“5 de Novembro de 1954
Sr. Griffith Borgeson
454 South Maple Drive
Beverly Hills, California
Caro Sr. Borgeson:
Obrigado por sua carta de 22 de outubro. Sim, é verdade que em 1933 eu tive um carro esporte de dois lugares com um motor de 16 cilindros, 500 cv, e tração nas quatro rodas, feito para mim sob encomenda por Harry Miller. Eu tenho algumas fotos dele que posso deixar você usar, se assim desejar.
É difícil dar todas as informações sobre o carro sem escrever um livro, coisa que eu não tenho tempo para fazer. Se você vier a Nova York, ou na minha próxima viagem à Califórnia, terei prazer em conversar sobre o assunto com o Sr.
Atenciosamente,
William A.M. Burden”
Para um historiador do automóvel como Griffith Borgeson (sobre quem já falei aqui), receber esta carta é como dar uma picaretada numa pedra no quintal de casa, e descobrir que ela é feita de ouro maciço por dentro. Um carro de rua de 500 cv e tração integral, em 1933! Mais que isso, um carro com chassi e motor criados para ganhar a 500 Milhas de Indianápolis, adaptado para as ruas, a perfeita definição de puro-sangue. Fico pensando em sua reação, sua incrível ansiedade, ao ler isso no final de 1954.
O que ele descobriu sobre o assunto aparece pela primeira vez na revista Road & Track de maio de 1955, mas é finalmente posto no papel de maneira definitiva e completa em seu último livro: “The Last Great Miller”, editado pela SAE postumamente no ano 2000 (Borgeson deixou este plano em 1997), que conta principalmente a história do carro de competição com tração nas quatro rodas de 1932.
Quando escrevi recentemente sobre o Jensen FF, acabei por me lembrar deste carro. O Jensen permanece o primeiro oferecido ao público em série, mas o carro de Burden com certeza é seu antecessor em espírito. E isso me animou a falar um pouco mais sobre a tração nas quatro rodas, esta ideia persistente que era tema daquele texto, mas antes de Tony Rolt e Harry Ferguson serem fisgados por ela no pós-guerra.
E como não poderia deixar de ser, esta é uma história de pessoas também, que começa muito tempo atrás numa pequena cidade do Wisconsin, EUA…
O F.W.D Corporation
O sistema de tração nas quatro rodas é tão velho quanto o automóvel em si, tendo aparecido em alguns lugares na infância desta nossa querida máquina. Um famoso experimento de antes de 1900 são os Lohner-Porsche: colocando um motor elétrico dentro da roda, o jovem Ferdinand Porsche tornou facilmente possíveis tração dianteira, traseira, ou nas quatro rodas, e de quebra patenteou o sistema que no futuro moveria o nosso único veículo terrestre a rodar fora do planeta Terra: o “Lunar Rover” da Nasa. E acoplando um gerador a um motor a gasolina para mover estes motores elétricos em vez de somente baterias, também fez o primeiro híbrido. Esperto, esse tal Ferdinando.
Mas a história que vamos contar aqui diz respeito a pessoas e máquinas bem menos famosas, mas incrivelmente interessantes também. Contam alguns fragmentos de história que ao redor de 1905, o ferreiro e torneiro mecânico da cidade de Clintonville, WI, um certo senhor Otto Zachow (o Wisconsin é um estado que recebeu muita imigração alemã), procura um advogado local chamado Walter Olen para discutir o que fazer com uma ideia que acabara de patentear em segredo. Nem o sócio de seu estabelecimento, William Besserdich, tinha naquele ponto nenhuma ideia das maquinações futuristas do ferreiro.
A patente era a de um sistema de tração nas quatro rodas para veículos automotores. Era bem simples, mas também visionário: um diferencial central, igual ao existente nos eixos (que tornava possível diferença de rotação entre os dois lados do carro), permitia velocidades diferentes dos dois eixos tracionados. Mais tarde um sistema para travar o diferencial seria adicionado (para terrenos de baixa tração), mas o sistema era em conceito básico o mesmo usado até hoje em carros de tração total para uso no asfalto.
