Não temos muita noção, mas se você parar completamente de vender carros um dia sequer, os pátios das fábricas transbordariam num tsunami de caixas de metal com quatro rodas. Mais de 70 milhões de veículos saem de fábricas ao redor do planeta todo ano, algo perto de 300 mil todo santo dia. A produção mundial de um dia, portanto, seria suficiente para cobrir uma área de quase três milhões de metros quadrados, ou o equivalente a área de dez Basílicas de Nossa Senhora Aparecida. E isso sem contar os veículos comerciais…
Muitos creditam a transformação do automóvel em um produto produzido em massa a uma só pessoa: Henry Ford. É claro que a contribuição de Ford foi enorme e decisiva. Mas a história nunca é feita de uma pessoa somente, mas sim, como nos ensinou Charles Kettering, por ideias que são desenvolvidas através de gerações, muito antes de serem fisicamente possíveis, até que um dia alguém coloca um ingrediente que faltava na equação e, feito mágica, ela se torna real.
Um desses mágicos quase desconhecidos hoje é o tema desta matéria. Pouca gente ouviu falar de Edward Gowen Budd, mas quem estuda a história do automóvel o encontra inúmeras vezes, em pontos decisivos, agindo como a peça que faltava no intrincado xadrez da evolução desta indústria de massa, e de seus produtos. Muito da excelência do automóvel atual se deve ao trabalho deste homem que, muito tempo atrás, na infância do automóvel, conseguiu enxergar um futuro que ninguém mais viu.
Se encontra Budd principalmente na história de inovadores. Gente que chega tarde ao jogo da indústria, e precisa fazer algo diferente, novo, que lhe dê alguma vantagem palpável na batalha com gente mais estabelecida no ramo. Gente que, como ele mesmo, vive num futuro melhor que existe somente em sua cabeça, mas tem a capacidade de fazê-lo real. A ideia aqui é mostrar essas ligações, e de quebra mostrar como uma pessoa desconhecida pode ter a mesma importância de que um Henry Ford para a história do automóvel.
A lata
Os franceses podem ter adorado as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade sua famosa Revolução, mas julgando pelo que se seguiu, ninguém mais gostou. Depois da Revolução, o país se viu envolvido em uma série de guerras, com aparentemente todo o resto do mundo: Inglaterra, Prússia, Áustria, Espanha, Sardenha.
Os milhões de soldados franceses que morreram nessas guerras napoleônicas, porém, não morreram apenas em batalha. Doenças de toda sorte eram muito comuns, principalmente o escorbuto, mas também várias outras relacionadas a má nutrição. Fornecer alimento fresco e bom para os soldados e marinheiros longe de casa era um problema tão grande que um prêmio milionário foi oferecido pelo governo francês para quem inventasse um método confiável de embalar e conservar alimentos. Quatorze anos se passaram até que Nicolas Appert coletasse o prêmio.
Seu método, ainda sem explicação teórica (que viria depois com Pasteur), consistia em embalar os alimentos de forma higiênica, hermeticamente selados em um contêiner, e depois aquecido a uma certa temperatura. Desta forma, os alimentos duravam anos, conservando paladar e valor nutricional.
Appert usava jarros de vidro com rolhas de cortiça, mas em pouco tempo os ingleses Hall e Donkin, ao redor de 1811, criavam a lata que conhecemos e usamos até hoje. Não foi um grande sucesso de início, mas em 1815, com a invenção do abridor de latas, se tornou uma indústria de massa importantíssima, principalmente nos EUA. Antes do abridor a pessoa tinha que se virar para abrir o troço.
Um século depois de Appert, podia se comprar de tudo em latas, de cigarros a biscoitos, de pólvora a kits de manicure. Os brinquedos de criança eram todos feitos de chapa estampada, e novas e criativas maneiras de usar o baratíssimo metal estampado apareciam em todas as áreas da engenharia.
Era só uma questão de tempo para que alguém resolvesse fazer um automóvel “de lata”.
Edward G. Budd e o carro de metal
Budd era um engenheiro ferroviário, nascido do Delaware em 1870, que trabalhou na Pullman Company de Filadélfia, famoso produtor de vagões ferroviários, onde participou da criação do primeiro vagão totalmente em aço (até ali, madeira era o principal material).
