O livro cujo título completo é 747 – Creating the world’s first Jumbo Jet and other adventures from a life in aviation (747 – Criando o primeiro jato Jumbo e outras aventuras de uma vida na aviação), de Joseph F. Sutter com Jay Spenser, é muito interessante em vários aspectos, como a história da evolução dos aviões de passageiros, da própria Boeing, os desafios e incríveis oportunidades da carreira de um engenheiro aeronáutico, as gigantescas dificuldades de se projetar um avião com dimensões muito maiores do que se fazia até então, e o gerenciamento de projetos e de pessoas.
O livro é facilmente encontrado em sites de buscas e na Amazon, tanto novo quanto usado, e não vai decepcionar quem gosta de aviões, engenharia, boas histórias e grandes desafios.
Joseph Sutter, que é chamado de “pai do Boeing 747”, nasceu em 21 de março de 1921 em Seattle, Washington, cidade sede da Boeing, filho de uma família eslovena. Seu pai, após chegar aos Estados Unidos, explorou ouro no Alasca, e encontrou um depósito do metal precioso que vendeu a um sueco por US$ 15.000 no início dos anos 20, uma fortuna.
Com o dinheiro se estabeleceu em Seattle e abriu um frigorífico. A família prosperou financeiramente e o pequeno Joe, entre as brincadeiras de crianças, sempre gostou de livros de todo tipo, e das poucas revistas que existiam, sua escolha sempre era as que mostravam novidades técnicas. Desenvolveu um gosto pelos estudos, mesmo participando de todos os esportes ao ar livre quando o clima permitia, e de quase ter acabado com a própria vida rolando dentro de um pneu de caminhão morro abaixo, pulando para fora antes de bater no muro de uma fundição. O pneu foi cair lá dentro, de uma altura que não valia a pena nem tentar recuperá-lo.
Com a Boeing tendo sido fundada em 1916, Sutter cresceu vendo aviões voando por sobre sua cidade, e sua curiosidade a respeito dessas máquinas só foi crescendo. Como sua casa ficava a pequena distância da fábrica e de sua pista, Joe e seus irmãos iam muitas vezes a pé até a lateral da pista para ver os aviões sendo movimentados em solo e alçando voo.
Ele se lembra muito claramente das notícias em 1927, com seis anos, quando Charles Lindbergh cruzou o Atlântico norte em 33 horas e meia a bordo de um monomotor Ryan. A notícia foi muito impressionante para ele, e sua curiosidade sobre o que um avião poderia fazer foi alimentada pela sua mente de criança, que, por bênção divina, é sem limites quando temos essa idade.
Um ano depois a Boeing lançava o trimotor 80A, para 14 passageiros, e alguns meses depois começariam os efeitos da Grande Depressão econômica de outubro, no mesmo mês em que James Doolittle realizava o primeiro voo completamente por instrumentos, provando que mesmo com problemas econômicos, não se podia deixar de avançar a tecnologia.
E assim Joe Sutter não mais abandonou sua ideia de trabalhar com aviões, vendo constantemente progressos tanto da Boeing quanto de outros fabricantes, tanto em seu país quanto em outros, e tinha uma grande curiosidade pelos voos de longa duração, que na década 1930 chegaram ao ápice com os hidroaviões. Fácil entender por que tudo que voava para longe deveria ser capaz de descer e subir na água. Não haviam pistas de dimensões seguras e com piso para grandes aeronaves em qualquer lugar do mundo, mas água nunca foi problema.
Somente durante a Segunda Guerra Mundial é que muitas pistas de grandes dimensões foram feitas em vários pontos do globo, e passado o conflito, havia um novo panorama que iria se desdobrar com o fato de não mais serem necessários aviões que operassem na água para longas viagens, permitindo um desenho de melhor aerodinâmica, mais velocidade e mais altitude.
