É sempre gratificante rever situações vivenciadas que continuam presentes em minha memória. Lembro-me como se fosse ontem, nos idos de 1982, eu e mais dois engenheiros, no inverno na cidade de Campos do Jordão, para avaliações de dirigibilidade do Escort em clima frio e em altitude, como parte do trabalho de desenvolvimento do veículo para o Brasil.
Chegamos a Campos do Jordão, ao Hotel Toriba, por volta das 13 horas e a temperatura ambiente estava em torno de 12 °C, muito acima da necessária em torno de 5 °C. Nossa esperança era que a temperatura despencasse à noite para cumprirmos os nossos objetivos.
Após o almoço — trutas grelhadas ótimas por sinal — passamos o período da tarde revendo os procedimentos de dirigibilidade que iríamos adotar. Ou seja, dirigibilidade é a percepção de quão bem o motor funciona. É a capacidade de conseguir suavidade e respostas controladas, tanto no acionamento do acelerador quanto nas trocas de marcha. Na realidade a dirigibilidade se relaciona com a qualidade da calibração do motor nas várias condições ambientais a que o veículo será submetido, como temperatura, umidade relativa do ar e altitude.
A estrutura da dirigibilidade inclui os seguintes pontos:
- Facilidade na partida do motor, tempo para funcionar e qualidade sonora
- Marcha-lenta, estabilidade e retorno à rotação especificada
- Suavidade nas mudanças de marcha, facilidade de coordenar o acionamento da embreagem e o acelerador durante as trocas.
- Comportamento em velocidades estabilizadas, na estrada em tráfego anda e para
- Respostas ao movimento do pedal do acelerador em todo o seu curso, acelerações e desacelerações, progressividade.
- Respostas em regime máximo do motor, “pé na tábua”
- Facilidade de partir em rampas, considerando a modulação da embreagem.
Veja abaixo os modos de falha da calibração. Fica fácil entender que a linha pontilhada seria o caminho esperado, sem “buracos” ou descontinuidades. Os efeitos das descontinuidades se refletem em sensação de perda de potencia do motor e/ou da aceleração do veículo. A variação da marcha-lenta do motor é também sentida como defeito relevante.
As figuras falam por si, porém para ajudar, segue abaixo o significado “macarrônico” dos termos de dirigibilidade em inglês:
- Sagging = Queda
- Hesitation = Hesitação
- Surging = Vale acentuado
- Stumbling = Tropeço
- Idle undershoot = Variações bruscas da marcha-lenta
As avaliações em Campos do Jordão também incluiriam a subida do Pico do Itapeva, elevação rochosa com 2.030 metros de altitude, segundo os mapas do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O cume está situado no município de Pindamonhangaba, no estado de São Paulo, a apenas 35 metros da divisa com Campos do Jordão. O pico é acessível por estrada pavimentada e do alto é possível avistar até 15 cidades da região do Vale do Paraíba.
A altitude afeta o rendimento do veiculo pela perda de potência. Para motores aspirados, a 1.000 m, a redução é de 10%; a 2.000 m, a queda atinge 23%; em 2.500m, chega a 31%. ou seja no Pico do Itapeva o motor estaria com 23% a menos de potencia com relação a seu valor ao nível do mar.
E espera que te espera, às 20h00 a temperatura ambiente estava em torno de 9 °C, ainda muito alta para as avaliações. Para encurtar a história, ficamos passando o tempo cada um da sua maneira, eu dedilhando um piano, o Alberto treinando caratê e o Jorge tirando uma soneca, roncando no sofá. Às duas da madrugada a temperatura chegou a 7 °C e decidimos não esperar mais, partindo para as avaliações, um Escort CHT a álcool, outro CHT a gasolina e um original CVH 1,6 a gasolina — petrol, como dizem na terra onde o motor CVH foi projetado e fabricado, a Inglaterra.
Resumindo as avaliações, o Escort CHT a álcool deixou a desejar, com dirigibilidade apenas sofrível, com muito trabalho ainda para ser realizado em termos de calibração. Os outros dois a gasolina ficaram em bom nível, com o CHT se igualando ao CVH em qualidade de dirigibilidade e desempenho. Como referência, a gasolina brasileira tinha 10% de álcool em volume, na época. Chamou a atenção o bom sistema de circulação e aquecimento interno do Escort, deixando confortável os nossos trabalhos.
