Em abril de 2017, uma postagem do Clube do Automóvel Antigo de Taubaté (CAAT), que anunciava a abertura das inscrições para o 7º CAAT On The Road – 100 Milhas na Serra despertou minha curiosidade. Eu não conhecia aquela prova, mas me parecia ser bem interessante percorrer 100 milhas em um cenário exuberante como o da Serra da Mantiqueira. Imediatamente entrei em contato com o CAAT e as informações e gentileza do Sr. Aldo Toledo Fusco (Presidente do CAAT), bem como as belas fotos disponíveis na internet das provas anteriores, foram suficientes para definir a minha decisão em participar daquele rali de regularidade para carros históricos.
A singularidade do CAAT On The Road foi devidamente descrita há algumas semanas em uma bela trilogia assinada por Alexander Gromow que retratou todas as emoções do rali e, além disso, o sensacional vídeo de Paulo Keller revelou aos leitores cenas incríveis desta prova.
Contudo, a minha história nesse rali vai além dos momentos entre o briefing e a premiação.
Extrapolou as experiências vividas ao volante e significou um momento especial em minha vida profissional. Porém, para o meu relato fazer sentido, preciso contextualizar sobre minha formação universitária.
Assim sendo, há algumas décadas atrás após a conclusão do “colegial”, ingressei no curso de Educação Física. Depois de formado, o meu objetivo era seguir a carreira acadêmica, para atuar na docência e pesquisa. Fascinava-me o ambiente das universidades.
O caminho para alcançar essa meta passou pelo Mestrado em Ciências do Esporte (na Unicamp) e Doutorado em Ciências da Saúde (na Unifesp). Assim, ao longo dos anos de profissão, trabalhei em algumas Instituições de Ensino Superior (na graduação e pós-graduação), participei de centenas de pesquisas, orientei outras centenas de trabalhos de conclusão de curso, dezenas de projetos de iniciação científica e alguns mestrados. Durante essa trajetória, a Fisiologia do Exercício sempre esteve presente, fosse como Disciplina ou Linha de Pesquisa nos mais diversos estudos em que coordenei. Sem dúvida, me sinto realizado em minha área de atuação profissional.
Por outro lado, o autoentusiasmo e a paixão pelo automobilismo têm me acompanhado desde a infância, porém limitados à condição de hobby e/ou entretenimento. Evidentemente, nós como apaixonados por carros, corridas e motores sempre procuramos um meio para nos aproximarmos mais daquilo que nos agrada.
Particularmente, muitas vezes me deparava pesquisado artigos sobre preparação física dos pilotos de automobilismo. Sem dúvida que se tratava de um mecanismo inconsciente para conciliar paixões. Porém, essa condição de apenas “consumidor” dos estudos sobre aptidão física e automobilismo me incomodava há um bom tempo. Na verdade eu queria “produzir” algum conhecimento para contribuir na área.
Assim sendo, uma das minhas metas profissionais para o ano de 2017 foi a de criar uma linha de pesquisa na Instituição onde trabalho para investigar pelo menos dois aspectos considerados importantes para a performance física de pilotos de esportes a motor: monitoramento do esforço durante as corridas e métodos de treinamento específicos.
Então, em julho deste ano, nasceu o GEMPEF (Grupo de Estudos em Esportes a Motor e Performance Física) da Escola Superior de Educação Física de Jundiaí, visando aprofundar os conhecimentos sobre a influência da aptidão física nos esportes a motor; observar as respostas funcionais, fisiológicas e bioquímicas de pilotos frente competições, provas, sessões de treino em pista ou treinamento físico; desenvolver técnicas de monitoramento do esforço de pilotos durante as competições; estabelecer protocolos de treinamento físico para otimizar a performance física de praticantes de esporte a motor.
De início estabelecemos alguns protocolos de acompanhamento do esforço físico nas corridas. Definimos que, de acordo com os recursos disponíveis em nosso laboratório em consonância com literatura especializada, poderíamos monitorar três variáveis dos pilotos nas corridas:
1) Frequência Cardíaca (FC) inclusive com o registro da FC média e máxima durante a corrida;
2) Lactato Plasmático como indicador da atividade e estresse muscular;
3) Glicemia como parâmetro do fornecimento de energia para o sistema nervoso.
