A Ford iniciou suas atividades no Brasil, em 24 de abril de 1918, literalmente como montadora de veículos e também como importadora de automóveis. E foi assim até a inauguração de sua fábrica no bairro do Ipiranga em São Paulo, capital, onde modernas instalações foram concluídas para a produção da conceituada linha “F” de caminhões americanos.
Em 26 de agosto de 1957, a Ford do Brasil lançou o seu primeiro caminhão, o F-600, com índice de nacionalização de 40%, incluindo o seu motor V-8 a gasolina ainda importado dos Estados Unidos. Somente dois meses após, em outubro de 1957, foi à vez da picape F-100 entrar nas linhas de produção brasileiras. Em 1958 o motor V-8 bloco em “Y” já era feito no Brasil, com seus componentes seriados na também recém-inaugurada Fundição Ford na cidade de Osasco, vizinha a São Paulo.
Em 1959, outro lançamento importante, o caminhão médio F-350, incrementou ainda mais a linha dos produtos na Fabrica do Ipiranga. Fato relevante, os caminhões Ford participaram ativamente da construção de Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960. E a Ford, indo com vento de popa, anuncia a produção de 100.000 caminhões produzidos no Brasil já em 1964.
Em 16 de janeiro de 1967, a fábrica do Ipiranga deixou de ser somente fábrica de caminhões, dando inicio à produção do Ford Galaxie 500, um carro de porte grande, moderno e luxuoso, que impactou a indústria nacional de veículos e o mercado brasileiro na época. A Ford do Brasil estava praticamente atualizada com os modelos fabricados nos Estados Unidos, com poucas diferenças entre eles.
E em outubro de 1968 houve uma mudança radical na companhia, com a incorporação da fabrica de automóveis e utilitários Willys-Overland do Brasil ao grupo Ford. O pacote incluiu a fabrica em São Bernardo do Campo, com seus carros e utilitários, a fundição de Taubaté e o projeto “M”, que deu origem ao Corcel.
Os produtos Ford e Willys miscigenados, além do agrupamento das duas engenharias, causaram uma tremenda confusão que somente quem participou pode julgar: Aero-Willys, Rural, Jeep, Pick-up Jeep e o Corcel, joint venture com a Renault, misturados com a Série F e o Galaxie, tudo em um mesmo caldeirão. Foi realmente época difícil de engolir. Tudo se tornou redundante, com a Ford ficando com duas fundições, duas fábricas com usinagem e montagem de motores, a estamparia e duas enormes engenharias, além do restante das instalações em duplicata.
Creio que a Ford não soube lidar muito bem com esta união, dividindo o prestígio de seus produtos genuínos com os outros agregados. Um fator relevante que contribuiu para isso foi a predominância dos executivos da Willys ocupando altos cargos, em detrimento aos da Ford. Um bom exemplo de executivo de destaque vindo da Willys foi o engenheiro Luc de Ferran que por anos ocupou altas posições na Ford do Brasil.
Na verdade, parecia que a Willys havia comprado a Ford e não o contrário. A Willys com seus utilitários, estava de bem com o governo brasileiro, que os valorizava para uso militar e contribuindo para o seu prestigio, principalmente o Jeep e a Pick-up Jeep.
Uma das piores heranças vindas da Willys foi seu antigo, pesado e ineficiente motor BF-161, de seis cilindros em linha, apelidado de “fogão de seis bocas” e que era amplamente utilizado em seus carros e utilitários. Tinha as válvulas de admissão no cabeçote, as de escapamento no bloco e cilindrada de 161 polegadas cúbicas (2.638 cm³). Sua eficiência térmica era tão ruim que o seu sistema de arrefecimento incluiu um circuito externo adicional para esfriar o último cilindro. Foi um perfeito “abacaxi” de 90 cv (potência SAE bruta) e a Ford insistiu em continuar com ele ao invés de substituí-lo por um motor genuíno seu, disponível de prateleira. E também, o ícone Corcel e seu motor, arrastava consigo o projeto Renault — o Renault 12 —, contribuindo para afastar ainda mais os produtos legítimos Ford no Brasil.