No início do século 20, consegue um cargo de engenheiro-chefe em outra empresa de material ferroviário, a Hale & Kilburn, ainda na Filadélfia, onde se dedicou principalmente a substituir peças de metal fundido (principalmente ferro) por peças estampadas em aço. De rodas a elementos estruturais, Budd conseguiu grandes avanços na tecnologia de estampagem. Nesta empresa, seu braço direito era um engenheiro austríaco chamado Joseph Ledwinka.
Sim, Ledwinka é nome conhecido; um parente distante de Joe Ledwinka, Hans, ficaria famoso como o revolucionário engenheiro-chefe da Tatra, empresa localizada na Morávia, região que hoje faz parte da República Checa, mas que era então parte do Império Austro-Húngaro. Hans Ledwinka aparecerá nessa história mais adiante.
Ao redor de 1911, o engenheiro-chefe da Hupp Motor Company de Detroit (fundada por Robert Hupp em 1909, depois de trabalhar na Oldsmobile e na Ford), de nome Emil Nelson, consciente desses desenvolvimentos na área ferroviária, contata a Hale & Kilburn com uma ideia inusitada: produzir carrocerias de automóvel totalmente em aço estampado.
Até ali, um automóvel tinha algumas características básicas imutáveis, herdadas das carruagens de tração animal: um chassi de aço, onde toda a parte mecânica era montada, e que era de fato o principal elemento estrutural do veículo. Sobre ele, era montada uma carroceria, sempre com estrutura de madeira, recoberta normalmente de chapa de aço (formada à mão na maioria das vezes), mas também em alumínio, couro ou até tecido. Por isso, muitos carros eram vendidos apenas como chassi rolante, e eram encarroçados por empresas especializadas nisso.
O advento da produção em série tornou imediatamente a carroceria o gargalo da produção. Era um processo que consumia uma incrível quantidade de trabalho e tempo, e desafiava todas as tentativas de mecanização. A pintura também sofria com a estrutura de madeira: o risco de incêndio era real e grave, reduzindo muito as opções de tempo e temperatura de secagem nas estufas, e por consequência, de tintas que podiam ser usadas.
Ledwinka e Budd se dedicam então a projetar a carroceria do novo Hupmobile. Foi desenvolvido um sistema ainda primitivo de suportes onde conjuntos soldados eram fixados para que pudessem ser soldados. Esses subconjuntos soldados eram então enviados para Detroit, onde a Hupp os montava, pintava e acoplava ao chassi. O carro todo em metal foi chamado Hupmobile “32” e era oferecido em modelo tourer aberto, cupê fechado e limusine.
A qualidade do sistema todo, como não podia deixar de ser, nessa primeira tentativa, era errática, e os tempos de montagem e pintura continuavam grandes. Logo Emil Nelson deixava a companhia e a produção dos Hupmobile revertiam aos métodos tradicionais de carroceria com estrutura de madeira.
Mas ao invés de se sentir derrotado, Budd enxergou um futuro diferente. Entendeu que as possibilidades das carrocerias em chapas de aço estampadas eram imensas, se fossem estudadas melhor e evoluíssem. Ele e seu amigo Ledwinka abandonam a Hale & Kilburn naquele mesmo ano de 1912, e partem para fundar a Edward G. Budd Manufacturing Company, para explorar este mercado ainda inexistente.
Dodge Brothers
Uma das histórias mais interessantes do início do automóvel na América é a dos irmãos Dodge, John e Horace. Inseparáveis desde a infância, estes descendentes de ingleses nascidos no Michigan eram os milionários mais improváveis no nascimento da indústria. Os dois passaram a vida em oficinas, em meio a tornos e fresas, e, portanto, estavam sempre sujos de graxa, mais parecidos com peões do que com empresários. Seus modos eram rústicos, o que nunca os deixou em pé de igualdade com a elite do Michigan, que os rejeitava frequentemente. Os irmãos ruivos se sentiam mais à vontade na fábrica, e especialmente em bares depois do expediente, que nos eventos da alta sociedade da época.
Mas gostando ou não, a sociedade do Michigan acaba por aceitá-los, mesmo que meio a contragosto. Isso pelo fato de que só há uma coisa que a alta sociedade preza mais que bons modos: o dinheiro. Com a explosão da indústria automobilística da região, os irmãos Dodge rapidamente se tornaram estupidamente ricos. Mas ricos mesmo. Além de seus sonhos mais malucos.
