Lendo a edição histórica da revista Quatro Rodas de janeiro de 1966, comemorativa dos 10 anos da indústria automobilística brasileira, chamou-me a atenção o artigo-pesquisa de Vergniaud Calazans Gonçalves focando as corridas de automóveis no Brasil. A matéria me fez lembrar os anos 60, 70 e 80, as três décadas de ouro nas quais as indústrias de automóveis participavam de corpo e alma nas corridas, montando equipes que preparavam e pilotavam os veículos desenvolvidos internamente nas fábricas brasileiras.
Rememorando a história, a primeira corrida de automóveis no Brasil ocorreu em 26 de julho de 1908 na cidade de São Paulo. O circuito era de rua, iniciando no Parque Antártica indo até Itapecerica da Serra e retornando ao ponto inicial. A sede do Palestra Itália, hoje Sociedade Esportiva Palmeiras, estava completamente lotada, com a presença de Washington Luís, Secretário de Justiça do Estado de São Paulo e também de Alberto Santos-Dumont, o pai da aviação.
Os quinze carros, Renault, Fiat, Lorraine-Dietrich e Lion-Peugeot entre outros, estavam alinhados em frente ao Parque Antártica e os pilotos, prontos para correr os 75 quilômetros do circuito, eram aclamados como verdadeiros heróis pela multidão de dez mil pessoas que assistiam o espetáculo. O jornal O Estado de S. Paulo deu destaque na sua edição de 27 de julho de 1908, “da largada até o fecho do circuito, uma multidão colossal estacionava pelas ruas, aplaudindo freneticamente os concorrentes à sua passagem, em especial o vencedor Sylvio Álvares Penteado, pilotando o Fiat 1906 de 40 HP, perfazendo o tempo de 1 hora, 30 minutos e 5 segundos, com média de 50 km/h aproximadamente”.
Somente em 1916, oito anos após, é que os carros voltariam roncar pelas estradas paulistas, no longo e difícil percurso entre São Paulo e Ribeirão Preto, na segunda corrida realizada no Brasil.
Mas o automobilismo esportivo brasileiro custou a ganhar prestígio e foi apenas na década de 1930 que o ronco dos motores e a habilidade dos pilotos se transformaram realmente em atração popular. Em 8 de outubro de 1933, a inauguração do Circuito da Gávea, na cidade do Rio de Janeiro, o chamado “Trampolim do Diabo”, circuito com 11 quilômetros de extensão e cheio de curvas perigosas, iniciou a fase do automobilismo internacional no Brasil.
Pelas avenidas e ruas estreitas da zona sul, entre trechos planos e subida e descida da serra da Rocinha, as “baratinhas” se misturavam a carros de passeio adaptados em oficinas mecânicas e o vencedor foi o Barão Manuel de Teffé, o próprio idealizador do Circuito da Gávea. E apareceu o ídolo Carlo Maria Pintacuda, italiano que virou sinônimo de vitórias entre os apaixonados pelo automobilismo, ao vencer o Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro de 1937, no Circuito da Gávea. Com seu Alfa Romeo P3 de fábrica, Pintacuda bateu o potente Auto Union C do alemão Hans Von Stuck.
A Segunda Guerra Mundial, com todas inerentes dificuldades, interrompeu as corridas no Circuito da Gávea, que somente voltaram com força apenas após o final da guerra em 1945, aparecendo o nome de Francisco “Chico” Landi, um ex- mecânico de São Paulo, como grande piloto da época, com seus Alfa Romeo. Em foi em 1948 que ele conquistou sua última vitória no Circuito da Gávea.
Em seus vinte e um anos de existência e 16 corridas, o “Trampolim do Diabo” encerrou suas atividades em janeiro de 1954, entrando para a história.
Em São Paulo, já existia o Autódromo de Interlagos, inaugurado em 12 de maio de 1940, porém sem atividades relevantes até 1947. Como curiosidade, com a Segunda Guerra Mundial impondo forte racionamento de combustível, houve várias corridas com os veículos adaptados para o uso de gasogênio, que nada mais era do que um sistema que obtinha o inflamável metano a partir de queima do carvão.
Em 1947 foi disputada a primeira prova Internacional de monopostos de Grand Prix, precursora da Fórmula 1. Nesta prova várias equipes europeias estiveram presentes e seu ganhador foi o piloto italiano Achille Varzi da equipe Alfa Romeo, com Chico Landi em segundo lugar. Nesta corrida foi registrado o primeiro acidente fatal em Interlagos, quando com o estouro de um pneu o italiano Luigi Villoresi perdeu o controle de seu Maserati e feriu vários espectadores, com a morte de um deles. Em 1951 Interlagos foi palco da primeira corrida de longa duração, a ”24 horas de Interlagos”, promovida pela Mercedes-Benz alemã com carros 170 S e 170 D, este a diesel.
E realizou-se em 24 e 25 de novembro de 1956 a primeira “Mil Milhas Brasileiras”, em Interlagos, onde predominaram os carreteras, sedãs e cupê das décadas de 30 e 40 aliviados em peso e com enormes motores V-8, advindos dos carros americanos Ford e Chevrolet. A vitória foi da dupla gaúcha Catharino Andreatta e Breno Fornari pilotando um carretera Ford. A corrida foi um sucesso de público e crítica, e se transformaria na mais tradicional prova automobilística do Brasil.
A pista de Interlagos já era uma realidade, com seu traçado elogiado e reconhecido internacionalmente como um dos melhores do mundo e onde os paulistanos fizeram a sua praia, assistindo às corridas ou até mesmo acampando em barracas dispostas ao longo da pista. As provas se sucediam sempre com grande sucesso e o automobilismo nacional se desenvolvia a olhos vistos.
