Caro leitor, a história que vou contar hoje me dá uma saudade e de certa forma também arrependimento. O título que dei tem tudo a ver e ao final você vai concordar comigo.
Estou em 1966, portanto com 19 anos e trabalhando na concessionária VW Argos Automóveis, onde minha carreira começou. Nesta época eu já havia passado do estágio de aprendiz, havia participado de uma série de cursos na fábrica como mecânico da concessionária e há poucos dias havia assumido interinamente o cargo de recepcionista ou, como hoje é chamado o cargo, consultor técnico. O dono da vaga havia se machucado e não podia trabalhar ou dirigir carros de clientes se necessário. Eu via a oportunidade para não mais largar o jaleco branco e tampouco vestir macacão e voltar para a oficina.
Tinha um chefe de oficina, José Maria de Souza, muito bacana, não só porque ia com a minha cara ou porque eu lavava o carro dele toda sexta-feira, mas por ele ser proprietário de uma escola de mecânica especializada em Volkswagen e tinha uma enorme paciência comigo, sempre me dando excelentes ensinamentos no dia a dia, sem que eu precisasse ir à sua escola, que ficava do outro lado de São Paulo.
Um dia esse meu chefe e amigo disse: “Segura as pontas que vou dar uma saidinha.Vou a uma concessionária VW que está fechando as portas e vendendo muitas ferramentas, peças, prateleiras e outros itens que podem nos interessar.”
De volta, disse não ter encontrado nada que pudesse ser interessante para a nossa oficina, mas trouxe algo absolutamente surpreendente. “Comprei um carro que deverá chegar daqui a pouco, no meio dos produtos à venda estava um carro antigo,” — fiquei intrigado, imaginando como e qual seria este carro.
Não demorou muito e o carro chegou, era um Ford modelo T e conforme a a papelada que veio junto, fora fabricado em 1922. Mas acho que era mais novo, algo como 1926, devia ser um daqueles rolos de importação, muito comum.
Foi uma curtição, a oficina parou, todos queriam ver o carro, ou melhor, como estava o carro que pelas minhas contas teria naquela data 44 anos.
Era uma versão duas-portas, com a pintura em dois tons, o corpo cinza claro e os para-lamas pretos. E tinha uma mecânica bem diferente.
Resumindo um pouco a história, o José Maria ficou com o carro apenas algumas semanas, viu que teria muito a ser feito e que além de ter que gastar, não teria tempo para cuidar da sua “reparação”.
Foi aí que eu entrei na história. “Eu compro!” Afirmei sem qualquer dúvida, pago o que você pagou, mas só se você dividir em quatro vezes. A minha proposta foi aceita e lá ia eu feliz da vida ser dono de um Ford modelo T 1922.
Quando cheguei em casa, meus pais por pouco não me expulsaram, disseram tudo o que você pode imaginar, mas estava feito e eu tinha até uma garagem para guardá-lo sem prejudicar ninguém porque era a casa dos meus pais, com quem eu morava.
Já tinha o que fazer todos os fins de semana: trabalhar no Fordeco, as suas rodas tinham o centro em madeira envernizada.
Era raspar o verniz envelhecido com cacos de vidro, lixar e reenvernizar. A grade do radiador era cobreada assim como a carcaça dos faróis, fazendo um belo conjunto. Preste atenção no detalhe dos faróis, eles serão importantes daqui a pouco.
Estofamento de couro tipo Luiz XV em muito bom estado, no porta-malas um banquinho ocultado por uma tampa, o chamado “banco da sogra”.
E a mecânica? Superinteressante, divertida. Para quem conhece um pouco a história do automóvel saberá o que quero dizer com “câmbio de duas marchas movido por cintas de couro.” Isso mesmo.
Havia duas alavancas junto ao volante, a da esquerda como se fosse hoje em dia um comando de seta, servia para dar avanço ao distribuidor e deixar o motor com funcionamento normal. A outra alavanca localizada à direita do volante era o acelerador. As duas alavancas lembram um bigode, daí a origem do nome “Ford bigode.”
