Caro leitor ou leitora,
Esta matéria é mais uma colaboração do leitor Daniel S. de Araújo e conta a história do avião comercial mais querido dos brasileiros, o Electra.
Boa leitura!
Bob Sharp – editor-chefe
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ELECTRA, SÍMBOLO DA PONTE AÉREA RIO-SÃO PAULO
Por Daniel S. de Araújo
Quem tem mais de 35 anos e viveu no eixo São Paulo-Rio de Janeiro certamente sabe o significado de Ponte Aérea e viu o Lockheed L-188 Electra ou o “Electra da Ponte Aérea” e seus canudos pretos de fumaça saindo de seus tubos de descarga.
Tão emblemático quanto os famosos “Flechas Azuis” da Viação Cometa e sua carroceria de alumínio retrô montada sobre chassis Scania, o Electra foi a identidade da Ponte Aérea Rio-São Paulo.
Sua história no Brasil começa em 1961 e a partir de 1975, tornou-se equipamento exclusivo da Ponte Aérea, sendo operado de maneira intensiva (partidas de 15 em 15 minutos em dias de semana, no ápice da rota) por 16 anos ininterruptos, sem qualquer histórico de acidente e com apenas dois incidentes graves, um em 1980 (PP-VLY) e em 1990 (PP-VLA), quando em ambas situações, problemas nos trens de pouso obrigaram as aeronaves a realizar pouso de barriga.
A operação intensa do Electra na rota da Ponte Aérea, aliado a um excepcional trabalho de manutenção desenvolvido pela Varig em todos esses anos ininterruptos de operação, foram marcantes e mundialmente reconhecidos não apenas pela segurança dada a operação da aeronave quanto pelo seu grau de disponibilidade, redimindo-a de seus problemas iniciais que acabaram com sua carreira comercial nos Estados Unidos, sua terra natal.
Gestação complexa
O Electra representou a resposta da Lockheed às demandas do mercado aeronáutico dos anos 50: Nesta época, as companhias aéreas americanas (e mundiais) operavam aeronaves dotadas de motores a pistão, bimotores, com os Convair 240/340/440, Martin 202 e 404, e os grandes (para a época) quadrimotores a pistão. Contudo, eram claras as limitações dos motores a pistão de disposição radial, que àquela altura estavam no limite de potência que eram capazes de gerar para a tecnologia da época e o mercado nos anos 50 crescia rapidamente, exigindo soluções rápidas para a obtenção de maiores potências e aeronaves mais velozes. Florescia assim “era do jato”, o emprego da turbina a gás, inicialmente postulado por Sir Frank Whittle na década de 1930.
Dessa maneira, os anos 50 viram o nascimento das grandes aeronaves movidas por turbinas a gás, de reação, cujo primeiro modelo de passageiros, o De Havilland Comet voou em 1949. Contudo, os primeiros turbojatos eram extremamente gastadores e ineficientes para voos curtos e em altitudes menores, além de demandarem um enorme comprimento de pista para decolagem e pouso, o que limitava a operação em aeroportos menores. Assim, o desenvolvimento de motores turbo-hélice, uma ideia surgida na mesma época das turbinas a gás, viabilizaria a construção de aeronaves de melhor desempenho, economia e acima de tudo, com maior confiabilidade, uma vez que os motores radiais de maior potência dos grandes quadrimotores (entenda-se Pratt & Whitney R-4360 Wasp Major e Wright R-3350) não eram exatamente os motores mais simples e confiáveis.
Na corrida pelo turbo-hélice, no entanto, os ingleses partiram na frente e a sua indústria aeronáutica colocou no mercado de motores os legendários Rolls-Royce Dart, Rolls-Royce Tyne e Bristol Proteus e junto a eles, o Vickers Viscount, (primeiro vôo em 1948, entrou em operação em 1953), Vickers Vanguard e Bristol Britannia. Do outro lado do atlântico, por sua vez, os americanos ainda não tinham uma resposta à altura dos ingleses.
