Semana passada saí com este Gol 1984 que comprei recentemente e, como era noite, acabei não vendo na estrada uma cratera no asfalto, vindo a cair nela com as rodas direitas. Depois da pancada continuei seguindo até chegar à rotatória de entrada da cidade, quando aí percebi o cantar de pneus. Parei no posto para verificar e o saldo foi a roda dianteira direita amassada na borda e o pneu com apenas 8 lb/pol²! Fora o cantar nas rotatórias, nenhuma tendência do volante puxar para qualquer um dos lados, nada. Apenas o esterçar mais pesado e o cantar em curvas. Aí me lembrei de um fato ocorrido 19 anos atrás.
Nos idos de 1997 eu era um motorista recém-habilitado. E como todo motorista que acabou de receber sua carteira acha (aliás, tem “certeza”) que é um grande “piloto”, eu não era exceção à regra. E assim, certo dia, estava na fazenda em Garça, SP (cidade onde resido atualmente mas naquela época só vinha de férias) e resolvi pegar o nosso Gol CL AE 1600 a álcool para ir à cidade buscar umas peças de implementos e, de quebra, tomar um sorvete e “ver o movimento”. Como era próximo ao meio-dia de um sábado, precisava me apressar para encontrar a oficina aberta.
Ao entrar na rodovia SP-349, desconsiderei o alerta que o volante vibrando me dava de que algo estava errado, e pisei fundo no Gol…120 km/h em uma rodovia estreita. E em um pedaço próximo ao trevo, numa leve descida, acelerei mais e atingi os 140 km/h, quando de repente veio o estouro. Só me lembro de segurar firme ao volante, não acelerar e manter a direção desejada. Só. O momento posterior era eu parando no acostamento e descendo do carro, me deparando com o pneu dianteiro direito estourado em virtude do desgaste irregular da banda de rodagem. Fiquei tão assustado que tive dificuldade até em riscar um fósforo para acender um cigarro (fumava naquela época) de tanto que tremia. E sentado, fiquei o tempo de fumar dois cigarros, inerte, olhando para a cena da roda retorcida, o pneu destroçado e eu, milagrosamente inteiro. Afinal, sempre ouvi falar que pneu da frente quando estoura em alta velocidade é sinal da Dona Morte querendo te visitar. Mas será que eu era um motorista realmente habilidoso ou tudo fazia parte de um projeto? Foi então que aprendi que tudo fazia parte do projeto!
E com esse pensamento lembrei-me de diversos artigos excelentes aqui no AE, como o de Carlos Meccia (“O necessário alinhamento”), e do Bob Sharp (“Ângulos e seus efeitos“). Resolvi ressuscitar o tema.
Risco do passado
Até um passado não muito distante, a perda de um pneu em um eixo direcional representava um risco para o motorista: o esvaziamento súbito ou estouro logo puxaria o volante para o lado e, se em alta velocidade, a rapidez e a força desse puxar incorreria na perda de controle e, consequentemente, um abrupto desvio de trajetória seguido de uma possível capotagem.
Outra causa de perturbação direcional era frear em superfície de coeficientes de atrito diferentes, com o lado esquerdo do veículo no asfalto e o direito, no acostamento de terra. Veja nesse rápido vídeo o efeito do raio negativo de rolagem quando o carro freia sobre superfícies diferentes em atrito:
Visando neutralizar esse nefasto efeito, a indústria aprimorou a geometria de suspensão e direção e a partir disso surge no final dos anos de 1960 o conceito do raio negativo de rolagem. Essa solução consiste justamente em minimizar problemas de controlabilidade dos veículos, quando do estouro de um pneu ou simplesmente uma das rodas dianteira golpear contra um objeto de certo volume e pesado. É uma dessas maravilhas da geometria que possivelmente salvem mais vidas que todas as estrelinhas dos testes de impacto das NCAP.
Introduzido no mercado no ano de 1966 no Oldsmobile Toronado, chegou ao Brasil em 1974 por meio do Volkswagen Passat, que dentre tantas inovações e “revoluções” chamava a atenção pelo formato diferente da roda, com seu centro bem saliente em relação ao aro, diferente de tudo que havia. O segundo carro nacional a possuir raio negativo de rolagem, por incrível que pareça, não foi o revolucionário (para a época), Fiat 147 de 1976 e sim a ortodoxa Variant II do final de 1977.
O raio de rolagem
Desde os primórdios do automóvel que a geometria de direção tem o que se chama de raio de rolagem. É só imaginar o prolongamento, até o solo, do eixo em torno do qual a roda esterça e ver que há uma distância entre esse ponto no solo e o centro da banda de rodagem do pneu. Esse ponto fica antes do centro da banda de rodagem. Por mais pequena que seja essa distância há um momento (força x distância) que tende a levar a roda a “abrir”, esterçar para fora.
