de muita gasolina. Era bem econômico e gostoso de dirigir pelo deserto de Mojave, em direção a Nevada, Utah e, claro, Las Vegas.
Voltei para o Brasil intrigado e fui pesquisar. Descobri que era uma marca Premium japonesa e que o slogan não oficial era: “Feito por engenheiros e para engenheiros”.
A Subaru chegou ao Brasil lá por 1993, mas eu já tinha esquecido meu começo de namoro na Califórnia. Mais de 20 anos depois, por pura curiosidade acabei comprando o minicarro da Subaru, o Vivio. Fuçando no carrinho, relembrei o Subarão que rodei nos Estados Unidos e reencontrei o capricho mecânico daqueles japoneses malucos: tudo com suportinhos, fios e tubulações bem diagramadas, um belo acabamento e uma suspensão para 200 km/h num carrinho com motor 0,66-L que mal chega aos 130 km/h.
Além do mais, os Subaru são gostosos de dirigir. Não tem nada a ver com alguns outros japoneses, que são todos certinhos, duráveis, mas a sensação ao volante é de “dançar com a irmã”. Não tem graça.
Aí consegui um Subarão para fazer companhia para o Subarinho. E o resto vocês sabem.
JS