Enquanto na Inglaterra o turbo-hélice Rolls-Royce Dart já havia feito seu primeiro funcionamento em 1946 e entrava em operação em 1953 no Viscount, a Allison (uma divisão da General Motors) realizava testes em aeronaves banco de provas visando avaliar o desempenho de seu projeto, o modelo T-56, concebido para emprego no quadrimotor de carga C-130 Hercules, que vinha sendo desenvolvido pela Lockheed (primeiro voo em 1954). O desempenho do T-56, por sua vez, ainda não atingia as expectativas, rendendo apenas 3.000 shp (shaft horsepower ou potência em cavalos-vapor no eixo (valor em medida inglesa, para converter para cavalo-vapor, multiplicar hp por 1,01386) no lugar dos 3.750 shp esperados, o que acabou retardando o produto americano, do ponto de vista comercial.
Nesta mesma época, atendendo a uma solicitação da American Airlines, complementada por especificações da Eastern AirLines, a Lockheed iniciou os estudos de uma aeronave quadrimotora, turbo-hélice, para rotas curtas e médias, inicialmente usando o projeto Hercules como base. Depois, todavia, foi feito um novo reestudo e um novo conceito de aeronave, um monoplano asa baixa foi elaborado. Ainda não se sabia qual motor seria empregado na versão de passageiros do novo turbo-hélice da Lockheed (o T-56 estava frustrando em desempenho, enquanto a Rolls-Royce já tinha o Tyne produzindo potência acima do esperado e o Napier Eland, também inglês, já estava sendo testado no Convair 240), mas mesmo assim a Lockheed continuou o projeto Electra para emprego dos motores T-56 em sua versão civil, conhecida como Allison 501D-13.
O projeto do Lockheed L-188 Electra era refinado: Foi feito criteriosamente visando robustez estrutural, conjugada com uma estrutura leve em liga de alumínio e estrutura fail safe, com distribuição de esforços ao longo da estrutura da aeronave.
Os turbo-hélices Allison T-56 finalmente já estavam com os problemas de nascença solucionados e a sua versão civil, o modelo 501D-13 pôde finalmente ser incorporada ao Electra. A turbina Allison possuía 14 compressores axiais e turbinas de 4 estágios acopladas a um único eixo responsável por virar o compressor e a caixa de redução de relação 13,54:1, onde era acoplada a hélice fabricada pela Aeroproducts e uma das marcas registradas do Electra (e de grande semelhança com um ventilador de teto!). Esse conjunto produzia 3.750 eshp (equivalent shaft horsepower ou potência equivalente no eixo, consistindo na potência recebida no eixo acrescida de sua equivalente, na forma de empuxo através da saída da turbina), pesando apenas 870 kg, em números aproximados!
Pelo fato de a turbina estar acoplado no mesmo eixo utilizado para movimentar o compressor e da caixa de redução (e a hélice, no final de tudo), ele é chamado de direct-drive turboprop (turbo-hélice de acionamento direto), num arranjo completamente diferente da esmagadora maioria dos turbo-hélices, onde uma turbina dedicada (funcionando em eixos concêntricos ou via fluxo reverso — como o lendário Pratt & Whitney PT-6), movimenta a caixa de redução e a hélice, independentemente do outro jogo de turbinas que movimenta o eixo do compressor.
Uma das características da turbina Allison 501D-13 é o fato dela ter um único regime de trabalho: 13.820 rpm. Dessa maneira a aceleração e a desaceleração é feita conjugando mudança no passo da hélice e injeção de combustível na turbina, visando manter o regime de funcionamento. Especificamente no caso da versão 501, há a previsão de uma espécie de “marcha-lenta”, na qual a turbina funciona a 10.000 rpm, visando redução de ruídos em solo (a versão T-56 militar não tem esse refinamento).
E nesse clima de expectativa nascia o primeiro turbo-hélice americano de passageiros, uma aeronave ansiosamente aguardada por todos e a aposta da Lockheed no mercado de passageiros, acreditando no potencial dos grandes quadrimotores (embalada pelo sucesso que o cargueiro Hercules vinha fazendo no mercado militar). Mas…do ponto de vista mercadológico, estaria a Lockheed correta em apostar em aeronaves turbo-hélice de grande porte? Economicamente sim, mas naquela época combustível não era um problema para as empresas aéreas. E assim o Electra, embora tivesse inúmeros predicados, suas vendas caminhavam de maneira lenta. Em 1957, ano do primeiro voo, apenas 132 unidades estavam confirmadas.