Olen, o advogado, tinha vocação de empreendedor, e não tardou em aproveitar a chance. Sugeriu que um carro protótipo fosse construído imediatamente, e com os dois sócios da modesta oficina, incorpora uma nova companhia: The Four Wheel Drive Company. E, exemplificando o quão no passado está 1905, o primeiro protótipo seria movido a vapor…
O carro acaba ficando pronto somente em 1909, devido a várias complicações técnicas relacionadas justamente ao motor a vapor, mas o sistema de tração se mostra prático, simples, e extremamente vantajoso. A empresa é capitalizada por Olen, e um veículo com motor a gasolina é lançado em 1911. A empresa titubeia nos primeiros anos, e logo Zachow e Bessendich a abandonam; ficaria com Walter Olen o comando da empresa pelo resto de sua vida.
É na Primeira Guerra Mundial que as coisas começam a melhorar: mais de 20 mil caminhões de 3 toneladas são produzidos e usados pelos exércitos aliados na Europa. O carro é sucesso entre a tropa, que logo não pode viver sem sua capacidade de transpor obstáculos (além da F.W.D., a Nash também mandou caminhões com tração nas quatro rodas para o conflito, chamados de Nash Quad). O exército consolida a necessidade da tração total no front, o que viria, na Segunda Guerra Mundial, a criar o Jeep, este que é o pai de todos os veículos off-road, militares ou de passeio, até hoje.
A F.W.D. Company, apesar de alguns anos difíceis no pós-guerra (a quantidade de caminhões usados vendida pelo exército satura o mercado já pequeno), nos anos 1920 entra em período de prosperidade, com clientela constante e fiel. Continua a propagandear as vantagens de seu sistema, para tentar aumentar seu alcance e escopo, mas ainda sem muito sucesso: apenas em uso off-road consegue ser competitivo. Pouca gente vê as vantagens do sistema nas estradas então, possivelmente devido as baixas velocidades dos caminhões naquele tempo, e o preço mais baixo de veículos convencionais de grandes fabricantes como a Ford.
Mas para ajudar nisso, neste momento entra nesta história um personagem fascinante da história do automóvel.
Harry Miller
Miller é uma pessoa difícil de definir em poucos parágrafos. A melhor definição é pouco comum para um engenheiro, ou para um fabricante de automóveis de competição, ocupações que, olhando friamente, definiriam mais exatamente sua profissão. Mas não há outra palavra melhor, e na falta da melhor, ela vai servir: Miller era um artista.
Mas diferente de uma escultura, uma pintura, uma música ou um poema, a arte de Miller era também uma máquina. E como uma máquina, era criada seguindo regras matemáticas, científicas, precisas, e não somente uma obra de criatividade pura. Precisava também realizar uma função, ou seria um despropósito, uma máquina de fazer nada. A arte por definição é obra da alma e da criatividade humana, mas raramente tem que realizar alguma função ou funcionar a partir de regras científicas.
Mas nos carros de Miller, isso não tirava a condição artística, apenas criava nova dimensão para ela: além de belos, eram tecnologicamente avançadíssimos, e eficientes nas categorias mais competitivas de velocidade. Era, portanto, um artista também ao manejar as técnicas de engenharia necessárias para criar o que criava; a engenharia era apenas mais um aspecto de sua arte. Uma forma de arte superior.
Suas criações não eram apenas belas aos olhos e a alma, eram acrescidas de dimensões inexistentes numa obra de arte normal. Seus carros eram criados com um cuidado estético incrível, extraordinário, inacreditável: cada pecinha, por mais escondida que estivesse nas entranhas do automóvel, era como uma pequena joia lapidada, uma minúscula ode às técnicas de construção com metal. Os carros eram magros e atléticos, desprovidos completamente de gordura ou excesso, uma camada fina de pele sobre músculos esbeltos, mas poderosos. Mesmo hoje, de uma beleza que transcende a beleza por si só, bela também pela forma como funciona, e pela forma como se move. Arte tridimensional dinâmica.
Seus produtos eram tecnologicamente avançados, em muitos casos visionários de um futuro distante. A técnica se unia à arte como nunca antes, e possivelmente nunca mais depois. Como se não bastasse, como se isso já não fosse suficientemente incrível, eram também eficientes na função: nos anos 1920 Harry Miller era o fabricante de automóveis de corrida de maior sucesso na nos Estados Unidos. Se você quisesse ser realmente competitivo, tinha que comprar um carro dele.
