Acima, a Plêiade, logo da Subaru
Pedro Nasser, meu avô (1881-1953) era libanês. Deixou sua então pequena Zahle, hoje turística com intensa produção de frutos, vinhos, azeitonas, azeites, passou pelo Estado do Rio, mercadejou pelas beiradas de Minas, casou-se, resolveu parar com os riscos, estabeleceu-se em Alegre, no sul do Espírito Santo. Cidadezinha interessante, tantos descendentes de árabes, seu prato típico é kibe … (Podendo, prove-o com alfavaca em lugar do hortelã).
Limite da mobilidade para árabes é o fim da linha do trem, como no caso, à época. Assim, montou uma venda — como se chamavam as lojas generalistas —, e outras lojinhas em outras pequenas cidades, vilas, corrutelas, de menor porte. Faziam parte da Grande Alegre…
Falo das décadas iniciais do século passado, quando o Brasil era arquipélago sólido, ligado pela cabotagem dos Itas do Dr. Henrique Lage, ou pelas estradas de ferro instaladas pelos ingleses. No Alegre, assim, masculino, recebia as mercadorias então quase todas trazidas desde o porto do Rio de Janeiro pelo trem da Estrada de Ferro Leopoldina — você não tem ideia da nossa limitação industrial. De prego a linha de costurar, tudo era importado.
Logística interessante, caixas, caixotes, latas de 20 litros, pacotes, uma miudezada inacreditável em formas, pesos e cores. Afinal, loja de árabe, venda, devia ter de tudo um tudo. De enxada a agulha; roupas, calçados, coisas para costurar, desenhar, cortar, furar. Material escolar, ferramentas de campo e semiprofissionais, cravos, ferraduras, bigornas, bicicleta. Meu avô foi-se por infarto, mal de árabes – exercitando controle sobre tal estoque e as cadernetas de crédito aos clientes, não abriria intimidades com o maldito alemão.
Veículo de transporte à época era afinada tropa de burros liderada pela mula madrinha, carros de boi para as cargas indivisíveis e, pico na atividade, alguns caminhões com motores ignitados através de férreas manículas. Saíam da estação para a loja principal e para as, digamos com generosidade, filiais …
SVX
Anos passados, ao encerrar o ciclo de uso de um ótimo station wagon, o Subaru Outback, recebi outro da marca como parte de pagamento. Um SVX. Veículo peculiar, de categoria não praticada no Brasil, Grand Tourer, um estradeiro. É cupê de duas portas sobre a plataforma do mesmo Outback, significando ser grande, 465 cm; motor H-6 frontal, seis cilindros contrapostos horizontais, 3.300 cm³, quatro válvulas por cilindro, fazendo 232 cv e quase 31 m·kgf, virabrequim na mesma altura dos eixos de transmissão, caixa automática de 4 velocidades, tração total, suspensão independente, grandes discos nas quatro rodas de liga leve. Quatro lugares bem esculpidos, revestimento em Alcantara, cintos frontais de segurança de acionamento automático correndo pelo trilho da armação dos vidros das portas. Como preocupação aerodinâmica, há dois vidros laterais sobrepostos: o de cima, com curvatura, é fixo; janela sobre janela. O inferior, móvel, com acionamento elétrico. Pela solução garante-se ser capaz andar com eles baixados sem fazer barulho ou ventar dentro do automóvel. Seja. Projeto curioso, assinado por Giorgetto Giugiaro, produzido entre 1991 e 1996, 25 mil unidades construídas, 17.000 para os EUA. Ao Brasil apenas 50 exemplares.
Diziam-no esportivo luxuoso, cruza de engenharia de Porsche com refinamento de Jaguar, e acabou por ser o mais caro dos Subaru, selando seu destino.
Creio, não é papo de automobilista, meu seja o melhor. Nunca bateu, ex de revendedor da marca, mantido por peças originais e mecânicos treinados. Sigo o ritmo, guardo-o em galpão fechado. Assim, tudo é como de fábrica, funciona, nada a fazer. E é um Subaru — quem do ramo sabe do respeito intrínseco pela sólida construção.
Não tem pique de arrancada como um Mitsubishi 3000 VR 4 urrando pelos poros. Sai-se bem para o início dos anos ’90 — 0 a 100 km/h em 8,7 s, pico de 232 km/h —, faz uns 9 km/l de Podium, cruza bem, desconhece subidas, marca elevadas médias e, se tiver serra com chuva, não tem p’ra ninguém.
Uso-o pouco — aliás quase não o faço. Integra o circuito de fim de semana para botar carros antigos a funcionar, embora tenha bobeado com o calendário, e numa manhã dominical, após uma oração a Santo Elígio, o protetor dos mecânicos, os dois não se entrosaram, e não funcionou.
Logística
Há quase um século, país sem indústria, transporte difícil, comunicação idem, Seu Pedrinho, como chamavam o libanês com menos de 1,70 m, conversando com as mãos, palavra contida, voz baixa, roupa formal mesmo sob o calor de Alegre, fazia de suas idas ao Rio de Janeiro um evento. Repor o estoque, buscar novidades e exclusividades, coisa feita com aperto de mão, olho no olho.
Aviso na venda/loja dizia da viagem. Assim, quem quisesse mercadoria especial, encomendasse e indicasse. Pessoalmente cumpria o ritual do convívio com o poder: se disponibilizava junto ao Monsenhor — talvez para comprar peças para o picape Studebaker da igreja —, à diretora do Grupo Escolar, do Hospital, Delegado de Polícia e Prefeito. E saía com um caderno de anotações, autorizado a escolher resolver, trazer. De terno para casamento a instrumento cirúrgico, espingarda para caça de pássaros. Imagino a mão de obra para visitas feitas a bonde ou a pé, coordenadas por confiável e denso Relógio de Bolso.