Para visualizar o efeito do raio de rolagem — neste caso o “normal”, positivo — se o terminal de direção for desconectado do braço de direção e se o carro for empurrado, a roda vai “abrir”, esterçar para fora.
Quando o raio de rolagem é negativo, o citado prolongamento imaginário do eixo de direção encontra o solo além do centro da banda de rodagem. Nesse caso o momento age de maneira inversa, tende a levar a roda a fechar em vez de abrir. Com isso, um estouro de pneu que provocaria uma puxada violenta da direção é anulado pelo momento negativo, mantendo o veículo na trajetória sem nenhum esforço adicional sobre o volante.
Analogamente, na experiência com o terminal de direção desconectado e empurrar o carro, a roda irá “fechar”, esterçar para dentro.
Pois vivenciei esse caso nas duas situações citadas, tanto quando o pneu murchou, quanto houve o estouro. Absolutamente nada de anormal no comportamento dos carros houve.
A adoção do raio de rolagem negativo nos brindou com um benéfico efeito colateral: a possibilidade de estabelecer o duplo circuito hidráulico dos freios em diagonal, uma roda dianteira ligada hidraulicamente a uma traseira diagonalmente oposta, com a vantagem óbvia de nunca se perder totalmente freio dianteiro — o mais importante sempre — em caso de falha em um dos circuitos.
A puxada de direção por só uma roda dianteira frear é totalmente anulada pelo momento que faz a roda fechar.
A disposição de duplo-circuito em paralelo, um circuito para os freios dianteiros e outro para os traseiros, resulta na perda de freio dianteiro geralmente trazer consequências trágicas. A disposição dos circuitos em diagonal seria impossível não fosse o raio de rolagem negativo, o carro ficaria incontrolável em operação de freio monocircuito.
Portanto, não há exagero no que eu disse, o raio de rolagem negativo salvar mais vidas do que todas as estrelinhas outorgadas pelos NCAP mundo afora.
Olhando a ilustração abaixo, o denominado raio de rolagem, no caso negativo, consiste na distância formada pela linha imaginária do eixo de direção encontrando o solo e o centro da banda de rodagem do pneu, distância essa de 9,6 mm.
Hoje a maioria dos automóveis tem raio de rolagem negativo. Os últimos a o terem positivo foram a Kombi e o primeiro Uno.
Dose certa
Analisado friamente, pode-se dizer então que basta aplicar raio negativo de rolagem e todos os problemas de geometria de direção desaparecerão num passe de mágica? Não. O raio negativo de rolagem tem que ter “a dose certa” pois quando excessivo, provoca efeitos colaterais como incremento do esforço ao esterçar o volante e muita variação de câmber nos grande esterçamentos.
A razão é que para obter o raio negativo de rolagem, a inclinação do eixo de direção — nome adotado depois que o pino-mestre desapareceu em favor da ligação manga de eixo–braços de suspensão por articuladores esféricos, ou da suspensão McPherson com articulação no braço inferior e superior no topo da torre — precisa ser maior do que quando o raio de rolagem é positivo.
Como ao ter a direção esterçada todo carro sobe ligeiramente, mesmo que não se perceba, devido à inclinação do eixo de direção, é a força da gravidade que faz a direção retornar após uma curva. Essa é “dose certa” a que me referi, pois a direção tende a ficar mais pesada quanto maior for esse ângulo.
A outra contraindicação de muito ângulo do eixo de direção é ambas as rodas diretrizes assumirem câmber muito positivo ao serem esterçadas. Pode-se observar que quando um carro que tem raio de rolagem negativo sai de frente, chega um ponto em que a resposta de direção cai rapidamente devido à roda externa ficar com muito câmber positivo; não adianta virar mais o volante.
É por isso que preparadores de carros de turismo procuram deixar o carro o mais neutro possível, para que as curvas sejam feitas virando o volante muito pouco, além, claro, de reduzir o arrasto dos pneus.
Uma situação adequada pode ser vista no Passat da foto de abertura, com comportamento mais neutro que não exige tanto esterçamento mesmo numa curva tomada rapidamente.
Diâmetro da roda completa
Olhando o desenho mais acima que mostra o raio de rolagem negativo, percebe-se que quando o diâmetro da roda completa (roda completa = roda mais pneu) sai do projeto do veículo por meio de diferente medida do pneu, o raio de rolagem (que negativo, que positivo) se altera. Por isso, com regra, não se muda nunca diâmetro da roda completa, o que, aliás, é proibido por resolução do Contran.
Além da questão do raio de rolagem, altera-se também o efeito do cáster, o chamado avanço, e diminui a eficácia dos freios por aumento do momento resistente, como citado nas duas matérias citadas no começo.