O maior exemplo era seu famoso Miller 91 de tração dianteira de 1926-1929: múltiplo vencedor em Indianápolis, o carro era equipado com um motor oito-em-linha de apenas 1,5 litro (91 pol³), com um compressor centrífugo, duplo comando de válvulas e quatro válvulas por cilindro. Além de ser uma escultura em metal que ficaria bem em qualquer sala de estar, era uma unidade de altíssima potência específica (193 cv/l, num total de 285 cv a 8.000 rpm), e dono de uma capacidade de giro e um grito a 9.000 rpm que ainda faz queixos caírem, 90 anos depois. Até Ettore Bugatti, ele também como Miller um artista antes de um engenheiro, se impressionou: comprou dois Miller 91 para estudar, e seu Tipo 51 de 1931 tem um cabeçote que é cópia quase exata do carro americano.
A fábrica de Miller em Los Angeles era um templo de artistas, comandado pelo seu famoso desenhista Leo Goosen, e seu braço direito na oficina, Fred Offenhauser. Borgeson os chamou de “maçonaria da máquina”, uma espécie de irmandade devotada a fazer coisas belas que andavam rápido. Quando Miller faliu em 1933, Fred Offenhauser comprou o que restou da sua empresa, e o motor com seu nome, famoso até hoje por ganhar simplesmente toda Indianápolis 500 de 1947 a 1964 (e mais um bocado de outras, as últimas em 1975 e 1976), nada mais era que um quatro-em-linha criado por Miller em 1929 para corridas de lanchas a motor.
Tração dianteira e nas quatro rodas
Com a crescente potência dos carros de corrida americanos nos anos 1920, um fenômeno apareceu: começaram a perder tração. Chegou-se rapidamente ao ponto em que mesmo à velocidade máxima, as rodas estavam patinando, desperdiçando potência e perdendo drasticamente aderência. Motores de quatro cilindros foram substituídos por de oito, doze e até dezesseis, buscando mais suavidade na entrega de potência e menos patinagem, mas sem muito resultado.
Foi aí que Miller veio com seus carros de tração dianteira, algo que certamente veio de seu trabalho com um Christie de corrida com tração dianteira em 1906. Vale mencionar aqui que tração dianteira e nas quatro rodas em competição de velocidade não tem apenas um inventor: depois de Christie e outros antes de 1910, nos anos 1920 Alvis na Inglaterra e Itala na Itália tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo, para ficar apenas nos que conheço; Itala por sua vez influenciou Bugatti (por meio de Giulio Cesare Cappa) com seu T54 de 1931. Se procurarmos com cuidado devem existir mais.
Mas voltando a Miller, em seu carro o câmbio era super compacto à frente do motor (na verdade, funcionava bem só em última marcha, o que em circuitos ovais não era problema), transversal, e transmitia a potência as rodas por novas juntas de velocidade constante. Um tubo De Dion era suportado por quatro molas quarto de elipse, e os freios eram inboard, perto da transmissão. O carro melhorou muito o problema de tração, e era bem mais baixo que os carros convencionais, melhorando também o equilíbrio geral, mas ainda não era uma solução definitiva para o problema de tração.
Miller sabia o que precisava fazer em seguida: tração nas quatro rodas. Mas tal coisa ainda estava no futuro; os carros de tração dianteira tiveram grande sucesso, venderam muito bem (a preços altíssimos, como toda joia sobre rodas que saía de sua fábrica), e fizeram Miller famoso além do mundo de competições. E esta fama o levou à outra figura famosa da história do automóvel: E.L.Cord.
Cord já comandava ali a Auburn, a fábrica de motores Lycoming, e a Duesenberg. Fred e Augie Duesenberg eram como Miller criadores de carros de corrida de sucesso, mas que depois do fracassado modelo A de rua tinham sido contratados por Cord para criar o “melhor carro do mundo”, que seria lançado em 1928 como Duesenberg J. Não satisfeito com isso, Cord resolveu que iria lançar uma marca com seu nome, e o carro de prestígio que a lançaria teria tração dianteira.
Para tanto, contrata como consultor quem teoricamente era o maior especialista na matéria nos EUA: Harry Miller. O que Cord parece não ter notado é que o sistema usado nos carros de competição era totalmente inadequado para as ruas. Mas de qualquer forma, Miller teve uma constante fonte de renda por dois anos durante o desenvolvimento do carro, e royalties por cada carro vendido depois disso. O carro resultante, chamado Cord L-29, é um grande clássico hoje.
Miller recebeu também três L-29 como parte de seu acordo, que se tornaram seus carros de uso. Em um deles, substituiu o antiquado oito-em-linha Lycoming de válvulas no bloco por um de seus motores de corrida: um belíssimo V-16. Então já em 1929, Miller andava diariamente com um carro de tração dianteira equipado com um exótico V-16 de quatro comandos e quase 300 cv. Imaginem o que era isso, numa época que um Ford modelo A tinha 40 cv e era considerado adequado.