Pedais, haviam três, mas não como os que conhecemos hoje. O da direita era freio, o do meio era o da ré e o da esquerda, com ação de mola, todo apertado era a primeira marcha, e solto, a segunda. No meio do caminho era o neutro. Mas havia uma alavanca à esquerda do motorista que tinha três posições. Toda para trás, freio de estacionamento (ou de emergência); vertical, câmbio em neutro; e toda à frente, para andar com o carro.
Então para andar, alavanca à frente, apertar o pedal esquerdo e soltá-lo um pouco, como se fosse uma embreagem, mas não soltá-lo de todo: isso só devia ser feito quando se desejar engatar a segunda. Para parar, aplicar freio e, momentos antes de parar, colocar a alavanca na vertical, para o neutro. Para dar ré, mesma coisa, alavanca em neutro e em seguida apertar o pedal do meio.
O momento da partida, emocionante. Não tinha motor de arranque. A partida era dada girando a manivela que ficava na parte inferior da grade dianteira que, empurrando-a para dentro, engatava diretamente no virabrequim do motor. Ao girá-la com uma grande força, o magneto também girava, produzia energia e o motor pegava. Aí você ouvia feliz da vida aquele toque-toque-toque de um motor funcionando. Para acionar a manivela a ignição tinha que estar toda atrasada e, por segurança, o freio de estacionamento deveria estar aplicado
Depois de um ano de reparos e andanças pelo bairro me atrevi a subir a rua Augusta, a rua da moda. Foi um sucesso e o medo, enorme, eu não tinha documentos da raridade — mas também quem teria coragem de pedir?
Um dia chegando em casa do trabalho, de bicicleta, que era a minha condução na época, minha mãe me disse que havia um senhor num carro estacionado defronte querendo falar comigo.
Com um sotaque muito forte disse que queria comprar meu carro. Disse-lhe que não estava à venda, ele insistiu mas fiquei com a posição de “não vendo”.
Passaram-se algumas semanas e nos mesmos moldes chegava em casa e lá estava o mesmo senhor perguntando quanto eu queria pelo carro, eu por pouco não o entendia, tão mal falava português. Confirmei não estar à venda e ele, desanimado, mais uma vez foi embora.
Uma terceira tentativa e aí lhe disse que se fosse vender seria por um monte de dinheiro que não me lembro de quanto. Ele achou muito caro, resmungou algo que não entendi e foi embora. Eu feliz da vida, entendi que tinha me livrado dele.
Aproximadamente um mês depois, chego do trabalho desço da bicicleta e ele do carro com uma pasta de couro nas mãos, aquelas pastas antigas que se vê em filmes de gângsteres tipo Eliot Ness e disse, em inglês, “eu trouxe o seu dinheiro.”
Convidei-o a entrar em casa, mostrei-lhe o carro que estava na garagem, ele disse que já o conhecia. Fomos à sala e na presença da minha mãe coloquei-me a contar o monte de cruzeiros que haviam na mesa. Assinados os recibos que ele havia trazido, um cafezinho para comemorar a até então indesejada venda, ele foi embora informando que no dia seguinte funcionários da empresa para a qual trabalhava viriam com um caminhão buscar o modelo T.
Voltei para casa mais cedo para fazer a entrega do carro e qual não foi a minha surpresa quando cheguei em casa: estava estacionado à porta da casa dos meus pais um caminhão azul e branco com um oval na porta onde estava escrito FORD DO BRASIL.
Trouxeram pranchas, o carro funcionava, puseram ele no caminhão com a minha ajuda e me disseram: a empresa comprou este carro porque eles têm um sendo reformado na matriz e não tem os faróis originais como o seu. Eles querem os vidros em cristal que tem gravado a logomarca da Ford Motor Company.
E agora? Só me resta terminar esta história com a expressão:
AH, SE EU SOUBESSE!
Com o dinheiro da venda do meu “calhambeque” comprei a primeira Variant zero-km que depois se transformou em um Fusca 1970 com o qual eu competi por vários anos na Divisão I e depois Divisão III.
RB