E neste cenário todo de indecisão por parte das companhias aéreas (jato puro x turbo-hélices), voou pela primeira vez em 6 de dezembro de 1957, dois meses antes do previsto, o L-188 Electra, a aeronave americana que foi ansiosamente noticiada (e aguardada!) pela imprensa de lá. Talvez tenha sido essa uma das razões para o fracasso comercial da aeronave, conforme veremos adiante.
Início de operações
Apesar da solicitação inicial para o projeto Electra ter partido da American Airlines, foi a Eastern quem realizou o primeiro voo comercial com a aeronave, em 12 de janeiro de 1959, devido a uma greve de pilotos da American. Logo no início das operações, uma pequena falha da aeronave gerou queixa dos operadores: Nos bancos situados à frente da asa, uma ressonância na hélice provocava um ruído incômodo aos passageiros. Assim, visando eliminar esse incômodo, a posição dos motores foi levantada em 3 graus.
Também atendendo a solicitações dos operadores, uma versão capaz de levar mais 1.000 galões (3.785 litros) de combustível e maior peso máximo de decolagem foi criada e chamada de L-188C (diferindo do L-188A, o projeto inicial). Entretanto, apesar do bom início e da economia na operação da aeronave, assim como por ser o “queridinho” da mídia ao ser o primeiro turbo-hélice de grande porte para passageiros de fabricação americana, as vendas do Electra ainda não eram satisfatórias para o projeto.
Logo no inicio das operações, no dia 3 de fevereiro de 1959, um Electra da American Airlines procedente de Chicago se acidentou em Nova York matando 65 dos 73 ocupantes. As causas do acidente foram apuradas como falha de operação e condições do tempo marginais.
Contudo, no dia 29 de setembro de 1959 (pouco mais de nove meses do início das operações comerciais), o Electra prefixo N9705C da Braniff International, partindo de Houston, Texas com destino final o aeroporto de La Guardia, Nova York, misteriosamente desintegrou-se no ar. Com apenas 132 horas de uso e apenas 11 dias operação na empresa, o acidente chocou pelo fato da aeronave ter-se desintegrado no ar de maneira abrupta e a asa esquerda ter sido localizada a mais de 1,5 km de distância do local da queda dos destroços.
Ao longo do processo de investigações do acidente, ficou constatado que houve uma desintegração da aeronave em pleno voo, contudo os fatores que levaram uma aeronave absolutamente nova a tal colapso não haviam sido determinados. O caso estava quase que sendo encerrado quando no dia 17 de março de 1960, outro Electra, mas desta vez da Northwest Orient Airlines, caiu no sul do estado de Indiana.
O vôo 710 da Northwest com 63 ocupantes saiu de Minneapolis, estado de Minnesota, para Miami, na Flórida, e às 15h00 (hora local) caiu misteriosamente, não deixando sobreviventes. O que diferiu este acidente do outro ocorrido seis meses antes com a aeronave da Braniff foi que neste caso houve testemunhas que visualizaram a aeronave voando, a explosão em voo e a queda em duas partes — neste caso a aeronave separada da asa direita.
Ato contínuo ao acidente de Indiana (8 dias depois), O CAB (Civil Aeronautics Board — antigo NTSB, o National Transportation Safety Board) publicou uma instrução normativa (airworthiness directive. AD) limitando a velocidade máxima do Electra a 510 km/h (a velocidade máxima da aeronave é de 652 km/h), e dias depois, reduzindo para apenas 417 km/h, no período de investigações dos acidentes.
Após um intensivo programa de investigações, que reuniu profissionais da Lockheed, Boeing, Douglas, e até da Nasa, foi encontrado o vilão: O suporte dos motores do Electra que permitia o surgimento de um fenômeno denominado whirl mode.
O whirl mode é um fenômeno que advêm do próprio efeito giroscópico formado pela hélice. Nesse efeito, uma roda girando (neste caso, a hélice) tende a permanecer numa direção fixa tendo em vista o jogo de forças e a inércia envolvidos. Quando essa roda é forçada a sair de seu estado de repouso por uma força abrupta, ocorre uma força reativa a 90 graus, em sentido inverso ao movimento que gira essa roda.
