Aproveitei o produtivo Carnaval para terminar de ler as memórias do mecânico boa-praça, da editora Bentley Publishers. A palavra hack tem vários significados, e pode também significar “dica”, no sentido do livro em questão.
Mas o que importa não é tanto o título, e sim o delicioso conteúdo. O autor teve mais de cinquenta BMWs em cerca de trinta e cinco anos, quando publicou o livro no começo de 2013. Ele passa sua história de vida ao redor dos carros, que sempre manteve como mecânico caseiro, desde antes de estudar na universidade. Seu primeiro carro o fez ter que aprender mais do que sabia para poder continuar rodando, um Triumph GT6 (“Um lixo britânico, isso é o que ele era”).
A paixão pelos BMWs começou com o modelo 2002, o pequeno sedã duas-portas fabricado de 1968 a 1976, dos quais cerca de 112.000 foram vendidos nos Estados Unidos. Esse carro, na sua próxima evolução, estrearia a designação série 3. Siegel conta casos de todos os tipos ao redor desse modelo, explicando em detalhes as diferenças dos carros carburados e dos com injeção, até o tii com lanternas circulares, o suprassumo do modelo.
Outros BMWs passam pela história como o cupê 3.0 CS que ele tem há mais de vinte e cinco anos, além de carros para uso mais comum, como os Chevrolet Suburban, que só rodavam nas férias quando os filhos ainda moravam com os pais, os carros da esposa, sempre mais novos para serem mais confiáveis e menos delicados de serem usados a qualquer momento e com qualquer tempo, já que a cidade onde reside, Newton, está próxima de Boston, onde o inverno e as ruas onde sal é despejado para derreter o gelo são ambiente amigo da ferrugem e destroem qualquer coisa mais antiga.
Nesse ponto fica claro que os carros da era pré-galvanização da chapa de aço não devem ser usados no inverno, e Siegel deixa claro que encontrar um 2002 em que ambos para-lamas dianteiros não foram trocados devido à corrosão é algo quase impossível. Um potencial comprador para um de seus carros disse que iria dirigir o carro todos os dias, e que não tinha garagem coberta. Siegel o convenceu a pensar melhor, já que segundo ele, o carro teria toda sua parte inferior corroída em seis meses depois do primeiro inverno na rua, e não vendeu o carro ao homem, que o telefonou mais tarde, no mesmo dia, e agradeceu pela lição de lucidez.
Sua dedicação à marca o fez ser convidado pelo BMW Car Club of America para escrever a coluna mensal na revista Roundel, com dicas e histórias de como cuidar dos carros, e daí vem o título do livro. Hack Mechanic é o nome da coluna, ainda publicada, e que começou regularmente a sair em 1987, após três matérias enviadas à revista sem que lhe fosse pedido.
Mas o que Rob Siegel destaca ao longo do livro é que o mais importante não são os carros, mas sim as pessoas que cruzam nosso caminho devido a eles. Assim surgiram amizades de toda vida, histórias de coleguismo e humanidade com pessoas que nem mesmo eram conhecidas, ajuda a quem se depara com problemas sérios e muito mais que a relação humana pode trazer. Um de seus amigos mais chegados, Alex, era funcionário de uma oficina independente de BMWs, e Rob o conheceu logo após comprar seu primeiro 2002, marcar uma viagem com a noiva e não ter tempo de trocar uma porta totalmente corroída de seu carro. Ele foi até a oficina e pediu uma porta emprestada, e a empatia com Alex foi imediata, que lhe emprestou a porta no mesmo dia. A viagem foi perfeita, o carro funcionou conforme desejado, e Rob pediu a mão de Maire Anne em casamento, no topo de uma trilha nas Montanhas Rochosas. Ela aceitou, mas hoje em dia diz que foi apenas porque Rob estava carregando a comida.
Hilário também é a troca de um motor do Passat 1,8 Turbo do amigo Alex, fundido devido aos problemas de lubrificação que eram comuns nesse modelo 1999. Siegel fez a troca por um motor mais novo, em sua casa, sem a participação do amigo em quase todo o serviço, já que este viajava muito a trabalho e ainda por cima estava em processo de divórcio. Foram dois meses com peças sendo procuradas e compradas, mais cinco semanas de trabalho a noite e nos finais de semana, incluindo a troca para aproveitar componentes do motor falecido, que tinha vários componentes externos melhores que do mais novo. E com três BMWs estacionados na rua para dar espaço ao trabalho. E com o inverno chegando. Amigos são para essas coisas.