Não é para menos: a Oldsmobile, por exemplo, notou que os motores fornecidos pelos Dodge, uma de suas várias fontes, eram mais potentes e suaves em funcionamento que todos os outros, mesmo se produzidos a partir dos mesmos desenhos. Os Dodge em seguida se tornavam fornecedores exclusivos da marca de Ranson Eli Olds, o fabricante de maior volume na primeira década do século 20. Expansões sucessivas se seguem, e tornam a companhia um dos maiores fornecedores da indústria da região, então em crescimento exponencial.
Em seguida, os irmãos entram de sócios e principais fornecedores de um novo produtor de automóveis, que tentava pela terceira vez criar sua própria empresa, após duas falências sucessivas: Henry Ford. Quando a década de 1910 se inicia, a produção em massa de Ford se consolida; em 1910, 20 mil Ford modelo T são produzidos, um número enorme para a época, mas apenas uma sombra do que estava por vir. Em 1915, seriam 300 mil carros, e em 1917, 700 mil, a caminho de uma carreira de 15 milhões de modelos T ao seu fim, em 1927. A Ford era de longe o maior fabricante do mundo, e em 1917 se dizia que metade dos carros do mundo eram modelo T. Este investimento na Ford, grande o suficiente para que John Dodge ocupasse a cadeira de vice-presidente do conselho, ajudou os Dodge, já extremamente bem-sucedidos com sua própria empresa, ficarem ainda mais cheios de dinheiro.
Mas Henry Ford não trabalhava bem se não fosse o chefe supremo. Começa um movimento para expulsar todos os acionistas e se tornar o único dono de sua empresa. Além disso, tem como objetivo a completa verticalização de sua fábrica, colocando os Dodge (e todos os outros fornecedores) de lado, o que culmina na famosa e gigantesca fábrica de River Rouge, onde de um lado entrava borracha, minério de ferro, e todas as outras matérias-primas, e do outro saíam modelos T novinhos.
Um longo conflito de interesses se segue, culminando com os Dodge vendendo suas ações para Ford por uma fortuna em dinheiro vivo, e abandonando o conselho da empresa de Henry.
Mas antes disso, já vislumbrando a futura separação, em 1913 os irmãos Dodge resolvem se tornar fabricantes de automóveis também. Horace anuncia publicamente o objetivo da nova empresa, dando uma cutucada em Henry no processo: “Eventualmente, o sujeito que tem um Ford vai querer comprar um automóvel…”
Os Dodge queriam um carro melhor que o modelo T, mas que não fosse muito mais caro. Para isso, resolveram investir em tecnologia de ponta: motor de quatro cilindros, mas mais potente que o T, transmissão moderna com embreagem e câmbio marchas selecionáveis por alavanca (o T era um diferente sistema epicicloidal de duas marchas), sistema elétrico de 12 V.
Mas a grande inovação foi a que aproximou a nascente empresa de Budd aos irmãos Dodge: carroceria totalmente em aço estampado. Após um encontro em 1913, onde um entusiasmado Budd apresenta o revolucionário conceito (que em paralelo, sem ligação, fora usado antes pela BSA na Inglaterra, mas sem o mesmo sucesso), vem um pedido formal da Dodge: 70 mil carrocerias para o ano de 1916.
Estas primeiras carrocerias seriam tourer abertos, como era a vasta maioria dos carros então, obviamente porque menos carroceria significava menos tempo de produção, nos métodos tradicionais. Logo, Budd e Dodge desenvolveriam um carro fechado de quatro portas, que se tornaria um grande sucesso e mudaria a indústria: os carros fechados ultrapassam a venda dos abertos a partir do ano de 1923.
O sistema criado para os Dodge era bem mais evoluído do que o da Hupp. Dispositivos de soldagem foram criados, e a qualidade final era muito melhor. O conhecimento crescia exponencialmente. Logo, toda indústria americana batia as portas de Budd para aprender o novo e lucrativo método. E, ato contínuo, gente de fora do país também.
