Nos primeiros anos da década de 2000, o governo federal iniciou uma massiva campanha em torno dos biocombustíveis. Inicialmente o pontapé foi em cima do álcool combustível (que posteriormente ganharia o nome químico correto com o nome comercial “etanol” — talvez para diferenciar do metanol e do butanol, ambos combustíveis automobilísticos nos Estados Unidos). Campanhas na imprensa começaram a ser divulgadas e a Volkswagen lançou em 2003, em parceria com a Magneti Marelli — para surpresa de todos, a empresa é uma subsidiária do Grupo Fiat, atual FCA — o primeiro flexível do mercado, o Gol 1,6 Power Total Flex. E a onda flex permitiu o ressurgimento do álcool combustível, com farta distribuição de recursos do BNDES para a construção de usinas, arrendamento de terras e plantio de cana-de-açúcar, até a situação bizarra observada em 2007 (vista pelo autor dessas linhas em diversas regiões do interior de São Paulo e Paraná) onde havia mais cana plantada do que capacidade de colheita…
Na esteira do álcool, o biodiesel, outrora ofuscado pelo Proálcool nos anos 70 e 80, acabou ressurgindo e passou a ser incentivado pelo Governo, naquilo que preconizava — e vaticinava — Rudolf Diesel, o inventor do motor que ganhou seu sobrenome:
“The diesel engine can be fed with vegetable oils and would help considerably in the development of agriculture of the countries which use it. The use of vegetable oils for engine fuels may seem insignificant today. But such oils may become in course of time as important as petroleum and the coal tar products of the present time.” (Rudolf Diesel, 1912)
Nesta citação, Diesel preconiza que seu engenho pode ser abastecido e utilizar óleos vegetais, auxiliando consideravelmente a agricultura e que seu uso, embora insignificante nos idos de 1912, poder-se-ia transformar ao longo do tempo, de uma importância significativa, semelhante àquela do petróleo, alcatrão e carvão dos anos 1910.
Assim, no início deste século, muita coisa começou a ser feita em termos de uso de óleos vegetais para sua transformação em combustível renovável. Houve aqueles que simplesmente passaram a a esmagar grãos e transformar em óleo e empregar em tratores, sem qualquer argumento técnico e outros que passaram a fazer os “coquetéis” de biodiesel com diesel de petróleo, mas tudo de maneira empírica e sem muito critério.
O Brasil enfocou a produção de combustíveis vegetais para ciclo Diesel empregando a retirada do glicerol dos óleos vegetais e a partir daí, já na primeira metade da década de 2000, começaram a sair as primeiras normas para o biodiesel, a obrigatoriedade de sua mistura no diesel comum (começou com 2% nos idos de 2006, depois 5% em 2007, 7% em 2014, atualmente (2016) 8%, 9% até 2018 e 10% no final de 2019). Muita gente também confundiu biodiesel com óleo vegetal sem saber as diferenças e passou a empregar o óleo bruto vegetal em motores de combustão interna de maneira indiscriminada e sem base técnica. E antes de tudo, sem saber que óleo vegetal.
O óleo vegetal bruto é um composto de ácidos graxos de cadeias carbônicas longas e uma parte delas podem combinadas entre si com glicerol formando os triglicerídeos.
A queima do óleo vegetal puro, tal qual ele é extraído da semente da oleaginosa, é nociva ao motor: a presença do glicerol na composição do óleo vegetal, além de aumentar a viscosidade, não faz uma queima completa, permitindo a formação de borras diversas no motor, formação de resíduos de carvão em cabeçotes e bicos injetores, além do possível completo travamento do motor. Dessa forma, o óleo vegetal para se transformar em combustível veicular precisa ser processado. Através de processos químicos, os ácidos graxos presentes nos óleos vegetais são transformado em moléculas da família dos ésteres.
O processo mais comum é a reação chamada de transesterificação, onde os ácidos graxos de cadeia longa ligados com triglicerol, quando misturados com álcool (metanol ou etanol) na presença de uma base forte (geralmente hidróxido de sódio, a “soda cáustica”), formando o biodiesel e por decantação, glicerina, aproveitada na indústria cosmética. Neste processo, o rendimento de óleo bruto convertido para biodiesel pode variar de matéria-prima para matéria-prima, indo de 75% até valores superiores a 95% no caso do óleo de girassol. O subproduto da reação, o glicerol, em parte, pode ser absorvida por outras indústrias como a farmacêutica e de cosméticos.
Há também a opção de “craqueamento” (decomposição térmica) do óleo vegetal para produção do biodiesel, embora o resultado deste processo seja um produto diferente daquele obtido via transesterificação.