Porém a Ford não desistia facilmente de continuar com a força de seus produtos genuínos no Brasil e novos projetos foram aventados através de sua engenharia avançada.
Maverick
O Maverick foi a escolha da Ford de um veículo intermediário entre o Corcel e o Galaxie, para ser fabricado no Brasil visando concorrer com o Chevrolet Opala, modelo que desde o lançamento no Salão do Automóvel de 1968 foi um grande sucesso. Com vasta opção de motores nos Estados Unidos, a Ford brasileira resolveu instalar o velho motor “fogão de seis bocas” em seu modelo básico, ficando como opcional o moderno V-8 302 (4.942 cm³) importado do Canadá via México. O que parecia ser mais econômico em termos financeiros foi a causa de grandes prejuízos à Ford, tanto em sua imagem, quanto nos vultosos investimentos gastos para o desenvolvimento e instalação do antigo motor no novo carro.
O motor Willys apresentava problemas de arrefecimento, consumo exagerado de óleo lubrificante, desempenho sofrível e consumo excessivo de combustível. Citavam as revistas e os jornais especializados na época: “Anda como um quatro-cilindros e bebe como um oito”, ou “Gera muito calor e dispõe de pouca potência específica”.
Conforme teste da revista Quatro Rodas em julho de 1973, o Maverick 6-cilindros atingiu a velocidade máxima de 150 km/h e acelerou de 0 a 100 km/h em longos 21 segundos. Qualquer carro de 1 litro de hoje anda mais que este Maverick de seis cilindros. E a imagem negativa do veículo estava consolidada entre os consumidores, ao contrário do que dizia a propaganda, “Um passo à frente”.
A revista Autoesporte, concorrente da Quatro Rodas, em sua edição naquele mesmo mês, testou o novo Ford e atingiu a mesma velocidade, mas na aceleração 0-100 km/h o Maverick saiu-se melhor, com 19,4 segundos. O teste foi feito e assinado pelo diretor de redação Mauro Forjaz e — adivinhe — o hoje editor-chefe do AE, o Bob Sharp. Enquanto a Quatro Rodas testou o veículo provavelmente em trecho da rodovia Castello Branco, a Autoesporte o fez no nível do mar, na então rodovia Rio-Santos (hoje a populosa avenida das Américas), no Rio de Janeiro. A cidade foi palco de lançamento do Maverick e era também onde ficava sede da Efecê Editora, que publicava a revista. A Ford, sabiamente, procurou se valer da maior pressão atmosférica possível…
A situação melhorou a partir de 1975, quando os modernos motores de quatro cilindros Georgia, OHC (comando de válvulas no cabeçote) de 2,3 litros, começaram a ser produzidos na fábrica Ford em Taubaté. Motor econômico e com bom rendimento térmico e volumétrico, foi instalado no lugar do antigo seis-cilindros, melhorando o desempenho do veículo. Mas já era tarde demais. Sobrou apenas o bom desempenho do motorzão V-8 302 que empurrava o Maverick com galhardia, acelerando- de 0 a 100 km/h em menos de 10 segundos e formando sua imagem de muscle car, ainda cultuada pelos saudosistas.
Entre o seu lançamento em 1973 e sua morte em 1979, foram produzidas 100.000 unidades no Brasil. Se fosse iniciado de maneira correta, sem a insistência com o “fogão de seis bocas”, o Ford Maverick teria tido melhor sorte, certamente.
Escort
Outro programa aventado para o Brasil foi o desenvolvimento do Escort para substituir o Corcel, isto nos idos de 1972. Na Europa, o Escort com motor longitudinal e tração traseira já fazia sucesso inclusive nas competições, nos ralis.
E por incrível que pareça, a força da Willys ainda estava fortemente presente nas decisões corporativas da Ford e o Escort foi descartado com a alegação de que o Corcel era muito mais bonito e adequado para o Brasil, com suas fortes suspensões e o econômico motor Renault. E mais uma vez a Ford foi ficando para trás em seus produtos genuínos.