André Citroën
Um engenheiro judeu nascido em Paris, André Citroën começou na indústria produzindo engrenagens com o desenho peculiar que depois seria o logotipo da marca de carros que leva seu nome. Mas alçou-se a fama durante a Primeira Grande Guerra, quando criou uma gigantesca fábrica nas margens do Sena, financiado pelo governo, para fabricar munições. A produção em massa de ordenança implementada por Citroën acaba com o crônico problema de falta de munição das tropas francesas, e certamente muda o curso da história: para aprovar sua fábrica, Citroën provara a liderança militar com seus cálculos que em alguns meses as tropas ficariam completamente sem munição se nada fosse feito.
No pós-guerra, aproveita a vasta fábrica e sua grande fortuna amealhada no conflito para se lançar àquele que parecia então o negócio do futuro: a produção de automóveis. Em 1919, tarde se contarmos que Renault e Peugeot (sem contar Panhard e outras) já existiam há pelo menos 20 anos.
Citroën se concentrou em carros populares e produção em massa, e logo conseguia importante lugar entre os grandes fabricantes franceses. Mas o verdadeiro salto veio em 1923: em visita aos EUA para conhecer a Ford e seus métodos, acaba por conhecer Budd e as carrocerias todas em aço soldado que ele fabricava. Fica maravilhado e logo fecha um acordo de consultoria e licença das patentes, a primeira licença fora dos EUA.
Citroën dizia que os métodos de Budd e a carroceria “tout acier” tornaram possível um aumento da produção de 50 para 400 carros por dia. Logo, mais de 50% do mercado francês era de Citroën, sua empresa maior que a Renault e Peugeot juntas.
Em seguida acontece o inevitável: Peugeot compra uma licença da empresa americana, e Louis Renault, sempre desconfiado e mão de vaca, faz sozinho sua carroceria de metal, dispensando Budd e suas patentes. Simca na França, Volvo na Suécia e Fiat na Itália também compram licenças. Bem mais tarde, no início dos anos 30, o primo de Joe Ledwinka, Hans, compra para a Tatra uma licença da Budd para fabricar em metal o primeiro de seus revolucionários carros aerodinâmicos com motor V-8 atrás do eixo traseiro: o Tatra 77 de 1934.
Na Inglaterra, porém, Budd operou de forma um pouco diferente, vendendo não licenças, mas carrocerias completas, como veremos a seguir.
William Morris
Quando William Morris, um astuto negociante de Oxford, na Inglaterra, fundou sua Morris Motors em 1919, chegava tarde na indústria também. A Daimler, primeiro fabricante inglês (e hoje parte da Jaguar), já operava há 23 anos. Seu maior futuro rival, Herbert Austin, tinha 14 anos de história. Para prosperar neste meio, saindo do nada, Morris sabia que tinha que fazer algo diferente. Morris começou de forma moderna, vista de hoje: ao invés de produzir tudo em casa, moda iniciada por Ford, por ter menos dinheiro para investir se concentrou em montagem, comprando tudo que podia de fornecedores.
Em uma de suas viagens aos EUA, para aprender métodos e conhecer potenciais fornecedores, acaba por conhecer Edward Budd, e seu método de carroceria em metal. Logo acordos de consultoria são firmados, culminando em um marco importantíssimo para a indústria inglesa em 1926: uma joint venture entre Budd e Morris cria a “Pressed Steel Company of Great Britain”, e uma enorme fábrica é criada perto da fábrica de Morris em Cowley.
A companhia seria vital para o desenvolvimento da indústria inglesa, se tornando o maior fornecedor de carrocerias da Ilha em pouco tempo. O ingrediente de produção em massa que faltava para que a indústria da Inglaterra decolasse. Centralizando as patentes de Budd, a empresa vende carrocerias completas para todas as marcas inglesas, sem exceção.
Mas não antes de Budd, na justiça, remover Morris da sociedade em 1930, por desacordo entre os dois sobre o fornecimento a terceiros.
Na Alemanha, depois da experiência com Morris, Budd também operou via uma joint venture: a Ambi-Budd de Berlim fornecia para a Adler, a BMW e à fábrica Volkswagen produzindo a carroceria do Tipo 82 Kübelwagen. Acaba ficando em território controlado pela União Soviética depois da guerra, e desaparece numa névoa estatal que cobriu a região.