Em uma estrutura normal, esse fenômeno é totalmente absorvido e amortecido pela estrutura da aeronave. No caso do Electra, havia uma flexibilidade da estrutura dos motores para amortecimento do fenômeno, contudo um dano no suportes dos motores externos reduzia essa capacidade de amortecimento do fenômeno, tornando-o potencialmente destrutivo caso houvesse uma indução, como em uma situação de turbulência. Numa situação como essa, a oscilação dos motores, ao invés de ser amortecida, acabava ficando incontrolável em virtude da redução no amortecimento do whirl mode, e amplitude de oscilação do motor passavam a ficar maior e mais violenta, entrando em ressonância com a oscilação das asas, ficando aí incontrolável. E esse dano nos suportes dos motores podia ser um pouso “duro” (jargão aeronáutico para pouso com pancada forte, violenta na pista), como foi observado no caso do Electra da Northwest no dia do acidente, dano este impossível de ser detectado em uma inspeção visual.
A solução encontrada foi o reforço das naceles dos motores com a adoção de suportes transversais, pontos adicionais de fixação dos motores com e a adoção de chapas mais grossas no revestimento das asas. A Lockheed fez o Lockheed Electra Action Program (L.E.A.P.) visando à modificação das aeronaves que estavam voando e modificando as que já se encontravam em produção. E uma vez descoberto o “vilão”, todas as limitações de velocidade impostas ao Electra foram suspensas e a aeronave pôde voltar a operar normalmente.
Contudo o dano à imagem do primeiro turbo-hélice americano de passageiros já estava feito. O público rejeitava o Electra. O projeto, que já havia sido um desastre mercadológico devido a demora em receber mais encomendas, e novos pedidos, acabaram quando ocorreu o acidente da Northwest. A era do jato também tinha chegado para valer com os projetos Douglas DC-9 e Boeing 727, este último a aeronave a jato que simbolizou a aviação de médias distâncias durante muitos anos. E a Lockheed amargou pesadíssimos prejuízos com o projeto: a investigação e as indenizações as vítimas que tiveram de ser pagas.
O Electra foi relegado ao transporte de carga e linhas aéreas menores e muitos logo foram vendidos, com pouquíssimo uso para companhias aéreas da América Latina, onde operaram intensamente carregando passageiros e posteriormente carga.
Apesar do fracasso civil do Electra, no uso militar o projeto foi muito bem aproveitado: usando seu projeto-base, a Lockheed desenvolveu o P-3 Orion, que voou pela primeira vez como um Electra civil adaptado.
No Brasil
No final dos anos de 1950 já havia uma movimentação das companhias aéreas brasileiras na modernização da sua frota de aeronaves. A Panair do Brasil, da família Rocha Miranda operava com os Douglas DC-3, alguns DC-6 arrendados do Lóide Aéreo Brasileiro, além do Douglas DC-7C para rotas internacionais, adquiridos a contragosto (a Panair queria o jato DH-121 Comet, aeronave que tal qual o Electra teve problemas estruturais nas primeiras unidades fabricadas, com acidentes e muitas mortes) e uma significativa frota de Constellations (também de fabricação Lockheed). Para sua modernização, a empresa optou pelo Caravelle, um jato francês para rotas curtas e médias, opção esta seguida pela Cruzeiro do Sul e pela própria Varig.
Nesta época a Real-Aerovias Brasil, uma das grandes companhias aéreas nacionais, operava com uma “coleção” de aeronaves a pistão como DC-3, Convair 340/440 e o Super Constellation. Preocupada em expandir e modernizar sua frota e adquiriu para seus vôos domésticos, os Douglas DC-6B e visando substituir os Super Constellation (aeronave complicada, de motores problemáticos), em 1961, a empresa adquiriu usados, da American Airlines, cinco Lockheed L-188 Electra.