MATÉRIA-PRIMA
Matéria-prima para óleos vegetais são as mais diversas possíveis. O Brasil privilegiou o uso do óleo de soja como matéria-prima para produção de biodiesel. O uso do sebo bovino, óleo de algodão e dendê também são empregados, mas em uma escala muito menor. Exceto na região norte, mais de 70% do biodiesel produzido no país é proveniente do óleo de soja, com este porcentual variando conforme a região do país.
Embora o óleo extraído da soja seja a principal matéria-prima para a produção de biodiesel, a opção possui baixo rendimento, rendendo em torno de 500 L de óleo bruto por hectare (considerando um teor de óleo de 18% e produtividade de 40 sacas/hectare — números conservadores).
O óleo de girassol tende a ser uma excelente opção que concilia produtividade e rendimento. Um hectare de girassol produz até 1.500 kg de óleo e produz um biodiesel de excelente qualidade físico-química. Outra opção, mas viável apenas para o norte do país, é o dendê. Com uma produtividade de até 6 toneladas de óleo por hectare, o biodiesel de dendê atende a todas as especificações. Suas desvantagens, no entanto, são o ciclo de maturação da cultura (cerca de 3 anos), a dificuldade de mecanização e a elevada viscosidade em regiões de temperatura inferior a 15 ºC.
Uma outra opção que vem se mostrando viável para a produção de biodiesel é o uso de sebo animal como matéria-prima. A primeira iniciativa nesse sentido ocorreu há exatos 10 anos quando o então Frigorífico Bertin (atual JBS Friboi) inaugurou a primeira usina de biodiesel de sebo.
Naturalmente que conforme o óleo/gordura empregada na produção de biodiesel, algumas diferenças no produto final ocorrerão, tais como coloração e o tamanho das moléculas de ésteres.
O COMBUSTÍVEL E SUA QUEIMA NO MOTOR
O biodiesel proveniente da transesterificação de óleos vegetais pertence ao grupo químico dos ésteres, possui oxigênio em sua molécula (o que o torna um elemento oxigenado no combustível) e apresenta características semelhantes ao do diesel comum, o que permite que motores com poucas modificações (e em alguns casos nenhuma) empreguem até 100% deste combustível, sem maiores problemas ou desgastes.
A dificuldade do biodiesel, contudo, é a sua maior viscosidade, dificultando sua pulverização durante a injeção na câmara de combustão do motor. Essa viscosidade torna-se mais acentuada em ambientes de clima frio. E o fato de ser um combustível constituído por uma molécula higroscópica, o biodiesel está sujeito a degradação se estiver em contato com o ar e umidade durante longos períodos, havendo alteração substancial de suas características químicas.
Por conta dessas características o uso do biodiesel puro (B100) não é garantido por alguns fabricantes, justamente pela possibilidade de levar a degradação de borrachas e selos de motor e o desprendimento de depósitos de carbonização do motor, devido às propriedades solventes dos ésteres.
Do ponto de vista queima no motor, o biodiesel quando em mistura com o diesel comum até 10% não apresenta significativas diferenças em desempenho e consumo em qualquer motor. Contudo, maiores proporções de biodiesel vêm apresentando comportamentos diferentes do motor, em especial do ponto de vista emissões de gases: se, por um lado, o uso de grandes proporções de biodiesel reduz a formação de material particulado, diminui a presença de enxofre por dele ser isento, e apresenta redução significativa de monóxido de carbono e mesmo de gás carbônico (CO2), terror dos “carbo-histéricos”, por outro há o incremento da emissão de óxidos de nitrogênio (NOx), fato este oriundo do maior número de cetanos do biodiesel em relação ao diesel de petróleo.
O número de cetanos consiste em um índice que correlaciona velocidade de ignição do combustível, entre sua injeção no motor e o início de sua queima. Um combustível com alto número de cetanos inflamar-se-á rapidamente quando injetado no motor, enquanto com outro de índice mais baixo esse tempo será maior. No diesel comum (S2000/1800/500), usado em motores fabricados até 2012, o índice de cetanos é 42; nos S50, 46, e no atual, o diesel S10, esse valor é 48, indicando uma queima mais rápida no ato da injeção. No caso do biodiesel, o número de cetanos é superior a 50, o que em um motor não preparado para queima de combustível com esses valores de cetanos leva a um aquecimento excessivo da câmara de combustão e a consequente formação de óxidos de nitrogênio.