O Ruxton
Ao redor de 1928, Joe Ledwinka e um engenheiro da Budd chamado William Muller aparecem com uma proposta inusitada para seu chefe Edward Budd: um carro de tração dianteira. A ideia era que a Budd desse o passo seguinte e oferecesse a seus clientes não apenas carrocerias, mas carros inteiros.
Ledwinka desenhava as carrocerias em aço, e Muller, o chassi com o sistema de tração dianteira acoplado ao motor, um Continental 18S (um 8-em-linha de válvulas laterais, 4,4 litros e 100 cv). O principal atrativo do carro seria, além da tração dianteira, a carroceria extremamente baixa (1.600 mm), tornada possível pela ausência do cardã.
O carro foi oferecido com um original logotipo com um ponto de interrogação apenas, uma dica de que qualquer nome poderia estar ali. Um diretor da Budd, Archie Andrews, era diretor da Hupp Motor Car Company também, e tentou vender o carro para ela. Quando ela declinou, formou a New Era Motors para produzir o carro.
O que se segue é uma história para lá de convoluta. O carro foi chamado de Ruxton, sobrenome de um conhecido investidor que se esperava entrar na jogada, mas que no fim, não entrou. As carrocerias eram montadas na Budd, com peças estampadas na Inglaterra na Pressed Steel Co. Andrews, procurando uma empresa que montasse o carro, formou acordos com a Gardner, a Moon, e a Kissel. Todas as três empresas estavam à beira da falência e acabaram falindo no meio do rolo. No final, algo em torno de 300 carros foram fabricados entre 1929 e 1930, 11 pela própria Budd, 27 na Kissel, e o resto na Moon. Os nós legais desse monte de falência junta somados à falência da própria New Era Motors só foram desatados completamente em 1966.
O Ruxton foi um fracasso, mas ensinou a Budd e Ledwinka sobre as possibilidades da tração dianteira. Os ingredientes do carro moderno iam aparecendo à frente de Edward G. Budd, um a um, em fileira.
O monobloco
Até aqui, início dos anos 30, as carrocerias ainda eram montadas em chassis separados, no método tradicional, apesar da carroceria de metal caminhar a passos largos para ser aplicação universal. O último ingrediente que faltava para o carro moderno era o fim do chassi, e a aplicação mais completa dos conceitos de Budd: a carroceria monobloco em aço estampado e soldado.
O primeiro carro monobloco da história, sem chassis separado, que integrava sua carroceria inteira como parte da estrutura do veículo e não apenas uma maneira de encapsular os ocupantes, foi o Latil de 1899, uma inovadora, mas irrelevante experiência nos primórdios do automóvel.
Gabriel Voisin, o engenheiro aeronáutico francês maluco-beleza, famoso por despender tanto esforço em colecionar conquistas amorosas quanto em desenhar aviões e carros, também foi um pioneiro do monobloco: seu carro de GP de 1923 era um monobloco de alumínio e madeira, desenhado por seu braço direito, o jovem André Lefebvre. Lefebvre, quando a Voisin fica mal financeiramente em 1930, vai trabalhar na Renault mas odeia o ambiente avesso à inovação; Gabriel Voisin o indica para o amigo André Citroën, que logo faria uso de sua experiência em monoblocos.
Mas voltando ao fio da meada histórico: o primeiro monobloco de real importância histórica foi sem dúvida nenhuma o Lancia Lambda de 1923. Vicenzo Lancia, um piloto que se tornou fabricante, pretendia baixar o centro de gravidade do carro e torna-lo mais rígido estruturalmente, ainda hoje importantes benefícios deste tipo de construção. Seu Lambda era um carro revolucionário, e anos à frente do que havia a venda então: o monobloco dava uma rigidez inédita, facilitando sobremaneira o trabalho das suspensões. A suspensão dianteira era independente por coluna deslizante, e o centro de gravidade baixo fazia o seu comportamento dinâmico excelente, completamente inédito ao seu tempo. Ajudavam aqui os bons freios nas quatro rodas, algo ainda incomum então. E, sem querer , foi o Lambda que trouxe ao mundo o túnel da transmissão: devido à carroceria bem baixa foi preciso arranjar um lugar para o cardã passar.