A encomenda, contudo acabou indo parar nas mãos da Varig, que em 1961 incorporara a Real, e junto com ela, além da sua frota heterogênea, as encomendas que tiveram de ser recebidas a muito contragosto pela empresa gaúcha apesar das tentativas de barrar a entrega (o caso mais emblemático foi o do Convair Coronado CV-990A – assunto para outra hora). Dessa forma, a Varig tornou-se operadora dos cinco Electras originalmente encomendados pela Real, e receberam os prefixos PP-VJL (s/n 1024), PP-VJM (s/n 1025), PP-VJN (s/n 1037), PP-VJO (s/n 1041) e PP-VJP (s/n 1049), todos recebidos entre setembro e outubro de 1962. Foram imediatamente colocados para cumprir as rotas domésticas de São Paulo e Rio para o Nordeste brasileiro e algumas internacionais na América do Sul como Buenos Aires e Montevidéu, além de uma frequência semanal para Nova York, partindo de São Paulo com escala no Rio de Janeiro e duas escalas no Caribe! Foi usado também na rota Rio-Lisboa. o “Voo da Amizade”, com escalas em Recife e na Ilha do Sal.
Mesmo tendo recebido os Electras a contragosto, a Varig acabou ficando satisfeita com o desempenho global dos Electras, a ponto de em 1967, a empresa adquirir outras 3 aeronaves (todas da American Airlines), os PP-VJU (s/n 1119), PP-VJV (s/n 1126) e PP-VJW (s/n 1124).
Em 1970 ocorreu o primeiro e único incidente grave com um Electra no país: o PP-VJP em um voo de testes, pousou com violência em Porto Alegre, o que causou a quebra do trem de pouso principal, do lado direito. Embora não tenha havido vítimas, a recuperação da aeronave foi considerada economicamente inviável.
Neste mesmo ano, tendo em vista a necessidade de aeronaves cargueiras, a Varig adquiriu da Northwest Orient dois Electras cargueiros, denominados L-188 PF (Passenger Freighter). Essas aeronaves, matriculadas de PP-VLA (s/n 1139) e PP-VLB (s/n 1137) diferiam dos demais modelos operados pela Varig, pois eram inicialmente do modelo L-188C (todos os outros Electras eram do modelo A), de maiores autonomia e peso máximo de decolagem. Essas aeronaves foram convertidas para cargueiro e diferiam por não ter o salão traseiro de passageiros e nem a porta dianteira com escada automática. Também foi comprado da American Airlines o PP-VLC (s/n 1093), Em 1971, dentro do pool de empresas que operava a Ponte Aérea Rio-São Paulo, o Electra começou a fazer a famosa rota que o consagrou e o tornou mundialmente conhecido, apagando a má fama inicial que o marcou.
A Ponte Aérea Rio-São Paulo consistiu em um acordo operacional que formou um pool de empresas operando a rota que partida dos aeroportos centrais, Congonhas em São Paulo e Santos Dumont no Rio de Janeiro. Neste pool, o passageiro comprava um bilhete de São Paulo para o Rio, por exemplo, em qualquer companhia e embarcava no voo que mais lhe conviesse, esperando o mínimo de tempo possível em solo, independente dele ser da companhia vendedora do bilhete ou outra que fizesse parte do sistema. O grande objetivo desse pool de empresas era o de racionalizar a ocupação das aeronaves, evitando assim, a sobreposição de voos, alguns superlotados, outros, vazios, e horários que simplesmente não havia voos.
Dessa maneira, desde sua criação em 1959 até 1975, as companhias aéreas participantes do pool operavam a rota com suas aeronaves aptas a voarem o trecho, cujo principal fator limitante era o comprimento da pista do Aeroporto Santos Dumont, de apenas 1.327 m e seus obstáculos (numa cabeceira, a 02, a Ponte Rio-Niterói (foto de abertura), na outra, a 20, o Pão de Açúcar). E em decorrência disso, não houve aviões a jato no trecho até final dos anos de 1980.
Por conta desses fatores e de dois acidentes com o Nippon Aircraft Manufacturig Corporation (NAMC) YS11A “Samurai” da Vasp, o DAC (Departamento de Aviação Civil, outrora um órgão militar e antecessor da Anac) acabou baixando uma portaria que a rota somente poderia ser operada por aeronaves quadrimotoras. Apenas a Varig possuía os Electras e a Vasp, os Viscounts, mas estes, já estavam em processo de desativação em 1975 e assim o Electra acabou reinando sozinho no trecho. Para as outras empresas operarem o trecho (leia-se Vasp, Transbrasil e Cruzeiro), elas tinham de arrendar os Electras pertencentes à Varig, que fornecia o avião com os pilotos e os arrendatários, a tripulação.