Sutter entregava jornais quando criança, e seu caminho sempre terminava em Boeing Field, onde ele encostava a bicicleta na cerca e via a história da aviação se desdobrar, e ao ver diferentes modelos, como o primeiro caça monoplano feito pela Boeing, o P-26, pensava o que teria sido imaginado e explorado para deixar de fabricar um avião biplano e passar a um monoplano.
Mas quando em fevereiro de 1933 ele viu pela primeira vez o Model 247, um avião para dez passageiros com asa baixa, bimotor e com trem de pouso retrátil, Joe Sutter entendeu que ele queria ser um projetista de aviões.
Alguns poucos anos depois, quando o Douglas DC-3 fez surgir pela primeira vez companhias aéreas que cresceriam e lucrariam, deixando o Model 247 já obsoleto no mercado, ele sentiu que a concorrência era algo muito forte nessa indústria. Viu a sua cidade ser deixada para trás nesse aspecto, algo que para um jovem foi muito marcante. Muita gente de Seattle trabalhava na Boeing, e era claro para ele que menos aviões significavam menos conhecidos e amigos trabalhando.
Sua absoluta obsessão por desenhar aviões foi definitivamente alimentada quando, em 7 de junho de 1938, ele presenciou o primeiro voo do Boeing 314 Clipper, um hidroavião de quatro motores. Decolando da água, dentro da baía de Puget Sound, onde está a cidade de Seattle, o avião foi curvando lenta mas continuamente para a terra, desaparecendo por detrás dos morros, e Sutter sabia que havia algo errado, pois esse tipo de voo tinha que ficar sempre sobre a água, para o caso de uma emergência.
O avião pousou no lago Washington, do outro lado da cidade, evitando um acidente. Sutter veio a saber pelos jornais que não havia leme de direção com autoridade suficiente, e o 314 simplesmente não teve como voltar à baía junto da Boeing. A mesma coisa aconteceria um tempo depois, com consequências fatais. O protótipo do avião que se tornaria o B-17 de largo uso na Segunda Guerra Mundial também voou pela primeira vez com uma deriva vertical muito pequena, e caiu, matando uma tripulação da Boeing.
Estava claro que existia muito a aprender, e Sutter teve a certeza que planejar e projetar um avião era algo importante, e teve certeza que esse era seu futuro. Com uma inabalável fome de aprender se matriculou no curso de engenharia aeronáutica da Universidade de Washington. Veio então o conflito de maiores proporções de todos os tempos, a Segunda Guerra Mundial, quando ele serviu na Marinha, e logo depois de dar baixa teve a oportunidade de escolher entre a Boeing e a Douglas para trabalhar.
Os salários eram diferentes, com desvantagem para a Boeing, mas sua origem falou mais alto, e assim ele optou por continuar perto de casa. E assim, em 1946 Sutter entrou para a Boeing e trabalhou em todos os projetos que foram feitos ao longo dos anos, com desafios cada vez maiores e cargos cada vez de maior responsabilidade, passando pelo começo da era do jato, primeiro o B-47 que já estava em projeto, sendo o primeiro bombardeiro a jato de sucesso, o 707, o primeiro jato comercial a funcionar sem maiores problemas e preocupações, o 727 e o 737, do qual foi retirado por seu chefe para a definitiva atividade que o tornaria mundialmente famoso no meio aeronáutico.
Em agosto de 1965, durante as férias, Sutter foi chamado com urgência à empresa, para que começasse imediatamente um projeto que seria o mais difícil de todos os que a Boeing tivera. Sutter iria ser o engenheiro-chefe do projeto 747.
O livro discorre então, sobre as pressões de Juan Trippe, o presidente da Pan American World Airways, a mítica Pan Am, maior empresa aérea do mundo. Trippe era um executivo à frente de seu tempo, e via a necessidade de uma avião maior do que tudo que existia, com capacidade para até 500 passageiros.
Joe Sutter foi o maestro da conceituação do que viria a ser batizado de Boeing 747, e apelidado de Jumbo. No livro, ele conta com detalhes as discussões com sua equipe sobre como deveria ser a configuração do avião, concluindo que a ideia de Trippe, uma aeronave com dois pisos, era pior que a sua, uma fuselagem larga e com dois corredores entre as poltronas.