Já no começo da obra é explicado que tanto ele quanto sua esposa são admiradores incondicionais dos câmbios manuais, só comprando automáticos quando não há outro jeito, como no caso das várias Suburbans. Pela sua experiência de viver entre automóveis todo tempo, ele diz que os carros como esse tipo de câmbio sempre “comem a transmissão” mais dia, menos dia. Além disso, ele nunca comprou um carro novo na vida, sempre preferindo os usados pelos preços convidativos, sempre abaixo de US$ 30.000, somado ao verdadeiro amor em cuidar dos carros necessitados e a falta de charme em um carro novo, em que não se precisa abrir o capô durante anos. Daí já se vê que não se trata de uma família tipicamente americana, ele um engenheiro especialista em desativação de explosivos, e sua esposa, uma bióloga especializada em insetos, que ocupam um quarto da casa com seus viveiros. Há também algumas aranhas (arrepio !), entre outros animais.
Com vários capítulos de dicas gerais de conserto e manutenção em capítulos separados para fácil pesquisa, o autor dá orientações valiosas sobre muita coisa que atormenta o mecânico caseiro, como uma magnífica lista de coisas a se verificar para ter um carro mais confiável, remoção de parafusos, prisioneiros e porcas presas, ar-condicionado inoperante, ruídos em geral, suspensões delicadas, motores que não ligam, que tipo de carro antigo comprar, o que usar no dia a dia e muito mais, tudo pontuado com muito bom humor.
Mesmo com sua dedicação quase total aos BMWs, Siegel faz questão de ser realista (característica de engenheiro), e deixa claro os pontos fracos da marca, como as suspensões com inúmeros componentes justos e precisos que, ao serem responsáveis pela ótima dirigibilidade, são também pouco duráveis, mesmo no piso americano. Além disso, explica em detalhes os problemas do sistema de arrefecimento dos modelos de pouco mais de vinte anos para cá, com muitas partes plásticas nesse conjunto, e dá a durabilidade de cada componente, baseado na sua vivência e de amigos, além da informação reunida pelo BMW Car Club of America com cerca de 100 mil proprietários e mecânicos. Segundo ele, carros com mais de 150.000 km não são algo que os alemães gostem ou considerem economicamente viáveis de manter, e a fábrica apenas aderiu a esse hábito, aproveitando para economizar.
Além disso, é curiosa sua explicação de que restaurações completas não estão ao seu alcance, e ironiza o programa Overhaulin’, em que um carro é totalmente renovado em uma semana, sem que o dono saiba, e com modificações que podem não ser do agrado. Siegel mostra o quão importante é o carro ser cuidado de forma a ser confiável, sem, por exemplo, o fanatismo de carregá-los em reboques apenas para serem mostrados em exposições. Mostra também que originalidade tem limites, e que componentes podem ser trocados por outros mais modernos para que um carro seja mais facilmente utilizado, isso, claro, desde que não seja um carro em absoluta condição original e de raridade inquestionável.
Um dos passatempos preferidos de quem gosta de carros velhos ou antigos é procurar anúncios na internet, coisa que ele também faz muito, cerca de dez horas por semana. Descreve isso como uma obsessão compulsiva, mas conta que vários bons carros foram comprados assim, além de ótimas vendas e novos amigos feitos.
Ao final, no capítulo “Quando os carros morrem”, compara a morte do ser humano com a de um carro, que pode ter seu coração trocado (o motor) e voltar a viver. Fala sobre os carros que jazem abandonados em casas, galpões e terrenos, e que, já tendo morrido, não conseguem receber uma despedida definitiva de seus donos. É o que vemos sempre, carros que jamais serão consertados ou restaurados, mas cujos proprietários se recusam a passá-los adiante para quem quer fazer algo por eles.
Um entusiasta de efetuar tarefas complicadas aos poucos, com objetivos simples e de mais breve alcance, Siegel diz que em sua lápide poderá ser escrito: “Ele era um cara muito prático e com um bom histórico de alcançar metas de curto prazo. Ele pensava que poderia construir um foguete em pequenas porções e ir a Marte, mas, tristemente, faltava espaço na garagem”.
Um magnífico livro sem pretensões literárias, mas um empolgante motivador para qualquer um que gosta de carros mas não tenta nem mesmo trocar as pastilhas de freio, além do fato de contar passagens deliciosas do relacionamento com os três filhos homens e a esposa, Maire Anne, sempre apoiadora de suas incríveis loucuras, com um humor ótimo, como quando ele explica que um conhecido gastou vinte mil dólares em consertos em um único carro de uma vez, e que ele nunca fez isso. Maire Anne lhe responde: ” Sim, mas você gastou dois mil em dez carros “.
O livro pode ser encontrado no site da editora: http://www.bentleypublishers.com/bmw/history/memoirs-of-a-hack-mechanic-by-rob-siegel.html, além, claro, da Amazon.
E um apêndice com mais dicas além das do livro está também disponível: https://wiki.bentleypublishers.com/display/tech/Online+Appendix+-+Memoirs+of+a+Hack+Mechanic+-+Rob+Siegel;jsessionid=A37D1FAE032311C83E72FE84BE5F191C
JJ