Cord foi útil também aconselhando Miller financeiramente. Vislumbrando a crise financeira profunda que viria nos anos 1930, Cord aconselha Miller a aceitar a oferta de compra de sua empresa que a Schofield Co. tinha-lhe feito. A venda, milionária, acontece em fevereiro de 1929, pouco tempo antes da “quinta-feira negra” mergulhar o país na recessão. Miller aos 54 anos podia se aposentar confortavelmente, e se mudou com a família para o interior de Wisconsin, onde tinha nascido.
Mas nada disso deu certo, pois Miller não conseguia ficar longe de sua arte. Já no início de 1930 estava de volta a Los Angeles, onde abriu outra fábrica. Em dezembro do mesmo ano, sua antiga empresa, chamada então Miller-Schoffield, vai à falência, e Miller recompra seus desenhos e moldes, e recontrata seus funcionários. Mas dali adiante, em meio a uma recessão terrível, nunca mais gozaria da mesma prosperidade.
O futuro com tração nas quatro rodas
E é neste momento, mais precisamente em junho de 1931, que a história de Miller e da F.W.D. Company se juntam. Após a corrida de Indianápolis em maio, Miller pega seu Cord V-16 e em vez de voltar à Califórnia, vai até Clintonville, WI, para conversar com Walter Olen na sede da F.W.D.
A ideia de Miller, apresentada a Olen, era otimista e visionária. Miller tinha grande habilidade para vender suas ideias avançadas para quem entendia de engenharia, e ao que tudo indica ambos os lados saíram animadíssimos da reunião. O que Miller desejava fazer com ajuda da F.W.D. Company era o seguinte:
– Um time de carros de corrida patrocinada pela F.W.D. e com tração nas quatro rodas com objetivo de vencer s 500 Milhas de Indianápolis no ano seguinte
– Criar um automóvel de rua com tração nas quatro rodas, de altíssimo desempenho e preço, o mais fantástico carro de rua jamais criado. Devia superar o fantástico Duesenberg J.
– O motor deveria ser o V-16 de Miller, igual ao usado no Cord L29 que mostrara a Olen em sua visita.
Miller também pretendia, mas não deve ter achado oportuno discutir naquele momento, um carro para bater o recorde mundial de velocidade em terra, também com tração nas quatro rodas, claro.
No fim, apenas um carro de corrida foi pago pela F.W.D. Company. Era um chassi simétrico, igual nas duas extremidades. O diferencial era preso ao chassi, e a suspensão era por um eixo De Dion, suportado por quatro molas quarto de elipse, e semi-árvores com juntas de velocidade constante, como era a prática dos Miller de tração dianteira. O motor, para seguir as novas normas das provas americanas (a “Junk formula” que tentava trazer motores produzidos em série: máximo quatro carburadores de corpo simples, sem compressor, máximo de 366 pol³/6 litros de cilindrada), era um novo e compacto V-8, com quatro comandos, quatro válvulas por cilindro, e 310 pol³/5,1 litros.
O carro de rua não se tornou realidade produzida em série. O “Miller – F.W.D. Special” participou da prova de Indianápolis por alguns anos até o início da Segunda Guerra Mundial. Depois dela, participou de algumas edições da corrida de Pikes Peak, nas mãos de Bill Milliken. O carro sempre teve desempemho exemplar, mas problemas mecânicos diversos nunca bem resolvidos acabaram por fazê-lo abandonar cedo a maioria das corridas, e nunca ganhar nenhuma. O carro de recordes de Miller? Nunca saiu do papel.
O Miller-Burden Roadster
Quando o “Miller – F.W.D. Special” estreou na corrida de 1932, porém, algo inusitado aconteceu. Um segundo carro, idêntico ao carro da empresa de Clintonville, aparece também para competir, patrocinado por um certo William A.M. Burden. Miller tinha feito paralelamente uma cópia do primeiro carro para aumentar as chances de vitória. Mas os carros ficaram prontos praticamente na véspera da corrida, e, portanto, não foram testados o suficiente: ambos não terminaram a prova, saindo prematuramente com as caixas de transferência do sistema de tração nas quatro trincadas e vazando óleo. Leo Goossen confessaria depois a Borgeson que errara feio no desenho deste conjunto; era muito pequeno e fazia o óleo esquentar demais por isso. Nos anos seguintes, usariam uma caixa de transferência da F.W.D. Company, maior e mais confiável.