Por isso, desejando-se colocar pneus mais largos, há que se compensar a largura alterando o perfil do pneus visando manter o diâmetro original da roda completa.
A ilustração acima obtida com o Tire Expert é um bom exemplo de que os fabricantes mudam as rodas mas mantém-se o diâmetro do conjunto. A rodagem 155SR13 (hoje escreve-se 155/80R13S) era o pneu original do Gol arrefecido a ar de 1980. O 185/60 por sua vez, equipou o modelo GTi de 1989 a 1994 e a diferença de diâmetro deles é de apenas 0,6 mm! E se formos mais além, veremos que a Volkswagen quis mexer ainda menos na geometria básica da suspensão do Gol, se levarmos em consideração que a versão GTI 16-válvulas de 1995 em diante era equipada com o 195/50R15V, rodagem cujo diâmetro do conjunto, matematicamente falando, é de apenas 2,2 mm inferior ao original de 1980.
Por fim, nem é preciso dizer que alterar a altura de um veículo (rebaixar ou levantar suspensão) é destruidora de qualquer geometria de suspensão. Qualquer modificação mexe nesses ângulos e alteram, de maneira significativa o comportamento do volante (esforço de esterçamento, as reações em caso de freagens bruscas), o esforço sobre os componentes de suspensão e do próprio comportamento em curvas.
Suspensão é algo sério em qualquer veículo. Alvo das maiores atrocidades por parte de proprietários (rebaixam seus carros sem qualquer critério, andam com o conjunto fora das medidas corretas) e reparadores despreparados (não sabem utilizar corretamente o equipamento de alinhar, alteram a cambagem ignorando que muitas vezes o mesmo veículo tem medidas diferentes de acordo com a versão), a perfeita conservação do conjunto é um dos principais instrumentos de segurança do carro.
A famosa “sopa de letrinhas” (ABS, EBD, ESC, ASR etc.) têm a eficácia comprometida se a interação veículo-solo e a forma como o motorista “sente” esse contato através do volante estiver em situação precária ou fora dos parâmetros especificados no projeto do veículo. Dessa forma, um veículo com a suspensão original, componentes em ordem e o conjunto dentro das especificações é, sem dúvida, mais seguro e previsível do que outro equipado com todos os auxílios mencionados, mas rebaixado, com pneus e rodas fora dos padrões originais.
DA
REFLEXÕES DO AUTOR
Quando concluí esse texto fiquei pensando nos inúmeros “assassinatos contra a engenharia” que cometi no passado, fazendo modificações “técnicas” que considerava corretas e nos efeitos adversos que obtive como resultado.
A Marajó que tínhamos e foi meu primeiro automóvel, dado o fato de viajarmos muito para Monte Verde (MG) e a estrada de 30 km saindo da BR-381 ser de terra, com muita lama, ganhou, um certo dia uma modificação interessante, feita por um posto de molas: um conjunto de molas de Opala 6-cilindros com duas espiras cortadas na frente e da Caravan na traseira. Esteticamente ficou bonito (quase uma “Weekend dos anos 80”) mas a direção ficou mais pesada e os impactos da rua eram percebidos, efeitos da alteração da geometria do conjunto.
Anos depois, no Ford Ranger 3-L 4×4, os 245/70R16 cederam lugar para os 265/75R16, um incremento de 7,3% no diâmetro dos pneus. Acontece que para caber os 265/75R16 originais, há a necessidade de se erguer a frente da Ranger, apertando o parafuso de regulagem da barra de torção. E naturalmente a lambança fora feita: a direção passou a transmitir todas as irregularidades do solo (na época, creditei à maior banda de rodagem dos pneus) e o conjunto de pivôs superiores simplesmente passaram a apresentar folgas requerendo trocas frequentes. Um conjunto de qualidade inferior que coloquei durou apenas 15 mil quilômetros! Creditei o fato à baixa qualidade da peça argentina, mas, na verdade, além da peça argentina, havia um outro fator muito mais crítico que as peças: eu!
Depois que levei uns “puxões de orelha” em um dos inúmeros e-mails trocados com o Bob Sharp, resolvi estudar o assunto e vi que havia simplesmente bagunçado toda a geometria da dianteira do Ford Ranger. Como eu havia mandado instalar parafusos excêntricos no braço superior, erguer a suspensão dianteira via barras de torção era viável pois era só corrigir o cáster e o câmber com a regulagem. Só que os demais componentes foram alterados, mas como os equipamentos de alinhamento não avaliam esses outros fatores, ficou tudo devidamente mascarado. E assim, muitas vezes fazemos um julgamento simplista de certas questões e nos esquecemos de fatores mais complexos que há por trás de um projeto.