Imagine um motor composto de duas bancadas de cilindros em paralelo, formando um “V”. Sua história começa em 1890 quando o engenheiro Gottlieb Daimler projetou um motor bicilindro com esta configuração. Mais tarde, em 1906, o físico e inventor Léon Lavavasseur deu continuidade ao projeto, construindo vários motores com a configuração “V”— V-2, V-4,V-6, V-8, V-10, V-12 e V-16, para várias aplicações, por exemplo em barcos e na indústria, de maneira geral. Sucesso veio com a aplicação aeronáutica de seu projeto, o aeroplano Antoinette IV com motor V-8, que tentou cruzar o English Channel (Canal da Mancha), não conseguindo devido a falha mecânica.
A sua aplicação automobilística aconteceu principalmente nos Estados Unidos a partir de 1906, porém, realmente se concretizou quando o gênio Henry Ford aperfeiçoou um motor V-8, em que as duas bancadas de quatro cilindros a 90° eram unidas em um só bloco fundido, formando um conjunto único, compacto, leve e eficiente. E assim, em 1932, nasceu o primeiro Ford V-8, o flathead (cabeçote plano, válvulas no bloco) de 3,6 litros (221 pol³) e 60 cv iniciando a sua saga de sucesso.
Cinco anos depois a Ford lançou o mesmo motor com cilindrada de 2,2 litros (136 pol³), também de 60 cv, que acabaria sendo o do Simca Chambord em 1959; o motor 3,6-l passava a 86 cv.
Os motores em “V” apresentam inúmeras vantagens em relação a outras configurações, como, por exemplo, virabrequim de menor comprimento, sendo sujeito a menores esforços de flexão; bloco mais curto, praticamente a metade de uma configuração em linha de mesmos número de cilindros e cilindrada; forças de inércia divididas, tanto no plano vertical, quanto no horizontal, facilitando o balanceamento dinâmico e resultando menores e mais controladas vibrações inerentes ao seu funcionamento; o ruído de quarta ordem do V-8, quatro explosões para cada volta do virabrequim, é especialmente agradável, sendo facilmente identificado e venerado pelos autoentusiastas.
Há dois tipos de V-8, cujo ângulo do “V” sempre é 90° e que diferem um do outro pelo desenho do virabrequim. Os dois tipos são o cruzado, com mancais das bielas a 90° e o plano, com mancais das bielas a 180°. Os motores V-8 têm a vantagem de não precisarem de mancais das bielas divididos, ou seja, duas bielas compartilham sempre o mesmo mancal.
Nos motores em “V” bancadas a 90° há pistões no mesmo mancal que se movem em direções exatamente opostas às dos contrapesos e suas forças de inércia conseguem ser praticamente anuladas. Motores V-8 do tipo cruzado apresentam funcionamento bem suave, porém não são tão giradores devido ao virabrequim com maior inércia rotacional.
Motores V-8 de virabrequim plano têm melhores respostas devido à menor inércia rotacional e isto facilita atingir maior rotação máxima e também maior potência em alta, sendo por estes motivos muito utilizados em carros esporte. A desvantagem está na vibração inerente as duas bancadas que corresponde praticamente a dois motores de quatro cilindros funcionando simultaneamente. O ruído de funcionamento também é mais presente e áspero, similar a dois motores de quatro cilindros juntos em paralelo.
A Ford lançou recentemente (2015) um V-8 de virabrequim plano de 5,2 litros para o Mustang Shelby GT350/GT350R, neste 533 cv a 7.500 rpm (corte a 8.250 rpm), com arquitetura de duplo comando e 4 válvulas por cilindro; a taxa de compressão é 12:1 e o torque é de 49,4 m·kgf a 4.750 rpm.
Ouça o ruído totalmente diferente dos V-8 de virabrequim cruzado:
Primeiro contato
Meu primeiro contato real com um motor V-8 foi na Chrysler do Brasil em sua fábrica em Santo André, SP. Lá foi o meu primeiro emprego ainda concluindo o meu curso de engenharia mecânica na FEI. O motor era o LA 318 V-8 que equipava os caminhões Dodge, D100, D400, D700 e também o carro Dodge Dart.
A Fábrica de Santo André era multifuncional, incluindo a fundição do bloco e dos componentes do motor, a usinagem e a montagem do motor e a montagem dos caminhões. O Dodge Dart era produzido na fábrica da Chrysler na Via Anchieta, defronte à Volkswagen. Lembro-me claramente da bancada de testes onde os motores produzidos eram avaliados um a um em seu funcionamento e balanceamento dinâmico, com aquele inconfundível ronco característico.