E quem era o tal misterioso patrocinador? Bill Burden era um entusiasta do automóvel com dinheiro para aproveitar o que havia de melhor neste campo. Tataraneto do Comodoro Cornelius Vanderbilt, o homem mais rico do mundo no seu tempo, nasceu dono de uma fortuna inimaginável. Teve uma vida produtiva, porém: é um dos fundadores do Museu de Arte Moderna de Nova York, foi embaixador americano na Bélgica, e chefiou o Instituto de Defesa do governo americano por mais de vinte anos. Burden também fundou uma companhia para cuidar da fortuna da família Vanderbilt, num momento em que ela começava a diluir; por sua causa, sua empresa cuidando coletivamente do dinheiro de todos os herdeiros, até hoje uma multidão de descendentes do Comodoro, que cresce exponencialmente, vive uma vida confortável. Para ser acionista desta empresa de investimento, ou se nasce na família, ou se casa com a família…
Mas o que interessa aqui é como Burden entrou nesta história. No verão de 1932, convida Miller para visita-lo em sua casa em Nova York (os Burden são uma das famílias mais tradicionais e influentes desta cidade, até hoje). Miller e Goossen são recebidos em um apartamento como nunca viram antes, de frente para o Central Park, e lá conhecem Bill Burden e seu amigo Victor Emanuel, outro biliardário nova-iorquino entusiasta do automóvel. Ambos, é claro, eram donos de Duesenbergs SJ, o mais potente e veloz carro de série de então, mas queriam algo mais. Miller não podia ficar mais feliz: tinha na manga um projeto pronto para isso, o mesmo que tinha dado com os burros n’água com a F.W.D. Company. A fome e a vontade de comer, se unindo.
Os milionários não queriam produção em série: queriam apenas dois carros, um para cada, e muita discrição por parte de Miller e sua empresa. Não faria bem muita gente saber que, naqueles tempos de dificuldades generalizadas da grande depressão americana, dois jovens milionários estivessem gastando uma verdadeira fortuna em brinquedos inconsequentes. Miller fixou o preço em 35 mil dólares cada.
Para se ter uma ideia, um Packard custava então algo em torno de 3 mil dólares, caro se pensarmos que um Ford saia por algo em torno de 500 dólares, já com o novo e potente motor V-8. Um Duesenberg SJ, caríssimo e exclusivo, podia ser adquirido por oito mil dólares.
Mas o carro de Miller seria muito mais que isso. Usaria a mecânica do carro de competição, um chassi maior exclusivo, e o superexótico V-16 de cinco litros, mas numa versão ainda mais desenvolvida: com compressor tipo Rootes, Goossen estimou que algo em torno de 500 cv fossem possíveis. A construção do carro começa imediatamente.
Mas vários problemas aconteceram ali. A depressão se agravou e os negócios de Miller iam de mal a pior, culminando na falência da empresa em 1933. Sucessivos atrasos no projeto minavam a confiança de Burden e Emanuel com Miller; Emanuel logo abandonava a empreitada, deixando Burden sozinho, com custos obviamente aumentados e renegociados. No momento da falência, o carro ainda não estava pronto, e um grande período de incerteza se seguiu, para desespero total do pobre mecenas nova-iorquino. Um acordo finalmente foi fechado para que Fred Offenhauser terminasse o carro, para que o resto do dinheiro ainda a pagar fosse recebido com a sua entrega. No fim de 1933, finalmente William Burden recebe seu magnífico roadster preto.
E que maravilha era aquilo! Para se manter discreto em um país empobrecido, o mais caro carro da época não recebeu nenhum cromado: rodas, radiador e todo o resto eram pintados de preto fosco. O motor V-16 de duplo comando de válvulas e quatro válvulas por cilindro recebia um compressor Rootes montado entre o volante e a transmissão (alongando-o consideravelmente), e um câmbio manual de três marchas. Depois do câmbio, o sistema distribuía por meio de um diferencial central a potência para os dois eixos de forma igual. As suspensões eram como no carro de corrida: dois eixos de Dion simétricos. Tinha apenas dois lugares, e um pequeno teto conversível.
