Questão de Sobrevivência, engraçado relato do Ronaldo Berg, AE último domingo, sobre sua saia justa como inspetor da Volkswagen para resolver caso do motor do carro de um delegado de polícia em cidade do interior, levou-me a resgatar texto escrito há tempos. Muda a óptica, mas ajuda a compor cenário do início de nosso relacionamento com o bicho automóvel. RN
Desde o tempo de apenas montagem e de importação de veículos para o Brasil, o relacionamento entre os pioneiros agentes, depois concessionários, distribuidores, revendedores, com as montadoras, importadoras, fabricantes concedentes das franquias de representação, não era negócio quase nivelado entre as partes, como hoje.
Sem regras específicas a equilibrar a avença comercial, sem a Lei 6.729, norma regulamentadora do negócio, apenas criada em 1979; as características de sempre serem os interessados em maior número ante o de ungidos; e de haver exclusividade de praça definida pela fabricante — isto acabou no governo Collor por sugestão do autor deste texto —, era relação leonina. Para ser concessionário, revendedor, distribuidor, aparentemente havia adicional exigência física não mensurável, porém claramente existente: o pequeno comerciante deveria ter estômago de avestruz para conviver com as imposições das fabricantes e montadoras: cotas de carros — nem sempre absorvidos pelo mercado; ou, ao contrário, pelos modelos demandados e não fornecidos; ou pior, pelo envio de carros inadequados ao mercado; pela dificuldade e demora em receber os valores aplicados em garantia de serviços ou peças.
A distância entre o concessionário e o concedente começava pelos tipos de meio de comunicações da época: correios inconfiáveis, demorados, telegramas e telefone via telefonista, sem DDD. O elo de relacionamento se complementava pelo inspetor da fábrica, funcionário de distantes visitas, com a função de ser a grande identificação física da marca, pois gerentes comerciais exercitavam sua influencia a partir da fábrica e não se davam ao desfrute de visitar concessionários em pequenas cidades. Diretores, então, só de longe ou fugazmente num dia de lançamento de produto novo — por si só bem raros naqueles anos iniciais.
Um caso ocorrido na década de ’60, nas proximidades de Brasília, ilustra o tipo de relacionamento.
Pequeno revendedor de marca alemã se esforçava por fazer o negócio sobreviver em sua limitada praça, periférica à nova Capital de todos os brasileiros. Nada lhe adiantava a vizinhança poderosa. Naquele tempo havia reserva geográfica de mercado, e concessionário de uma cidade não podia vender carro a comprador residente em outra. Vendesse, pagava multa às revendas do domicílio do comprador, e este não era bem atendido para garantia em revenda alheia à compra.
O revendedor da marca mercadejava ali e acolá, visitando diretamente comerciantes, profissionais liberais, religiosos, funcionários públicos, fazendeiros, sitiantes e todos capazes de significar vendas ou perspectivas de. Ficasse quieto em seu negócio, passivo à espera de clientes, com certeza teria problemas. Os revendedores no interior foram parte importante da disseminação da cultura automobilística, e aplicavam-se a fazer negócios em catecismo muito distante das vendas nas cidades grandes: crédito informal à base do conhecimento antigo, do olho no olho; entrega do veículo 0-km para receber depois, após a colheita; idem para aguardar novilhos se tornarem bois para abate; pedaços de terra ou casas envolvidos em inventários; objetos usados; por aí, pouca liquidez, enorme flexibilidade.
Causo
Parece história, mas é real, como conto. Ouvi e depois aferi com o operador da revenda, meu conhecido de décadas. Diz-se, num final de tarde, pós-expediente dedicado a fazer negócios e relacionamentos, retorna à revenda. A moça do escritório, nervosa, transmite-lhe o recado: o sr. fulano, novo inspetor da marca, esteve ali à sua procura. Da entrada deu olhada rápida na revenda, e deixou recado curto e grosso, bem definidor da superioridade alguns se arrogavam:
“Diga ao seu fulano — o comerciante — para estar aqui às 8h em ponto. E que venho para inspecionar tudo”. E apontando uma cadeira de madeira escura na sala do dono, exemplificou: “Vou passar meu lenço branco em tudo, e se encontrar um pozinho que seja, vou recomendar o cancelamento da revenda. Temos muitos interessados para este negócio.“
Recado dado, a secretária foi-se, aliviada. O patrão nada comentou, porém mandou avisar a todos os empregados, em casa, para estar na revenda às 6h da manhã, barbeados, de boa aparência, uniforme limpo, trazendo material de limpeza. Ao raiar do sol todos se aplicaram a limpeza nunca vista neste tipo de negócio. Às 7h40 não havia caixote de peças usadas solto na pequena oficina, nem automóvel desalinhado nas vagas da oficina, ou ferramenta mal disposta nas bancadas, sequer distante teia de aranha nas estruturas de madeira no telhado. Tudo luzia. O pequeno comerciante agradeceu a colaboração, o empenho, os funcionários foram tomar café com pães e biscoitos de queijo, invenção goiana, e assumiram suas funções. O dono entrou em sua pequena sala para a última conferida antes do ameaçador e terrorista teste do lenço branco.
Na hora correta, estava em pé, na porta, aguardando o inspetor da fábrica. Que chegou dirigindo um carro de frota, situação rara e distintiva naquela época, quando a motorização se iniciava democratizar: alguém ter um bom emprego e, ainda, receber um carro novo para uso, sem nada pagar pelo privilégio…
Bem recebido, demonstrou a pouca simpatia dos falsos líderes, entrou sem amenidades, cobrando coisas, sendo conduzido pelas dependências: o pequeno salão de exposições, escritório, área de oficina, espaço para estoque. Não teve a delicadeza de perguntar quanto ao aparentemente eterno problema entre revendedor e fábrica: o recebimento dos gastos e partes aplicadas por estes para honrar garantias daquele. O inspetor poderia falar de tudo, exceto quanto à limpeza e a dinâmica operacional.
E foi assim, inspeção feita, cheio de autoridade, guiado pelas mesuras do pequeno revendedor, à sua pequena sala. Surpreendeu-se porque sobre a mesa, nada de agenda, bloco de anotações, risque-e-rabisque, porta retrato familiar, copo com canetas e lápis. Apenas único objeto marcando o espaço: uma espingarda. Limpa, polida, brilhante em madeira e metais, sutil como pode ser uma espingarda. Era uma Winchester de repetição, exemplo secular de design e operacionalidade confiável, dita Papo Amarelo, pelo receptor em latão sempre polido, por onde se carregavam as balas calibre .44. Arma conhecida, dela fez-se mais de milhão, e no imaginário trazido pelos filmes de faroeste era argumento final para resolver assuntos com bandidos, índios e búfalos.
E, em frente à mesa, a cadeira apontada na véspera. Pés limpos — mas em seus encosto e assento, hábil e cuidadosamente espalhada, uma camada de verde escura e pegajosa graxa automobilística.
O inspetor travou, nada perguntou, entendeu a mensagem, encurtou a visita, despachou em pé, agradeceu a atenção e foi-se embora. E a revenda não foi cassada. E a cada retorno, chegava macio, sem empáfia, nunca tocou no assunto, nem criou casos por bobagens.
Winchester não é santa, porém faz milagres…
RN