O motor era muito resistente para serviço pesado, com seu virabrequim forjado, mancais de grande recobrimento e tuchos hidráulicos no acionamento das válvulas, com comando único no bloco. Este motor, o LA 318 fez história mundialmente, equipando vários automóveis Chrysler, Dodge, Plymouth e outros durante muitos anos, a partir de 1967, empurrando também vários muscle cars com emoção.
Já como engenheiro e trabalhando na Ford, tive o prazer de conhecer outro V-8 histórico, o Windsor 302, produzido no Canadá, importado pelo Brasil via México, que equipava o Maverick e também o Galaxie.
Particularmente o Maverick com este baita motorzão sofria dinamicamente, pois acelerava muito e suas suspensões e freios estavam muito aquém do desejável. O modelo GT em 1973, com seus 198 cv de potência bruta SAE, chegava a quase 200 km/h de máxima e acelerava de 0 a 100 km/h em 10,5 segundos.
O motor 302 tinha particular ordem de ignição 1-5-4-2-6-3-7-8, que dava uma apimentada em seu ruído característico de funcionamento. Sendo um motor leve, compacto, resistente e durável, foi indiscutivelmente um dos pilares de sucesso da Ford mundial, principalmente em sua versão Boss de grande desempenho e que equipava o Mustang.
Em minha opinião os dois motores, o LA 318 da Chrysler e o Windsor 302 da Ford, foram dois dos melhores motores V-8 da história, empurrando vários carros icônicos mundiais. São venerados por quem gosta de automóvel e valorizados pelos colecionadores que os vê como obras de arte. Na realidade o veoitão é venerado de maneira geral, graças ao seu ruído característico de funcionamento, traduzindo potência com refinamento e que dá gosto de acelerar.
O V-8 que virou V-6
Brindo o leitor ou leitora com uma curiosa história envolvendo motores em “V”, referendada pelo meu grande amigo Alexandre Travassos, engenheiro multifuncional da Jaguar na Inglaterra.
A Jaguar, logo após ser vendida pela Ford, deu continuidade a seus próprios projetos, particularmente de um novo motor que deveria ser potente, leve, econômico e facilmente intercambiável entre os veículos da marca, porém sem contar com qualquer tecnologia herdada da Ford. E nasceu o novo motor de seis cilindros em “V”, derivado do moderno existente motor V-8-AJ 133.
E o leitor ou leitora pode me perguntar incrédulo (a), um V-6 que era V-8? E foi exatamente o que fez a Jaguar, o motor V-6 AJ-126.
O novo motor adotava praticamente o mesmo bloco de alumínio do V-8 com bancadas de cilindros a 90°, com as mesmas galerias de óleo e líquido arrefecedor, o mesmo compressor tipo Roots e mesma injeção direta de combustível. Adotava também o duplo comando de válvulas com fase variável. O virabrequim foi ajustado para cumprir a ordem de ignição a cada 120° incluindo massas de balanceamento das forças inerciais reformuladas para reduzir as vibrações. Como o bloco do V-6 era o mesmo do V-8, o virabrequim continuou com os mesmos cinco mancais, sendo praticamente um AJ-133 com os dois últimos cilindros não funcionais. Na realidade, o V-6 tinha diâmetro de cilindro menor e curso de pistão também diferente.
Resumindo, o V-6 derivado do V-8 foi uma inteligente gambiarra que alcançou os resultados pretendidos, mostrando-se uma excelente aplicação de engenharia, com os seguintes destaques:
• Excelente potência específica de 127 cv/litro (380 cv em três litros), a maior entre todos os motores da Jaguar, na época
• Excelente custo-benefício devido aos vários componentes comuns, inclusive a posição dos suportes e coxins do motor
• Linha de montagem comum com a do V-8
• Aplicação facilitada a todos os produtos Jaguar devido a seu projeto comum da maioria dos periféricos
• Funcionamento extremamente suave para um V-6 com bancadas a 90°.
Como desvantagens, podemos citar o maior atrito de funcionamento devido aos cinco mancais, o maior peso devido ao bloco comum e componentes adicionais, incluindo as necessárias massas contrarrotativas de balanceamento dinâmico.
Enfim, o motor existe e é um exemplo de engenharia aplicada, com soluções inteligentes e funcionais, “caindo como uma luva” dentro das premissas do projeto. Como referência, incluo as especificações dos motores V-6 e V-8, este entre parênteses:
Diâmetro dos cilindros: 84,5 mm (92,5 mm)
Curso dos pistões: 89,0 mm (93,0 mm)
Cilindrada: 2.995 cm³ (5.000 cm³)
Potência: 380 cv (550 cv)
Potência específica: 127 cv/l (110 cv/l)
A minha homenagem de hoje vai para Ford, que valorizou o motor V-8 em todas as suas variações, principalmente equipando o Mustang, que continua mantendo no presente a sua indiscutível imagem de potência e refinamento.
CM
Créditos: Imagens Google- acervo do autor- revista Car and Driver