Se o leitor estiver interessado em entender o que é trabalhar numa grande fábrica de automóveis e quiser ler apenas um livro, leia esse. Em inglês, são cerca de 140 páginas apenas, mas bem escritas e muito bem explicadas.
Não que eu já tenha lido todos os livros sobre o assunto que existem, acho que ninguém conseguiria essa proeza, mas depois de alguns muito interessantes encontrei por acaso The Man Who Saved The V-8 e me rendi à obra de Chase Morsey Jr (1919 – 2016), americano do Missouri que trabalhou em apenas uma fábrica de automóveis na sua longa carreira, a Ford.
O grande fato narrado e motivo do título é uma história de arrepiar. O choque de descobrir que a direção da empresa queria cancelar o motor V-8 para o ano-modelo 1952, depois de quase vinte anos de mercado e muito sucesso comercial e entusiástico, tendo feito a boa imagem da Ford diante do público e até mesmo gerado o universo das modificações de todos os tipos após a Segunda Guerra Mundial, resumidamente o movimento Hot Rod.
Morsey tinha um Ford V-8 Cupê azul escuro desde os 16 anos de idade, quando foi estudar na faculdade e sua mãe o presenteou com o carro. Com esse privilégio, aprendeu rapidamente o que significava o carro com esse tipo de motor, o único V-8 que trabalhadores normais podiam comprar, os restantes eram apenas para ricos, como Cadillacs e Lincolns. Sua paixão por dirigir vinha de antes, quando sua mãe o ensinou a dirigir, pois seu pai, advogado, não tinha nenhum gosto especial pelo assunto.
Chase, por recomendação de seu pai, foi conhecer o presidente da IBM, na época ainda uma empresa jovenzinha, mas que já estava chamando atenção, com suas máquinas criadas para controlar basicamente itens numerosos em estoques complexos. Por sua habilidade em comunicação, foi imediatamente contratado pela IBM ainda na escola, e ao se alistar para a Segunda Guerra Mundial na Força Aérea do Exército, foi imediatamente colocado a serviço nos EUA mesmo, no Wright Field, base aérea de Wright-Patterson, onde hoje está o Museu da Força Aérea Americana (veja essa matéra, se você gosta de aviões).
Alocado no Air Materiel Command (Comando Aéreo de Equipamentos Militares) onde máquinas da IBM funcionavam, Morsey se tornou responsável pelo controle de pessoas, peças e equipamentos para manutenção dos B-29 baseados no Pacífico, uma tarefa complexa pela distância e dinâmica da guerra, dos danos e das mudanças nas tripulações, seja por ferimentos ou por término do período de serviço.
Seu comandante nessa missão era o Major Jack Reith, que, para não contar o livro todo, levou-o depois de alguns poucos anos para a Ford para trabalhar junto ao time dos Whiz Kids, pessoal contratado por Henry Ford II para salvar a empresa, que perdia US$ 10 milhões por mês depois de retomada a produção no final de 1945. Os prejuízos aconteciam por simples descontrole completo de utilização de recursos. O líder desse grupo era o vice-presidente de Finanças, Robert McNamara, que depois viria se tornar Secretário de Defesa de John F. Kennedy.
Em 1949, com nove semanas de Ford e 29 anos de idade, Morsey foi nomeado Gerente de Planejamento de Produto, departamento ali criado pela primeira vez na indústria automobilística, algo que ele comemorou dizendo para Jack Reith: ” Great! What’s that? (“Ótimo! E o que é isso?”), e no mesmo dia recebeu uma pasta com os planos para os modelos de 1952 para ler e entender no final de semana.
Incrédulo, leu e releu o material e não encontrou nenhuma referência ao motor que fizera a fama da empresa. Depois de sofrer o final de semana todo com a constatação que não mais haveria motor V-8 em nenhum modelo Ford, Morsey foi a Reith na segunda-feira cedo, contou com paixão tudo que o motor era para a marca e foi levado em seguida ao chefe de ambos, para conseguir convencê-lo a patrocinar uma pesquisa de 90 dias sobre o motor e sua importância para os consumidores.