Como todo método experimental, era necessário testá-lo em um estudo-piloto para verificar na prática como o modelo de coleta de dados se comportaria.
E aí que entra novamente o Rali 7º CAAT On The Road, pois decidi utilizar essa prova para verificar as respostas fisiológicas e bioquímicas antes, durante e após uma corrida. Essa decisão ocorreu devido eu acreditar na importância da autoexperimentação, prática comum entre vários pesquisadores da área biológica, que consiste em o próprio autor do estudo testar em si mesmo o método da pesquisa, antes de realizar um estudo mais abrangente.
Então a participação no 7º CAAT On The Road envolveu, além da preparação do automóvel e conhecimento das regras da prova, uma logística e um estudo para planejar a pesquisa e para coletar os dados. E conferindo um tempero especial à minha participação no rali, pois além de toda a atmosfera da competição associada ao antigomobilismo, durante a prova eu também estaria envolvido em um inédito monitoramento de variáveis fisiológicas e bioquímicas.
Felizmente tudo correu bem durante a prova de quase cinco horas de duração. Não houve problemas com o meu valente Fiat 147 GLS 1979 e os dados foram coletados com sucesso. Tudo isso me motivou em um prazo de três dias a concluir um resumo da pesquisa para enviar para apreciação da Comissão Científica do 40º Simpósio Internacional de Ciências do Esporte, tradicional evento científico realizado anualmente no Centro de Convenções Rebouças em São Paulo.
Após algumas semanas recebi a resposta positiva da Organização do Simpósio, sendo o trabalho aprovado para apresentação no dia 5 de outubro de 2017. Sem dúvida, aquela apresentação de trabalho foi muito especial para mim, pois mesmo habituado a apresentar trabalhos científicos em congressos, tanto no Brasil como no exterior, eu tive aquela sensação de primeira vez. Simbolizou um grande momento de autoentusiasmo, onde eu realizava o sonho de falar sobre a minha paixão academicamente.
Foi necessário controlar minha empolgação para na descrição da metodologia do estudo não exagerar no detalhamento do percurso e desafios do rali, bem como não dedicar muito tempo aos atributos do Fiat 147 GLS 1979.
Com esforço consegui focar nos resultados e conclusões da pesquisa. Ao final da apresentação, fiquei ainda mais feliz pelo feedback positivo dos demais pesquisadores que elogiaram o trabalho. Finalmente para aquele estudo bandeira quadriculada! Contudo, para o GEMPEF foi apenas o inicio da primeira de várias temporadas.
Resultados do estudo
Na sequência o resumo do trabalho apresentado no 40º Simpósio Internacional de Ciências do Esporte, em suma pode-se verificar que os resultados mostraram que a frequência cardíaca não se modificou expressivamente, isso era esperado, pois o rali de regularidade não apresenta disputas e ultrapassagens que poderiam aumentar a FC devido a estresse emocional. Outro motivo que poderia promover a elevação da FC é o estresse térmico, fato que não presente na prova.
A glicemia abaixou durante o rali, como esperado, devido ao tempo que o piloto permaneceu em jejum, indicando a necessidade de ingestão de algum tipo de carboidrato de baixo índice glicêmico durante a corrida.
A concentração plasmática de lactato foi o dado mais surpreendente da pesquisa, pois se esperava um aumento, mas não nas proporções observadas. De uma maneira simples de explicar, pode-se dizer que o lactato expressa à intensidade de esforço muscular em condições que as fibras musculares trabalham em anaeróbias. Pesquisas com pilotos de kart, mostram aumento desse indicador após corridas. Em pilotos de Fórmula 1, por exemplo, a força G é uma das responsáveis pelo estresse muscular.
No caso do rali de regularidade sugere-se que devido às características do automóvel utilizado na prova, como direção sem assistência hidráulica e câmbio manual, associado ao constante acionamento de freios e embreagem podem cumulativamente causar um grande esforço muscular.