E outras avaliações foram feitas para certificação do veiculo, por exemplo, na cidade de Teresina no nordeste brasileiro, ao nível do mar e com temperaturas ambiente acima dos 40 °C, bom tema para uma próxima matéria.
E veio a recompensa pelo trabalho bem feito, o Escort 1,6 CHT em seu lançamento modelo 1984, foi considerado um dos melhores veículos a álcool do Brasil, com partidas fáceis no inverno, boa dirigibilidade e bom desempenho de maneira geral. Os modelos a gasolina também ficaram muito bons, dando para sentir orgulho.
Na realidade o motor CHT, mesmo de concepção antiga, foi a abertura para a Ford do Brasil ser considerada centro de criação de produtos mundiais, graças ao programa brasileiro de exportação do Escort CHT para os países nórdicos, principalmente a Finlândia. Este fato foi importante para justificar mais investimentos para o Campo de Provas de Tatuí e para toda a engenharia.
Segunda lembrança
Outra lembrança que eu guardo em memória é relativa à Ford Courier, picape de valor, muito bem resolvida estruturalmente e em segurança, freios, estabilidade direcional e conforto, tanto vazia quanto em sua carga máxima de 700 kg. Posso dizer que trabalhei com orgulho nas diversas fazes de projeto e desenvolvimento desta picapinha, que tinha tudo para ser um verdadeiro sucesso no mercado, substituindo a consagrada Ford Pampa.
Dava gosto dirigir a Courier tanto vazia quanto carregada, sentindo seu comportamento dinâmico excepcional, passando uma segurança invejável para o motorista. Seu eixo traseiro apoiado em molas parabólicas de lamina única e molas auxiliares de poliuretano davam à Courier uma característica esportiva, divertida de dirigir. A expressiva distância entre eixos de 2.830 mm deixava-a fantástica em curvas de alta e não era pior que a concorrência nas de baixa.
Havia, porém, um ponto muito discutível e que incomodava a engenharia, que era a pouca distância do solo do eixo traseiro. Na realidade já havíamos proposto o eixo traseiro com formato “ômega” para aumentar o vão livre do eixo e facilitar as passagens por facões e outros obstáculos. E infelizmente, em decisão de cima para baixo, com as alegações de complexidade de projeto e redução de custos, o eixo que entrou em produção foi do tipo simples “viga reta”, parecendo um verdadeiro arado olhando-se o veículo de traseira.
E como comumente acontece, bastou o mercado reagir contra o formato do eixo traseiro e sua pouca distância do solo, inclusive enfeando a picape, para que as cornetas soassem na alta cúpula, procurando os culpados. É o implacável “search the guilt” como falam os americanos.
Ainda bem que o eixo ômega já estava praticamente concluído em seu projeto e sua implementação foi relativamente fácil. Fizemos um protótipo a “toque de caixa“ e fomos testá-lo em Avaré, em estradas de terra com muitos facões, necessários para as avaliações. Fizemos um comparativo do eixo ômega com o eixo reto e não houve nenhuma dúvida que deveríamos efetuar urgentemente a modificação. Aqui entre nós, levamos um VW Gol da nossa frota como veículo de suporte e aproveitamos para avaliá-lo também em passagem por facões. Pode até parecer mentira, o Gol se comportou melhor que a Courier com eixo reto, sendo a gota d’água para que o novo eixo fosse imediatamente aprovado. Conclusão óbvia, fazer certo da primeira vez é normalmente à melhor decisão e também a mais barata, considerando-se todos os aspectos a curto e a longo prazo, envolvidos no negócio.
Mesmo com algumas ressalvas, a homenagem do dia vai para a Ford Courier que sem dúvida alguma foi uma das melhores picapes derivada de automóvel do Brasil. Com seu comportamento dinâmico excepcional, robustez e tamanho da caçamba, não teve o tratamento merecido por parte da Ford, ficando abandonada ao seu destino durante anos, enquanto as outras fabricas fortaleciam cada vez mais este tipo de veículo, tão valorizado no mercado brasileiro.
CM