Outro efeito colateral da maior porcentagem de biodiesel nos motores consiste no incremento do consumo de combustível. O biodiesel tem entre 80 e 90% do poder calorífico do diesel de petróleo. Isso representa valores entre entre 8.900 a 9500 kcal/kg, dependendo da matéria-prima do combustível, contra cerca de 10.900 kcal/kg do diesel de petróleo, o que em termos práticos implica redução da potência do motor e incremento do consumo de combustível quando empregado em grandes proporções.
O biodiesel em proporções até 20% pode ser usado na quase totalidade dos motores atualmente em circulação, desde os antigos com injeção de combustível na antecâmara (os chamados motores de injeção indireta) até os modernos common-rail, totalmente aptos e garantidos para rodar com essa mistura, sem ser prejudicial ao motor. A linha Ford Cargo equipada com motor Cummins homologou e garante seus produtos para uso do B20 assim como a Valtra Tratores, que foi mais além e permite o uso de biodiesel puro (B100) em seus produtos, sem a perda de garantia. Também há diversos testes com resultados amplamente publicados envolvendo experimentos-piloto com o uso de biodiesel puro em motores convencionais sem qualquer adaptação, tirando a maior frequência de manutenção com trocas de óleo em períodos mais curtos, assim como de filtro de combustível.
Desta maneira, a produção do biodiesel, além de mais simples, requer uma infraestrutura menos complexa que uma usina de álcool, além de aceitar uma ampla gama de matérias-primas (soja, dendê, algodão, sebo, óleo de fritura usado) e os motores não precisam de adaptações ou serem exclusivos para operação com o combustível.
É importante dizer que o biodiesel é um éster e um dos produtos que podem ser empregados como combustível em motores de ciclo Diesel. É diferente do diesel renovável obtido através da cana-de-açúcar e do H-Bio.
O diesel de cana é um hidrocarboneto produzido a partir de da fermentação do caldo da cana e processado por microrganismos especiais que, ao serem centrifugados, liberam os hidrocarbonetos. Uma tonelada de cana produz hoje cerca de 80 L de álcool etílico ou 50 L de hidrocarbonetos que formarão o diesel de cana.
Já o chamado H-Bio é o processamento de óleos e gorduras vegetais em refinarias de petróleo através de um processo denominado “hidrotratamento”. Neste processo, o óleo vegetal é submetido a temperaturas e pressões elevadas e na presença de hidrogênio, ocorre a formação de hidrocarbonetos de fração semelhante ao diesel e gás propano. Segundo a Petrobrás, o rendimento é de 96 L de diesel para cada 100 L de óleo de soja processado. Em caráter experimental, a empresa passou a refinar diesel empregando 10% de H-Bio, contudo tal experiência durou apenas um ano, findando em 2007.
Hoje fala-se muito de biocombustíveis, energias renováveis e ciclo do carbono. Todos sabemos que a terra é fonte de alimento para seres humanos e esta é a função que deve ser privilegiada. Assim, o aproveitamento com combustível deve se dar visando aquele que maximize a utilidade e a quantidade de energia produzida por hectare, bem como seu aproveitamento térmico e com reduzidas emissões. E levando em conta esse tipo de análise, nada mais natural e racional que se foque no ciclo Diesel e combustíveis para abastecer esse tipo de motor.
Hoje, embora exista uma massiva campanha contra o diesel na Europa (oriunda muito mais de um lobby de governos dado que há países onde mais de 70% da frota de carros é movida a diesel), os Estados Unidos, um país onde notoriamente consumo de combustível nunca foi fator decisório de compra de carro, está olhando com carinho para os motores a diesel. Até as picapes, que nunca tiveram a opção de diesel, já estão ganhando versões com essa motorização.
Atualmente os veículos a diesel, diferentemente do que ocorria no passado, emitem menos gases poluentes por quilômetro rodado que seus congêneres a álcool e a gasolina, isso sem falar na economia de combustível, sentida especialmente para quem roda bastante. O “dieselgate” da Volkswagen, citado de maneira recorrente como argumento para a não liberação do diesel no país, foi um caso isolado, que envolveu apenas a Volkswagen. No passado, a Fiat brasileira também foi condenada a pagar uma multa por comercializar o Mille com emissões superiores aos permitidos e nem por isso o Mille deixou de ser um bom carro ou a gasolina foi “amaldiçoada”. Será que aqui na terra brasilis devemos ter o nosso direito de escolha tolhido por uma Portaria de 40 anos atrás, cujos argumentos para sua manutenção residem apenas no politicamente correto, nas reportagens citando “engenheiros” (entre aspas mesmo) que não sabem do que falam, com estatísticas mais furadas que peneiras, ao invés de nos basearmos nos fatos, na técnica e no bom senso? É para refletirmos.
DA