Trabalho feito, Morsey apresentou o resultado para toda a direção da Ford, numa reunião de duas horas que ele diz ter parecido duas semanas e a mais difícil de sua vida, e acabou convencendo os líderes que o motor devia permanecer em produção, mas os custos deveriam ser todos revistos para a decisão final.
A empresa tinha tantos problemas que se dizia que o V-8 custava cerca de cem dólares mais para ser produzido do que o seis-cilindros em linha que seria o único motor dali para frente, número irreal e que o time de Planejamento, depois de muita pesquisa interna, descobriu na verdade ser de apenas dezesseis dólares.
Imaginem a reação dentro da Ford quando se descobriu que a GM lançaria o seu V-8 em 1955!
Deste resultado incrível de coordenação e gerenciamento de equipe, Morsey assumiu novas tarefas seguidamente. Desafios constantes o levaram a projetos como o Thunderbird, um carro para chamar a atenção para a marca e levar as pessoas a visitar as concessionárias mesmo que fosse apenas para vê-lo. O Thunderbird, um esportivo confortável, é tido também como um dos salvadores do Corvette, pois este já estava em perigo de ser descontinuado quando o carro da Ford foi lançado e os comandantes da GM desistiram da loucura.
A revitalização da marca Lincoln com extensa campanha de marketing — quando Chase foi para essa área — colocando jogadores profissionais de golfe dirigindo os carros da marca, e se deslocando pelos EUA com eles, foi outro sucesso desse incrível profissional. Até hoje há torneios de golfe com patrocínio de marcas de carros, uma invenção dele.
A Mercury também foi alvo de suas melhorias, e o Comet conseguiu melhorar muito nas vendas com o trabalho de sua equipe. Uma das várias ações foi a distribuição de miniaturas para todos que fossem ao concessionário ver o carro, mesmo sem fechar negócio.
O último trabalho foi no Mustang, lado a lado com Lee Iacocca, onde a campanha de lançamento teve várias ideias vindo dele e de seu time, como a viagem de 75 carros por 750 milhas (1.200 km), levando 120 jornalistas da imprensa especializada e geral pelos EUA antes do lançamento, além da massiva publicidade em jornais, revistas e televisão, resultando em 43 mil carros vendidos no dia do lançamento e o primeiro milhão atingido antes de dois anos de produção, com lucro líquido de US$ 1,1 bilhão.
Depois de aposentado, Chase Morsey Jr. abriu seu concessionário Ford, trabalhou em alguns outros lugares até fundar sua pequena empresa de válvulas para petróleo que opera ainda hoje no Texas.
Ao longo do livro e mesmo nas considerações finais, Chase diz que jamais entendeu como teve coragem de mostrar à direção da Ford que matar o V-8 era um erro, conseguindo mudar a decisão tomada, e com humildade afirma que reconhecer os erros é característica apenas de grandes líderes, não de qualquer chefe.
Também explica que por mais que tenhamos certeza de algo, apenas dados concretos são capazes de convencer pessoas que precisam tomar decisões, sejam as menores e mais triviais, sejam aquelas que envolvem muita gente e dinheiro.
As lições humanas são muitas nesse livro, que Chase Morsey Jr. escreveu em 2010 aos 91 anos de idade, e ainda dirigindo todos os dias. Ele e sua esposa fizeram uma viagem da Califórnia ao Alasca quando ele tinha 86 anos de idade, sonho de longa data, e Morsey diz enfaticamente que tudo que aconteceu em sua vida começou com sua paixão pelos carros e principalmente por dirigir, sentimentos ampliados pelo V-8 flathead da Ford.
Seria divino se houvessem mais alguns milhões de Chase Morsey Jr. no mundo.
The Man Who Saved The V-8, de Chase Morsey Jr., é facilmente encontrado na Amazon.
JJ