Relógio de Pulso era distante francesice de Santos-Dumont. Tal marcador de tempo era de Bolso. Meio volumosos, pesados. À frente o mostrador com inexplicável numeral equivalente ao 4, em algarismos romanos, grafava quatro pauzinhos. Acima uma coroa, onde se dava corda — 12 meias-voltas — e, levantando, permitia acertar as horas. E havia, sempre, uma corrente de ouro, onde na extremidade oposta ao relógio, um fecho de trava para ancorá-lo em pequeno gancho dentro do bolsinho da calça ou do colete. Tal arranjo permitia fazê-la cruzar o abdome, logo exibindo o status do portador. Como não se via o relógio, o parâmetro de identificação era a corrente… Relógio de Bolso era coisa de autoridade. Era após consultá-lo que, grave, circunspecto, autoritário, o chefe da estação soprava o apito determinando a partida da composição ferroviária.
História passada com ele ensina os descendentes valorizar o saber.
Um e outro
Você já percebeu, veículo automotor não era a praia do meu avô. Botina preta rebrilhando, charrete e trem resolviam os seus problemas. País tinha, há quase um século, uma merreca de relação entre carros x habitantes. E quanto à marca Subaru, chegando ao Brasil em 1992 com a abertura das importações, então importado pelos Steinbruch Fábio e Leo, Seu Pedrinho há muito havia partido levando sua pouca intimidade com o bicho automóvel, excetos Fords Modelo A, sempre carros-de-praça, como então se chamavam os táxis.
E o qual a ligação entre tais imigrantes?
Simples,
Por razões desarrazoadas aproveitei impensável ociosidade em tarde de terça-feira e liguei para o Sérgio, mecânico do SVX. Expliquei, não acende o painel, nem vira o motor. Anunciei ter comprado bateria nova — possivelmente desnecessidade —, e nada.
Apareceu, fui ver de perto. Quando cheguei ao galpão no quintal, estava encantado com o motor V-6 do IBAP Democrata, parqueado ao lado do Subaru. Afinal, carro de quatro unidades e com apenas duas remanescentes, costuma instigar interesse.
Foi aos trabalhos. Tinha trazido um alicate de pontas finas, um spray de desmanchar azinhavre, chavinhas de fenda e Phillips, um pano – mecânico sério não usa estopa. Olhou, cutucou, conferiu minhas informações. Após, abriu uma das caixas de relês e fusíveis, pegou o alicate de pontas finas, cuidadosamente removeu dois terminais de encaixe, num deles, fio metálico roído por oxidação.
Está aqui o problema, anunciou com a calma dos conhecedores. Era. O tal de SVX usa trapizonga eletromecânica-termo-dinâmica dita fio-fusível. Oxidou, dá resultado idêntico a pisada de elefante.
Vai num eletricista e manda fazer um, ou numa loja com peças para Kia Besta, definiu.
— E $?
— Só R$ 100 pelo passeio.
— ??
Lição
Pedro Nasser contava didática história de seu relógio ter parado. E para quem tinha apenas um, havia de conduzir seu dia entre os dispostos na sala da casa, na loja, pelo curso do sol, ou guiar-se pelo sino da elevada e imponente Matriz de Nossa Senhora da Penha.
Abreviou o prazo para uma das viagens, foi a conhecido relojoeiro carioca pedir socorro. Ele anualmente revisava e lubrificava o Elgin.
Evidentemente não sei se citado profissional foi Eugenio Masson, bem estabelecido na metade do século passado. Possível, mas não sendo em nada atrapalha a narrativa de costumes a um ou a outro.
Camarada preparado, tomou a preciosa máquina nas mãos, passou uma flanela para fazer fulgurar os brilhos dourados da caixa — e agradar o proprietário. Firmou, e com pequena lâmina chata e barrigudinha de canivete adequado, pressionou elevação dissimulada, e abriu uma tampa do diâmetro do relógio.
Mãos treinadas, repetiu a operação e abriu segunda tampa, basculando-a.
Expôs o mecanismo mágico, as engrenagens, as pequenas molas, desenhos, a barra de tensão na mola principal para regular o espaço do movimento de cada segundo. Muitas peças, todas paradas.
Olhou, olhou, e cerimonioso elevou o relógio aberto até uns 10 cm de distância dos lábios, e deu-lhe forte e certeiro sopro — um pré Exocet. Feliz, o preciso maquinário desandou em tics e tacs. Pingou uma gotinha de óleo — hoje vejo-a como efeito-demonstração…
Seu Pedrinho, aliviado tanto com o funcionamento quanto com o não precisar comprar outro relógio, perguntou, por perguntar, por achar ser cortesia, pela simplicidade e por ser cliente antigo.
— Quanto lhe devo, Mestre Masson?
— X Milréis Seu Pedro.
— X Milréis por um sopro? preparou-se para argumentar.
— Não, Seu Pedro. X Milréis por saber onde soprar.
Não sei quantos foram os Milréis — assim tudo junto, corruptela de Mil Reais, moeda pós República —, menos ainda a significação monetária atual. Mas aos 27 netos a história se mantém, perpassa gerações. Quase secular, verídica, até hoje se faz presente entre seus netos e bisnetos para lembrar importância e a diferença do saber fazer. O Fio-Fusível, o Sérgio, seu conhecimento e seu alicate, versão moderna do sopro, me relembraram, muito agradavelmente o Seu Pedrinho e a origem da lição.
Quando você achar num texto ou defesa de minha lavra, informação ou raciocínio exclusivo, conclua: Nasser neto sabe soprar.
RN