Numa reunião para apresentar o conceito do primeiro wide-body (fuselagem larga) do mundo, o engenheiro que gerenciava o projeto do interior do avião foi à sede da Pan Am sozinho, para apresentar como seria o 747. Chegando bem mais cedo do que o horário da reunião, teve tempo de perceber e medir a largura da sala, 20 pés (6,10 m), que por coincidência era exatamente a largura do interior do avião. Um golpe de sorte que foi de imensa ajuda.
Trippe e seus diretores chegaram, observaram os desenhos, claramente não gostando de não ver o avião com os dois pisos como ele havia solicitado, e, ao ser dito que a largura da cabine de passageiros era a da sala, deixou a todos boquiabertos, e Trippe ordenou que fosse feito um mock-up (modelo escala natural) da proposta, mas também a do avião de dois pisos.
Depois de alguns meses, na visita à Boeing para definir de vez o que seria o 747, Bill Allen, presidente da empresa e amigo pessoal de Juan Trippe, o guiou pelos dois mock-ups, e simplesmente não houve como não aprovar a proposta da equipe de Joe Sutter. Nascia a forma final do 747, desenhado a partir de um interior de dois corredores, que é exatamente o que define um wide-body, e permite o acesso para entrada e saída muito mais rápido do que em uma aeronave com dois pisos. Sutter também explica que a maior largura de piso permite uma capacidade de carga no porão muito maior, e é arrepiante de se ler os desafios enfrentados para encontrar as soluções ótimas para um avião com um peso máximo de decolagem três vezes maior do que o 707, que era a maior aeronave de passageiros até então fabricada pela Boeing.
O orgulho que ele coloca nas páginas do livro, com a devida menção a todos os líderes de grupos de engenharia e suas equipes, é notável. Respeito absoluto pelas pessoas que lhe ajudaram a fazer o maior avião de passageiros do mundo até o surgimento do Airbus 380 em 2005. O 747 “Jumbo” é sucesso absoluto até hoje, depois de dezenas de versões e melhorias em todos os seus sistemas e continua a ser desenvolvido em versão de passageiros e carga, essa tendo nascido já no projeto inicial do avião e sendo a responsável pela cabine de comando acima do piso principal, para evitar que um acidente com deslocamento de carga atingisse a cabine e permitir a construção de um nariz que abrisse para cima nessas versões. Joe Sutter conta que ao ver a cabine lá no alto, e a superfície atrás dela formando a famosa corcova, Juan Trippe disse que queria que ali existissem mais poltronas para passageiros, e que seria a primeira classe nos aviões comprados pela Pan Am, mais uma prova da capacidade desse executivo.
Para os que se apetecem mais aos dados técnicos, é fabuloso ler sobre como são definidas algumas coisas em um produto desse tamanho e custo, muitas vezes por pura intuição e golpe de sorte, mas outras vezes só mesmo depois de centenas de horas de discussões e análises de desenhos e rascunhos, naquele tempo feitos à mão, mas já com computadores começando a ser usados no projeto de componentes, mais uma primazia do 747.
Muito bom também entender um pouco da visão da Boeing a respeito de seu mais forte concorrente, a McDonnell Douglas, a filosofia diferente da Lockheed ao fazer o L-1011 Tristar, o primeiro wide-body desse fabricante notório em aviões militares, mas que cometeu alguns erros básicos nesse avião; depois o surgimento da Airbus, os problemas do transporte supersônico de passageiros, no qual a Boeing e o governo americano gastaram bilhões de dólares no projeto 2707, para depois desistirem e verem o Concorde voando pela primeira vez no mesmo ano do 747, 1969.
O livro de Joe Sutter foi lançado em 2006, e ele tem hoje 95 anos, sendo ainda ativo como consultor para assuntos da Boeing.
O vídeo abaixo tem uma curta entrevista com o pai do 747, feita em 2011, após o primeiro voo da versão cargueira 8F do 747.
JJ