Mas em pouco tempo a empresa reverteria ao chassi separado. O motivo era simples: o Lambda era um carro caro, e de forma alguma produzido em larga escala. Os clientes deste tipo de veículo ainda estavam acostumados a encomendar carrocerias em sua casa preferida, às vezes com desenho exclusivo. O monobloco dificultava tal coisa, o que acaba dificultando as vendas. Os clientes de carros caros ainda demorariam para abraçar as vantagens do monobloco.
A estrutura do Lancia também não era algo fácil de fazer. Era construído a partir de chapa de aço, mas não no sistema moderno de estampos e solda a ponto; era feito manualmente usando peças de curvaturas não complexas.
Budd sabia qual era o passo seguinte; um monobloco criado com chapas estampadas e solda, algo hoje universal, mas ainda inexistente então. Desta forma, sem chassis, o carro podia ficar tão baixo quanto um Lancia Lambda, com todas as vantagens que isso gera. Se imaginarmos juntar o rebaixamento do veículo que fora possível no Ruxton, por sua tração dianteira, mais uma estrutura como a dos Lancia, rígida e também baixa, poderíamos ter um carro realmente interessante dinamicamente, e baratíssimo de se produzir. Só faltava alguém disposto a produzir em grande série algo tão revolucionário assim.
O Citroën Traction Avant
Esta pessoa, é claro, era André Citroën. Envolvido até o pescoço, como sempre, na sua antiga e eterna rixa com Louis Renault (Renault e Citroën eram opostos em tudo, como pessoas e industriais), desejava uma nova revolução que o colocasse à frente de seu rival, que acabara de expandir sua imensa fábrica em Billancourt, e ameaçava substituir Citroën nos corações dos franceses.
Citroën, apesar de responsável e solvente, era um jogador inveterado. Suas jogatinas nos cassinos europeus eram famosas e públicas, e este era um dos seus passatempos preferidos. Também na vida, agia como jogador: não tinha medo de apostar tudo, se acreditasse que as cartas estavam a seu favor.
Abraçou a ideia do carro de tração dianteira com carroceria monobloco desenvolvida por Budd com uma vontade imensa. Contratou André Lefebvre, como sabemos, para ajudá-lo. Investiu em novas prensas, novos estampos, ampliação da fábrica, para que o novo carro e o novo método chegassem com confiabilidade plena. Tudo isso em um clima de vendas em declínio na França.
Ao inventar o carro moderno, Citroën aprendia amargamente o ouro lado da moeda: para fabricar carros monobloco em chapa estampada, investe uma fábula de dinheiro no ferramental de estampo e soldagem para que a carroceria possa ser produzida com baixo custo. Rapidamente, durante os anos de desenvolvimento do revolucionário Traction Avant, o dinheiro da Citroën ia desaparecendo, queimado a uma velocidade alarmante.
Logo após o lançamento do carro, o impensável acontece: a Citroën se torna insolvente, incapaz de pagar seus fornecedores. A Michelin, seu maior credor, torna-se a dona da empresa, e os serviços de André Citroën são dispensados.
O carro, porém, é simplesmente uma das mais importantes revoluções da história do automóvel. Lançado em 1934, a carroceria baixíssima, a tração dianteira, e uma roda em cada canto do carro fizeram seu comportamento em curvas lendário, bem como seu conforto de marcha. A carroceria monobloco era leve, rígida, barata de se produzir, e tinha espaço interno exemplar. Vendido em um sem-fim de versões, por nada menos que 23 anos, foi um sucesso absoluto. Financiou mais algumas décadas de Citroëns inovadores projetados por Lefebvre, coisas tão incríveis quanto o 2 CV e o DS.
Ironicamente, a aposta de André Citroën estava certa: pouco tempo depois a empresa estava solvente de novo, e o seu carro, um sucesso de público e crítica. Mas ele não veria nada disso; a perda de sua empresa o abalou profundamente, e úlceras de estômago, certamente contraídas no stress dos últimos dias na empresa, se tornam um câncer inoperável. Vem a falecer pouco depois, em 1935.
