Como o cavalo foi a primeira forma de locomoção do Homem e continua a servi-lo em situações específicas com total eficácia, e tendo eu grande intimidade com este incrível animal, ocorreu-me nesses dias de semiparada de trabalho compartilhar com o leitor a notável “engenharia” do cavalo.
O tamanho das cascos é uma das coisas que imediatamente observo num cavalo. Quando se olha certo cavalo pela primeira vez, já de imediato — como o bater de uma foto — se tem a impressão do conjunto, onde dentre as observações instantâneas se avaliam a altura, caixa toráxica, linha de dorso, comprimento dos membros e seus aprumos, inclinação da anca e da paleta, musculatura etc. Tal qual se faz com um carro, num bater d’olhos já se sabe bastante sobre ele.
Essa primeira impressão sobre um cavalo pode mudar após avaliação mais demorada e cuidadosa, onde cabe observá-lo em movimento e, se possível, montá-lo. Aí entrará um fator que não é físico, mas espiritual, e esse pode mudar tudo. É sacar se ele tem espírito ou não, se ele é orgulhoso ou não. Um cavalo fenotipicamente perfeito, porém apático, joga fora dotes físicos próprios para alto desempenho. Por outro lado, há cavalo “todo errado” que, por ter espírito, orgulho, altivez, é um espetáculo. Carro não tem espírito. Só tem reflexos do espírito de quem o criou.
E entre essas características observadas está o tamanho dos cascos; basicamente seu diâmetro e peso. Cascos grandes e pesados já dão a dica de que o cavalo terá dificuldade para ser ágil. Nada de errado com isso, mesmo porque cada raça foi formada para um fim e isso, claro, é que nem carro, se você foca em obter uma função tem que aceitar perda em outras. O Homem fez e faz a seleção em seus animais domésticos que segue o esquema da seleção natural, escolhendo os para reprodutores os mais aptos à função desejada. E cascos grandes, de grande diâmetro, são aptos para cavalos de tiro, ou seja, cavalos de força, tração, dos que puxam carroção pesado ou arado, por exemplo. Casco maior pressupõe ossatura de membros mais robusta, e uma das vantagens é distribuir mais a pressão exercida e daí afundar menos na terra. O Percheron e o Bretão são exemplos mais comuns de raças de tiro.
Cascos grandes e pesadas é como rodas grandes e pesadas — essas de picapes e suves. É para força bruta e lenta. Rodas grandes e pesadas pressupõem suspensão mais pesada e reforçada. Pneus massudos e largos afundam menos na terra. Como se vê, carro tem muito a ver com cavalo.
Além do tamanho das cascos, o ângulo que a quartela faz com a canela do membro anterior (o “braço”) indica se o cavalo é mais apropriado para força ou para montaria. Quartela é o osso que liga a pata à canela. Se o leitor observar a foto do cavalo inteiro e a foto do detalhe acima, ficará fácil entender a explicação que segue.
Essa junta funciona como uma mola. Quanto maior o ângulo, ou seja, quanto mais vertical ele for, menos amplitude de movimento, menos molejo, ele terá. Isso é bom para cavalo de tração, pois o esforço a que essa junta é submetida nesse trabalho é imenso. Essa é uma das razões dos cavalos de tração terem um trote duro de doer.
Já para um cavalo de sela é bom que esse molejo seja maior, uma porque ele suaviza o andar do animal, amortece o trote, outra porque ele ajuda na corrida, pois ele age como último e mais rápido movimento que impulsiona o cavalo, tal qual a quebrada de munheca que se dá ao arremessarmos uma pedra no lago. Mas tudo tem limite; ângulo pequeno demais, o que chamamos de cavalo achinelado, também não é bom, pois ele tende a perder a firmeza, a tropeçar fácil.