E foi com o presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira que o automóvel brasileiro se tornou realmente uma realidade, com a política incentivos para a fabricação de veículos brasileiros inaugurando nova nova fase da industrialização do pais.
Na década de 1960, o brilhantismo do automobilismo brasileiro foi resultado principalmente das equipes de fábrica como Vemag, Willys-Overland, Simca e Fábrica Nacional de Motores, que fabricava aqui sob licença o FNM 2000 JK, versão brasileira do Alfa Romeo 2000 sedã. Não menos importante foi a atuação de equipes independentes como a Dacon e a Jolly, além da participação dos irmãos Wilson Jr. e Emerson Fittipaldi com veículos desenvolvidos por eles mesmos. Interlagos seria também fundamental para o processo de desenvolvimento de peças e veículos em durabilidade.
Por exemplo, a Vemag, que fabricava o DKW, estipulava a relação de 16:1, ou seja, cada mil quilômetros rodados na pista em ritmo de corrida equivaleriam a 16 mil quilômetros em testes nas ruas e estradas do Brasil. Um evento marcante em Interlagos foi o teste de resistência de 50.000 km do Renault Gordini, que mesmo capotando durante o evento, conseguiu terminá-lo com galhardia e estabelecer recorde mundial.
Interlagos também foi palco de inúmeras corridas de estreantes e novatos, prestigiando os novos pilotos. Aliá,s eram corridas emocionantes com muitas batidas e capotagens. Fazia muito sucesso entre os aficionados do esporte.
A partir de 1966 a crise econômica atingiu as fabricantes e todas as equipes de fábrica foram fechadas causando uma diminuição das corridas no Brasil. Interlagos foi fechado para reformas no final de 1967, sendo reaberto em primeiro de março de 1970, com um torneio internacional de Fórmula Ford, vencida pelo jovem Emerson Fittipaldi, em início de carreira.
Em 1971, Interlagos passou por nova reforma para abrigar no ano seguinte, pela primeira vez, um GP de Fórmula 1. O espaço ganhou guias, sarjetas, galerias para águas pluviais, alambrados nas áreas dos boxes, lavadeiras na pista, túnel para acesso ao interior do circuito e um edifício de quatro andares com dependências para rádio, televisão e tribuna de honra. Após 30 anos de existência, Interlagos se completou com o momento de maior glória do esporte no Brasil. Sediou o GP do Brasil de F-1 de 1973 até 1977, sendo que em 1978 o GP foi disputado em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, voltando à Interlagos em 1983.
Outra prova muito importante no autódromo paulistano foi a 500 Quilômetros de Interlagos, a partir de 1957, uma prova para monopostos realizada no anel de externo do circuito. A velocidade média era elevada pela potência dos carros, Fórmulas 1 Ferrari e Maserati de temporadas anteriores repotenciados com motores V-8 americanos como o do Chevrolet Corvette, uma categoria chamada Mecânica Nacional, depois Mecânica Continental para receber pilotos e carros da Argentina e do Uruguai.
Depois de uma interrupção de nove anos, a 500 km de Interlagos voltou em 1973, existindo até 1976. Voltou nos anos 2000, mas pelo circuito completo.
Como curiosidade, para a homologação de Interlagos para a Fórmula 1 houve uma corrida extracampeonato, de teste, com a participação dos pilotos brasileiros Emerson Fittipaldi (Lotus), Wilson Fittipaldi Jr. (Brabham), José Carlos Pace (Williams) e Luiz Pereira Bueno (March), entre outos. A corrida foi vencida pelo argentino Carlos Reutemann pilotando um Brabham-Ford e, com Interlagos aprovado pela Federação Internacional do Automóvel (FIA), o Brasil começou a fazer parte do calendário da Fórmula 1 a partir de 1973.
No Grande Prêmio do Brasil deste ano o campeão mundial de 1972, Emerson Fittipaldi com seu Lotus 72-Ford, nos deu a alegria da vitória.
Resultados dos GP do Brasil de 1973:
Envolvimento
Foi na década de 1980 que eu mais me envolvi com veículos de competição, ajudando na equipe técnica de preparação dos Ford Escort para o Campeonato Brasileiro de Marcas e Pilotos. Saudosa época da mão na massa e do orgulho de ser engenheiro.
Recordo muito bem o desenvolvimento dos motores CHT Turbo, que tinha a cilindrada reduzida para 1.142 cm³ para, pelo coeficiente 1,4, terem cilindrada equivalente a 1.600 cm³. Junta do cabeçote metálica, suspensões com juntas esféricas e buchas de nylon para maior precisão nas variações da geometria de direção. Os Escort eram os únicos veículos que mantinham o câmber dianteiro bem próximo de zero, com as rodas somente um pouquinho abertas para dar mais apoio.
Os freios, com o desenvolvimento das pastilhas Cobreq-F1, foi uma marco para as corridas, pois seu coeficiente de atrito se mantinha praticamente constante com o aumento de temperatura, mantendo os freios estáveis. Eu do lado da Ford e o Bob Sharp do lado da VW desenvolvemos este material de atrito das pastilhas do freio praticamente em parceria.
Era uma briga danada entre os Ford e os Volkswagen, com destaque para o Ford Escort que venceram muitas provas, à frente dos Passat, Gol e Voyage, mas a Volkswagen acabou dominando cinco campeonatos (1984 a 1988). Todavia, a superioridade do Escort em curvas era notória.
Vou encerrar esta matéria, prometendo uma continuação em segundo capítulo, com outras histórias das competições brasileiras.
Como de costume, encerro a matéria com um elogio. Creio que Bird Clemente seja a representação maior destes pilotos maravilhosos que fizeram a história do automobilismo brasileiro.
CM