O legado de Edward Budd
Os irmãos Dodge vêm a falecer cedo, já em 1920: John de gripe espanhola em janeiro, Horace de pneumonia complicada por cirrose em dezembro. Inseparáveis mesmo na morte. Sua empresa é vendida para Walter P. Chrysler em 1925. A Dodge, hoje uma divisão da multinacional FCA, permanece um legado ao espírito de seus fundadores, a menos séria e mais divertida marca americana, que dá aos entusiastas coisas maravilhosamente diferentes e interessantes, com nomes incríveis: Viper, Hellcat, Demon.
A Citroën no pós-guerra tem anos de grande sucesso de público e crítica, com os avançadíssimos carros projetados por André Lefebvre, debaixo do guarda-chuva benevolente da Michelin. Nos anos 70, ironicamente, a empresa é vendida para o mais conservador dos fabricantes franceses, a Peugeot, quando a Michelin reduz seu tamanho para se concentrar em pneus. Hoje a marca sofre para se manter relevante sem sua inovação tecnológica, tentando ser criativa em design apenas.
William Morris teve tanto sucesso que acaba recebendo um título de nobreza em 1929, se tornando o Primeiro Visconde de Nuffield. Compra a Wolseley e a Riley, além de fornecedores como a fábrica de carburadores SU, formando um conglomerado chamado de Organizações Nuffield. No pós-guerra, depois de juntar sua empresa à do arquirrival Herbert Austin, se torna o primeiro presidente da nova British Motors Corporation (BMC), em 1952. Um ano depois, aos 75 anos, se aposenta para cuidar de suas organizações filantrópicas. Vem a falecer em 1962.
A Pressed Steel Company se torna parte da BMC pouco depois disso, em 1965, um pouco antes da Jaguar também se unir à BMC. Depois o conglomerado, comprado pela Leyland, se torna a British Leyland em 1968. A antiga empresa de Budd e Morris desaparece dentro do gigante agora estatal (a partir de 1975). Como sabemos, foi depois privatizado em 1986 e virou Rover Group, para no fim ser comprado e vendido pela BMW, e desaparecer como empresa independente.
Mas a fábrica de Cowley ainda existe. Fabrica MINI para a BMW. O Mini original, por sinal, foi projetado por um engenheiro contratado pela Morris nos anos ’30, que aproveitou a grande experiência da empresa em carrocerias de aço estampado para fazer o seu Morris Minor de 1948, monobloco em aço estampado. Depois ensinaria o mundo como o carro do futuro deveria ser com seu Mini de 1959, que como o Citroën de 1934, somava as vantagens da tração dianteira (agora com motor transversal) com as vantagens da carroceria monobloco em aço estampado criada por Edward G. Budd.
Este engenheiro, Alec Issigonis, nasceu em Smyrna, uma cidade da Turquia (também conhecida por Izmir ou Esmirna). Edward Budd nasceu em Smyrna também, mas a que fica no Delaware, não na Turquia. Uma estranha e tênue ligação de gente ligada profundamente pela história.
A Edward G. Budd Manufacturing Company acaba por se juntar a alemã Thyssen em 1978, formando a Budd-Thyssen. Em 1999, vira parte do conglomerado ThyssenKrupp, efetivamente desaparecendo como entidade independente. Edward Gowen Budd, é claro, há muito já havia partido, em 1946, aos 75 anos de idade. Joseph Ledwinka foi para outro plano em 1949, aos 78.
Paradoxalmente, a sua indústria natal americana foi a última a abraçar completamente a sua revolução do monobloco de aço estampado, mantendo o chassi separado em alguns carros até o século 21. Mas hoje, carros de tração dianteira e monobloco “Budd” são a norma, e o chassi separado é usado somente em veículos de carga. A sua longa trajetória mudou completamente o automóvel, tornando-o melhor, mais barato, mais leve, mais seguro, de uma só tacada. Uma ideia simples, desenvolvida anos a fio, para ser adotada por todos. Um legado incrível para a humanidade.
E um feito em tanto para uma pessoa desconhecida, não acham?
MAO
Para saber mais (fontes):
Drive on! A social history of the motorcar – LJK Setright
Issigonis – The Official biography – Gillian Bardsley
Andre Citroën – John Reynolds
Tatra – The legacy of Hans Ledwinka – Ivan Margolius
Pioneers, Engineers, And Scoundrels: The Dawn Of The Automobile In America – Beverly Rae Kimes
The Beaulieu Encyclopedia of the Automobile – Verbetes Citroën, Ruxton e Dodge