Somente em 1983 chegou ao Brasil o Escort em sua versão MK3. Veículo mundial da Ford e com seu desenho dois volumes e meio, fez sucesso imediato principalmente em sua versão XR3 com sua “rabetinha” que dava prazer de olhar. E mais uma vez a Ford foi contra as suas raízes, abandonando seu moderno motor CVH, original europeu, preferindo utilizar o motor Renault do Corcel , já em sua versão CHT 1,6 (1.555 cm³).
O CHT até que dava conta do recado em um veiculo leve como o Escort, mantendo desempenho razoável e excelente economia de combustível, porém a competição com motores mais potentes fazia forte concorrência ao limitado CHT. O fato é que o antigo motor Renault já estava no limite em termos de cilindrada, pois a pouca parede entre os cilindros no bloco inviabilizava o aumento do seu diâmetro.
A engenharia até que tentou aumentá-la para 1,8 L incrementando o curso dos pistões, porém o projeto ficou tão ruim em termos de vibrações, desempenho e durabilidade, que foi rapidamente descartado.
E com a competição cada vez mais forte, a Ford foi ficando para trás em termos de motores e novos veículos, perdendo rapidamente sua competitividade no Brasil. Na realidade, a Ford estava quase com um pé fora do Brasil, e a união com a VW em 1987, pela Autolatina, foi um fôlego extra para a companhia. Surgiram novos modelos e os motores AP da VW fizeram um boa diferença para a marca.
Picape F-150
A F-150 surgiu como uma picape intermediaria entre a F-100 e a F-250. Lançada em 1973, tem sido a picape mais vendida nos Estados Unidos desde 1977 e se não bastasse, o veiculo mais vendido por lá desde 1981. É definitivamente a “joia da coroa” da Ford EUA.
E qual a indústria automobilística que não gostaria de ter a F-150 entre os seus produtos? Creio que a grande maioria daria tudo para tê-la.
A Ford no Brasil lançou a F-100 remodelada em 1992, ficando muito parecida com a F-150 norte americana de 1980, porém estava longe de acompanhar o desenvolvimento de seus modelos ao longo dos anos. Em 1999 foi substituída pela enorme F-250 que acabou formando um nicho de consumo. Foi descontinuada em 2011, modelo 2012, sem explicação convincente, com a Ford abandonando definitivamente o segmento de picapes grandes no Brasil. E com a faca e o queijo na mão, a Ford perdeu grande oportunidade de produzir a F-150 em sua ociosa fábrica de São Bernardo do Campo, certamente com um potencial garantido de sucesso.
Nos Estados Unidos a F-150 continua um fenômeno de vendas, se dando ao luxo a um projeto todo em alumínio estruturado, diminuindo o seu peso e melhorando ainda mais seu desempenho.
Outros
Em minha opinião, várias outras decisões impediram e continuam impedindo um maior progresso da Ford no Brasil: a insistência com o problemático câmbio robotizado de duas embreagens PowerShift; a picape Courier, descontinuada sem substituição; os caminhões da Série F descontinuados e novamente liberados “a toque de caixa” pelo clamor dos consumidores; a morte do motor Zetec RoCam, durável, barato e econômico, um dos melhores motores já fabricados pela Ford em todo o mundo; a importação da Transit como substituta da Série F; a descaracterização do suve EcoSport; A demolição do Prédio 1 da Fabrica do Ipiranga, e assim vai…
Hoje em dia, com base em seus excelentes produtos mundiais, esbanjando tecnologia, beleza e funcionalidade, a Ford teria tudo para se destacar definitivamente entre seus competidores locais no Brasil. Bastaria querer investir com audácia, sem medo de ser feliz.
Creio que o leitor está ávido de mandar sua opinião a respeito deste polêmico assunto que é a história da Ford no Brasil.
Hoje a homenagem vai à Hyundai Motor Brasil, que gradativamente vem produzindo em Piracicaba (SP) seus veículos mundiais com qualidade e perspicácia, valorizando a fundamental relação custo-benefício, necessária ao sucesso de qualquer empresa. Um quarto lugar em vendas em 2016, desbancando a Ford, é realmente um grande feito.
CM