De fato, o fisiologista Turíbio de Barros Leite Barros observou em um estudo realizado que dirigir um carro com câmbio manual e direção sem assistência gasta em torno de 13 kcal/min enquanto conduzir carro com câmbio automático e direção com assistência por volta de 3 kcal/min.
Impossível ao observar esses dados não se lembrar dos famigerados carros autônomos… os quais praticamente não promoveriam nenhum gasto energético ao motorista na sua condução. Mais um ponto negativo para essa proposta. É evidente que não devemos considerar a condução do automóvel como uma prática de exercício físico, mas de fato, assim como outras facilidades do mundo moderno, os processos de automação acabam por reduzir com nosso dispêndio energético no dia a dia favorecendo o ganho de peso corporal.
De qualquer forma, pode-se concluir que quanto mais sensorial for o automóvel, mais os nossos músculos vão precisar trabalhar para controlar a máquina!
Abaixo o trabalho apresentado.
MC
RESPOSTAS FISIOLÓGICAS E BIOQUÍMICAS FRENTE À PROVA DE RALI DE REGULARIDADE: ESTUDO DE CASO
MARCELO CONTE¹ ²
ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA DE JUNDIAI¹ (ESEF)
GRUPO DE ESTUDOS DE ESPORTES A MOTOR E PERFORMANCE FÍSICA² (GEMPEF)
marcelo.conte.prof@gmail.com
INTRODUÇÃO: O automobilismo é esporte a motor praticado em quase todos os países do planeta com mais de 80 milhões de pilotos associados à Federação Internacional de Automobilismo. Diferentes categorias compõem esse esporte, como por exemplo: Monopostos; Stock Car; Turismo; Rali; Off-Road e Kart, entre outras. Especificamente, o Rali é uma prova de automobilismo que pode ser de regularidade ou velocidade realizada em circuitos pavimentados e/ou fora-de-estrada. Embora seja reconhecida a importância da condição física para o desempenho dos pilotos de corridas nas provas automobilísticas, ainda são poucos estudos disponíveis na literatura referente ao monitoramento de esforço nessas condições.
OBJETIVO: Verificar as respostas fisiológicas e bioquímicas de piloto amador frente a uma etapa de Rali de Regularidade. MÉTODO: Foram registradas, dez minutos antes da largada e cinco minutos após a chegada da prova, as concentrações de lactato plasmático, a glicemia e a frequência cardíaca (FC). Bem como, a FC foi monitorada durante toda a prova (obtendo a FC média e FC máxima). Os dados foram obtidos durante o Rali de Regularidade: 7º CAAT ON THE ROAD – 100 Milhas na Serra, destinado para carros históricos, com percurso total de 170 km e duração de 290 minutos. O piloto estudado (48 anos), fisicamente ativo, sem problemas de saúde conduziu um automóvel Fiat 147 GLS 1979 na prova. Também foi realizado, uma semana antes do Rali, o Teste de Velocidade Crítica Vm3Km, com o monitoramento das mesmas variáveis acompanhadas durante o Rali e o Teste de Endurance Muscular no supino com registro apenas da concentração de lactato antes e após a avaliação. Os dados foram analisados descritivamente e comparados através do Delta Percentual.
RESULTADOS: Os resultados obtidos no estudo são apresentados nas tabelas 1, 2 e 3. Pode-se observar que a concentração de lactato após a prova de Rali aumentou 880% e a glicemia 28,09%. Por outro lado, tanto a FC média como a máxima, registradas durante o Rali, foram relativamente baixas 49% e 68% da FCM, respectivamente. Descritivamente, a concentração de lactato na prova de Rali foi maior (34%) do que a registrada no teste de endurance muscular realizado no supino, contudo a FC no rali foi inferior (90,5%) à registrada no teste VM3KM.
CONCLUSÃO: Durante a prova de Rali de Regularidade pode-se observar que houve baixa exigência do sistema cardiovascular do piloto, porém uma alta demanda muscular observada pelo aumento expressivo do lactato após o final da corrida. Esses dados reforçam a necessidade de realização de outras investigações sobre o monitoramento do esforço de pilotos de automobilismo de diferentes categorias.