Com o aumento do tráfego de passageiros da Ponte Aérea, em 1976, a Varig adquiriu na Colômbia, da empresa Aerocondor, dois Electras, os PP-VLX (s/n 1063) e o PP-VLY (s/n 1073), ambos inicialmente comprados novos pela American Airlines.
Em 1986 a frota de Electras da Varig ganhou reforço de duas aeronaves adquiridas da TAME — Transportes Aéreos Militares Equatorianos — os PP-VNJ (s/n 1050, originalmente entregue à American Airlines) e o PP-VNK (s/n 1040, este um ex- Braniff Airways). Esses Electras por sinal tinham uma história curiosa: ss quatro Electras pertencentes a essa empresa encontravam-se praticamente sucateados no Equador, sem condições de voo. A Varig avaliou a situação e propôs a empresa equatoriana a reforma completa de duas aeronaves e como pagamento, a Varig ficar com as outras duas com o direito de preferência nas células.
Contudo, o custo de manter um Electra em voo estava ficando cada dia mais alto e a data de sua substituição estava ficando cada dia mais próxima. Todavia, o mercado aeronáutico do início dos anos 80 não oferecia uma aeronave capaz de operar em pistas extremamente curtas como a do Santos Dumont. Esse panorama começou a mudar com a introdução do Boeing 737-300, uma aeronave que na época, apresentava os novíssimos motores turbofan GE/Snecma CFM-56 de elevada capacidade de empuxo. Na mesma época a British Aerospace também enviou ao país o quadrirreator BAe 146, um pequeno avião de asa alta, 100 passageiros, apto a operar em pistas curtas no meio de grandes centros urbanos e houve quem sugerisse até uma ideia (estapafúrdia) de operar Embraer EMB-120 Brasília. Só que para ela se materializar era preciso colocar mais de 40 aeronaves para equivaler o número de lugares oferecidos pelos 14 Electras…
Como as três companhias aéreas (Varig, Vasp e Transbrasil) participantes do pool da Ponte Aérea já operavam o Boeing 737-300, nada mais natural a sua escolha como substituto do Electra. E assim, nos primeiros dias de janeiro de 1992, o PP-VJU fez o ultimo voo regular de passageiros do Electra na Ponte Aérea Rio-São Paulo.
O triste fim dos Electras da Varig
Com a desativação dos Electras, a Varig encostou as aeronaves em Porto Alegre (Aeroporto Salgado Filho) e São Paulo (Congonhas). Apenas o PP-VJM (o primeiro Electra a chegar ao Brasil) foi diretamente encaminhado ao Museu de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, onde se encontra em um galpão coberto, em exibição.
Nove aeronaves foram negociadas com empresas aéreas do Zaire para operarem em condições análogas aos garimpos no norte do Brasil. Sem manutenção, as aeronaves foram sendo sucateadas ou foram protagonistas de terríveis acidentes como o que matou mais de 140 (!!!) ocupantes. Três acabaram indo para o Canadá, onde operaram como “avião-bombeiro” (PP-VJW, PP-VNK e PP-VLX — apenas um remanescente como banco de peças — um se acidentou e outro foi destruído em um incêndio em um hangar) e uma foi encostada como banco de peças para a empresa cargueira austríaca Amerer Air (PP-VNJ).
O 16º Electra brasileiro
Quando se fala em Electra, muitos pensam que existiram apenas os 14 que voaram simultaneamente à Ponte Aérea Rio-São Paulo. Uma pesquisa mais aprofundada levanta a existência do PP-VJP, o único Electra “acidentado” no Brasil e quase sem registros fotográficos. Contudo, o que quase ninguém sabe é que houve um Electra Executivo aqui.