O cavalo da raça Quarto-de-Milha tem esse trote de quebrar dente, isso porque essa raça texana basicamente foi originada de éguas de tração com infusão de garanhões Puro-Sangue Inglês (PSI). O cavalo de tração levou os carroções dos colonos para o oeste e em seguida lavrou, plantou, colheu os grãos e os entregou na cidade. Passados anos, o já então estabelecido fazendeiro do Texas queria um cavalo mais rápido para lidar com o gado, já que a região não se presta ao plantio de grãos e vai bem para gado, daí buscou reproduzir suas éguas com cavalos de algum sangue PSI.
A Quarter-Horse, como lá é chamada, é a raça mais difundida no campo americano, já que é muito robusta e excelente para a lida, pois é ágil, firme de passo e dá uma arrancada de dragster, já que tem uma tremenda explosão muscular. A vaca não escapa do seu bote. Não é grande coisa para corrida de longa distância, pois tem pouco volume pulmonar para oxigenar sua tremenda quantidade de músculos. É como um velocista humano especializado nos 100 metros rasos.
Uma das vantagens do cavalo sobre o carro é que ele tem o “chassi moldável”, que se configura de acordo com as necessidades. Vejamos o caso de uma freada. Nós aqui sabemos que, ao frear, a massa do veículo se transfere para a frente. É por isso que em freada forte carro (e moto) embicam — afundam a dianteira e levantam a traseira —, numa clara demonstração de que o eixo traseiro ficou aliviado e o dianteiro, carregado. Esse, como sabemos, é o motivo de geralmente o freio dianteiro ser mais potente do que o traseiro, exemplificado pelos discos de freio dianteiros serem maiores que os traseiros e as pinças e diâmetro dos pistões serem maiores na frente do que atrás, ou mesmo o arranjo mais comum freio a disco na frente e a tambor atrás já bastar.
Dependendo do veículo e da intensidade da freada, algo como 80 % ou mais recai sobre o eixo dianteiro. Já os Porsche 911, com seu motor “de rabeta”, pendurado atrás do eixo traseiro, sempre frearam muito bem, pois sua distribuição de peso faz os pneus traseiros também atuarem bastante, bem mais que os pneus traseiros de um carro com motor dianteiro. Por isso mais acima eu disse “geralmente”, já que no 911 o freio traseiro é mais potente que em outros carros.
Então, que tal se tivéssemos um carro com chassi variável, que na freada mudasse assim sua configuração? 1) O motor dianteiro corresse para trás e fosse para a rabeta, e 2) Mudasse ambos os eixos mais para frente? Isso seria bom para frear, não seria? Pois é justamente isso que o cavalo faz. Veja a foto acima e confira.
Ele só não tem ABS…
Outra coisa interessante do ponto de vista da “engenharia” do cavalo é que para ser veloz ele segue a regra do mínimo de “peso não suspenso”. Note que ele praticamente não tem músculos nos membros, só nervos. Nós humanos temos o da panturrilha, a tal barriga da perna, mas eles não, isso para deslocarem o mínimo possível de peso ao longo do movimento de suas passadas. Os músculos de seus membros estão junto ao corpo. Os treinadores de jóqueis clubes, atentos, sabem bem da importância disso, tanto que os cavalos de corrida são ferrados com ferraduras de alumínio!
E já que falamos dos jóqueis clubes, vale lembrar que a pista de grama do Jockey Club de São Paulo tem 2.119 metros. Suas retas e curvas são tão amplas que, se ela fosse asfaltada, na certa os atuais organizadores de corridas de automóveis a achariam excessivamente veloz para corridas, “muito perigosa!”, e tratariam de fazer umas chicanes para reduzir a velocidade e criariam curvinhas fechadas que qualquer um faz, e ficaria tudo bonitinho.
Bom, é isso aí. Foi um jeito de escrever sobre esse nobre animal que é o cavalo sem sair muito do assunto automóvel. Provavelmente, se descendêssemos dele e não do macaco, nossa sociedade seria mais civilizada. O macaco é um bicho muito safado.
Feliz Ano Novo!
AK