Como não podia deixar de ser em algo desenvolvido aos tropeços, o carro tinha vários problemas, mas todos simples de solucionar, clássico caso de algo que foi criado para ser grande, mas com o desenvolvimento fino amputado antes do tempo. Geometria de suspensão não muito bem acertada, arrefecimento deficiente, direção pesada e “estranha” foram reportados por Burden. Mas com a empresa falida não existia ninguém para acertar o carro “na garantia”. O dono perde a paciência e o vende de volta para Offenhauser, depois de menos de um ano com ele. O preço? Meros 600 dólares. Logo em seguida seria desmontado, suas peças usadas sem cerimônia em vários outros projetos de competição.
Uma pena, porque alguns meses de ajuste a mais certamente fariam do Miller-Burden um dos maiores carros já criados até ali, certamente. As circunstâncias conspiraram para que nenhum dos carros de tração nas quatro rodas de Miller tenha tido o desenvolvimento que mereciam; os carros ficaram prontos, mas sem que seu desenvolvimento fosse concluído. Com isso, a tração nas quatro rodas em veículos de alto desempenho teve um grande hiato, só voltando com os esforços de Harry Ferguson e a Jensen nos anos 1960. O Miller-Burden Roadster permanece como algo que aconteceu quase como um sonho passageiro, sumindo completamente depois como fumaça.
Mas não sem antes inspirar um relato incrível do irmão de Bill Burden, Shirley, publicado na biografia de Bill, e reproduzido no livro de Borgeson. O irmão, que era macho apesar do nome de mulher, estava morando em Los Angeles, trabalhando no estúdio RKO, e chegou a levar a namorada (uma sobrinha de Douglas Fairbanks) para passeios com o Miller por Los Angeles antes de despachar o roadster para o irmão. Reportou que acelerava como algo que nunca vira antes, e achou o carro magnífico.
Mas o mais incrível foi o testemunho reproduzido abaixo, que acredito ser perfeito para terminar este assunto:
“Um dia recebi um telefonema de meu irmão em Nova York. Ele me disse que ele e Victor Emanuel, outro maluco por carros como ele, tinham encomendado dois Miller especiais em Los Angeles. Ele explicou que Victor se cansou de pagar e não ver carro algum, e tinha cancelado seu pedido. Isto deixou meu irmão sozinho segurando a conta. Ele me explicou o que tinha pedido: um carro de dezesseis cilindros, tração nas quatro rodas, com compressor e 500 cv. Queria que eu arrumasse um advogado e fosse até a fábrica para ver o que estava acontecendo. Eu contatei Dan O’Shea (advogado da RKO), e ele se prontificou a me ajudar.
Alguns dias depois estávamos nós a caminho para ver o tal Miller. Eu não sei o que Dan esperava, mas eu visualizava uma garagem com alguns mecânicos sujos de graxa suando em cima de um bloco de motor com furos. Quando chegamos na fábrica foi uma grande surpresa: era uma fábrica em todo senso da palavra; tomava pelo menos três quartos do enorme quarteirão. Lá conhecemos Fred Offenhauser, o gentil cavalheiro de jaleco branco que comandava a operação.
A oficina estava cheia de todo tipo de máquinas; tornos, fresas, prensas, etc. Em cada máquina um mecânico trabalhava num pequeno objeto brilhante qualquer, com todo cuidado e reverência. Muito mais tarde, quando o passeio pela planta estava chegando ao fim, tomamos coragem e perguntamos a Offenhausen onde estava o carro de meu irmão. Ele explicou, com uma voz tolerante, que tínhamos acabado de vê-lo. Todas aquelas pecinhas brilhantes quando montadas iriam fazer um lindo Miller Special. Quando saímos perguntamos quantas pessoas trabalhavam ali: vinte e cinco era a resposta.
Não conversamos muito no caminho de volta. Realmente não havia muito que conversar. A conclusão era óbvia. Aqueles homens eram artistas. Dinheiro não tinha importância, especialmente quando era dinheiro de outra pessoa. Se você quisesse o carro, você tinha que pagar e aceitar seus termos. Foi duro explicar isto para meu irmão, mas acho que ele entendeu. Muito tempo e muito dinheiro depois, o carro ficou pronto. A carroceria tinha formato de torpedo, e era pintada de preto. Tinha dois bancos esportivos bem desconfortáveis, um parabrisa baixo, e era conversível. O motor, que parecia tomar três quartos do carro, era maravilhosamente belo, um prazer aos olhos. Se andava ou não, não importava. Devia estar num museu.”
MAO
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