Em 1971 o empresário Francisco “Baby” Pignatari adquiriu o L-188C Electra s/n 1112, que no Brasil recebeu a matrícula PT-DZK. A aeronave ficava baseada em Congonhas (São Paulo) e sua manutenção era feita nas oficinas da Varig. Quem visitou a aeronave descreve seu interior de luxo, com quarto, sala, sofás, banheira de cobre (Pignatari era proprietário da Companhia Brasileira do Cobre), enfim, todos os requintes de uma aeronave de transporte VIP, muito mais que uma “simples” aeronave de transporte executiva.
Em 1975 a aeronave saiu do Brasil em condições, segundo dizem, estranhas, uma vez que os bens de Pignatari encontravam-se bloqueados (há relatos que foi feito um plano de voo de 30 minutos para testes e a aeronave decolou par não mais voltar) e em 1976 a aeronave foi registrada no nome da Omni Aircraft Sales, que a repassou para a a Igreja do missionário Rex Humbard, aeronave esta que voltou ao Brasil anos depois com o prefixo N8LG.
Epílogo
A saudade do Electra representa muito mais do que a mera desativação de um avião. Representou o fim de uma época de ouro da aviação comercial
Ao todo, a carreira do Electra na Varig foi de 30 anos, quando, o PP-VJU fez o último voo do modelo, ligando as duas capitais e encerrando um período onde ainda existia charme em viajar de avião. Uma época onde a viagem São Paulo-Rio de Janeiro carregava um charme ímpar, onde os passageiros “brigavam” para viajar no lounge traseiro do “velho” quadrimotor, onde havia sete lugares dispostos em semicírculo, preferencialmente nos voos do final de tarde, bebericando algum drinque e fumando despretensiosos cigarros enquanto corriam os mais de 50 minutos que separavam as duas capitais.
Hoje, as viagens são muito mais rápidas e seguras. Com os modernos jatos 737 ou Airbus A319/320, o tempo de voo é de pouco mais de 40 minutos e a operação no “porta-aviões” chamado Santos Dumont e seus 1.350 m de pista é tão ou até mais segura que com qualquer Electra, mas como tudo tem um preço, a perda do charme, do conforto e do serviço de outrora se foram. E (provavelmente) nunca voltarão!
Ficha técnica
Comprimento: 31,85 m
Envergadura: 30,18 m (99,00 pés, exatamente)
Altura: 10 metros
Superfície alar: 120,8 m²
Peso máximo de decolagem: 51.256 kg (52.656 kg no L-188C)
Peso vazio: 26.036 kg
Alcance (com peso máximo de decolagem, versão C): 3.540 km
Teto de serviço: 32.000 pés (9.753 m)
Velocidade máxima: 721 km/h (nunca exceder)
Velocidade de cruzeiro máxima: 652 km/h
Velocidade de cruzeiro econômica: 600 km/h
Velocidade de estol: 172 km/h
Razão de subida: 1.970 pés/min (10 m/s)
Distância de decolagem com obstáculo de 15,2 m: 1.438 m
Distância de pouso com obstáculo de 15,2 m: 1.310 m
Capacidade: até 98 passageiros e 5 tripulantes
Carga útil: 12.000 kg
Total de aeronaves produzidas: 170
DSdA
Nota do Autor: Enquanto escrevia esse texto, vi meu filho de 11 anos mostrando para o irmãozinho de 2 anos e meio um Piper Seneca se aproximando para pouso. De repente remeti minha mente para 1981, em São Paulo (hoje moro no interior): nasci e cresci no Alto de Pinheiros, em São Paulo, e da casa dos meus pais próxima ao topo espigão onde se cruzam as Avenidas Heitor Penteado e Cerro Corá passei minha infância contemplando e admirando os Electras descendo a rampa do ILS (Instrument Landing System, ou sistema de descida por instrumentos), com aqueles quatro canudos pretos de fumaça.
Meus pais contam que o Electra foi o primeiro avião que aprendi o nome e a reconhecer em qualquer lugar, ainda com meus três anos de idade e por causa dele me tornei um aeroentusiasta (a Kombi e o Fusca foram os responsáveis por ser um autoentusiasta).
Em algum dia de 1994 ouvi um ruído familiar: corri e vi um Electra chegando com a fuselagem branca, leme branco e barriga em alumínio polido. Já era um Varig descaracterizado. Naquele dia tive a certeza que nunca mais voltaria a vê-lo descendo novamente naquela rota.