Quem acompanha o YouTube na área de reparação automobilística deve ter observado uma acalorada discussão sobre a questão fazer ou não fazer cambagem, discussão essa desencadeada com a exibição do programa Auto Esporte, da TV Globo, no dia 15/10 p.p., em que o apresentador César Urnhani focou extensivamente a questão e condenou esse tipo de serviço.
O assunto rendeu uma ampla discussão nos dias seguintes e bate-bocas virtuais (e um até presencial, no I Congresso Brasileiro do Mecânico, em São Paulo, no sábado seguinte, promovido pela revista O Mecânico), alguns defendendo, outros criticando o “fazer cambagem”numa calorosa discussão na qual, infelizmente, muito se criticou e ofendeu e pouco se falou de maneira técnica e realista sobre o assunto.
O posicionamento das rodas
O posicionamento das rodas de um veículo é construtivo, determinado pelo fabricante em projeto e desenvolvimento, sendo por isso um dado de capital importância para a dirigibilidade, envolvendo comportamento em curva, desgaste de pneus, esforço exercido no volante, e seu retorno automático da direção após uma curva de pequeno raio. Por essa razão deve-se evitar falar em “alinhamento de direção” (só vale coloquialmente), uma vez que, depois de medidos, se alinham, ou se ajustam, os ângulos das rodas, sejam dianteiras ou traseiras.
Os ângulos e regulagens envolvidos no alinhamento das rodas são a inclinação do eixo de esterçamento, o cáster, o câmber e a convergência, cujos conceitos já foram amplamente discutidos em matérias anteriores no AE como “O necessário alinhamento”, de Carlos Meccia e “Ângulos e seus efeitos”, de Bob Sharp. Por essa razão, para não ficarmos repetitivos, não entraremos no mérito de cada um deles. O que veremos aqui é justamente a questão de toda a discussão, o câmber, assunto que há muito dá margem para todo tipo de opinião, algumas de natureza técnica enquanto outras são meros palpites de “especialistas” na arte de “entortar” peças.
Antes de prosseguir, convém saber ao medir os ângulos das rodas é imperativo levar em conta as recomendações do fabricante do veículo para esta operação, ou a medição será errada. Uma recomendação, além da pressão dos pneus conferida e determinado volume de combustível no tanque, é a altura de rodagem. Esta pode resultar tanto de carga a bordo, no caso pela colocação de lastro, quanto da altura medida após trazer carro para a altura de rodagem recomenda por meio de ferramenta de tração que abaixe o veículo, como nos Peugeot. Infelizmente pouco se vê esse procedimento em boa parte dos serviços de alinhamento de rodas.
A consequência é ângulos das rodas estarem fora do padrão, o câmber principalmente, e o profissional de alinhamento recomendar “fazer a cambagem”, o que poderia ser eventualmente desnecessário caso a medição dos ângulos tivesse sido feita segundo o explicado acima.
A correção do câmber
Devido aos inúmeros buracos e ao solo lunar das ruas e estradas brasileiras, nada mais provável haver danos no conjunto de suspensão dos veículos. Amortecedores, molas e articuladores esféricos (“pivôs”), braços de suspensão (“bandejas”) são as principais vítimas do desgaste e/ou deformação, em muitos casos prematuros, que acabam por alterar a posição das rodas em relação ao chassi ou estrutura.
O câmber podia ser regulado na grande maioria dos casos por diversos meios, que vão desde o uso de parafusos de braços de suspensão (“bandeja”) apoiados em arruelas excêntricas, até a possibilidade de regulagem de posição do articulador esférico no braço de suspensão.
Todavia, a maior rigidez estrutural dos veículos e a precisão de manufatura de carros e peças permitiram abolir a regulagem de câmber, tornando mais simples e rápido o processo de fabricação dos veículos ao eliminar a etapa de outrora de regular o câmber, como ocorria, para dar um exemplo, no Opala. Na maioria dos carros atuais o único ajuste remanescente é o da convergência.
Acontece que justamente essa precisão de manufatura incorre na necessidade da perfeita ordem dos componentes da suspensão, sob pena de um pequeno desgaste em um componente refletir em uma mudança significativa dos ângulos nas rodas, fora dos limites de tolerância. E como é trabalhoso (e caro) procurar o erro, formou-se a prática de usar ferramentas hidráulicas (os “cyborgs”) para tracionar conjuntos de suspensão, com o objetivo de restabelecer o ângulo de câmber determinado pelo fabricante.
Assim, se houver problema de câmber errado no veículo, a conclusão óbvia é que o problema reside em alguma parte qualquer da suspensão! Uma bucha desgastada, uma mola “cansada” (altera a altura de rodagem original), ou mesmo um braço inferior (bandeja) com um leve empeno, é o suficiente para provocar desvio ângulo de câmber, e não será entortando peças que o ângulo correto será restabelecido.
O uso de ferramentas hidráulicas que tracionam o conjunto de suspensão para um lado e para o outro, “desentortando” (entortando?) o conjunto da suspensão é por si só uma aberração técnica, uma vez que certas ligas metálicas (como ferro fundido, por exemplo, e mesmo o aço) não toleram ser forçadas após deformação, sob pena de advirem trincas e rupturas.
No caso de suspensão McPherson, em que o amortecedor é estrutural, desentortar a coluna fatalmente entortará a haste do amortecedor, que perderá resistência e poderá se romper de depois de algum tempo, o que deixará o veículo incontrolável com o colapso da suspensão.
Se veículo continuar a apresentar problemas de câmber (e cáster) após a instalação de componentes de suspensão novos, provavelmente há algo escondido no histórico do veículo. Pode ser uma deformação estrutural resultado tanto de mau uso do carro quanto uma colisão que venha a abalar estruturalmente o veículo, devidamente escondida atrás de uma bela pintura e da “baixa quilometragem” daquele carro cujo dono anterior “era um senhor de idade que dirigia pouco e não tinha cuidado com buracos”.
Uma experiência pessoal
Já comentei várias vezes neste espaço que tive uma picape Ford Ranger XLT 3-litros Diesel 2007 e foi nela que aprendi todos os conceitos de geometria de suspensão dianteira.
Para quem não conhece, essa Ranger tem um conjunto de suspensão formado por dois braços de controle sobrepostos (“bandejas”) com articuladores esféricos. O braço superior possui o articulador fixo no próprio braço de controle, não sendo possível a troca apenas do componente; em caso de desgaste troca-se o braço completo. O elemento elástico da suspensão dianteira são duas longas barras de torção (têm mais de 1 metro!), hexagonais nas extremidades, onde são encaixadas numa ponta ao braço inferior, na outra a uma estrutura fixada no chassi onde há um parafuso de regulagem que permite erguer ou baixar a altura de rodagem dianteira.
Meu aprendizado começou aos 35.000 km. Por trafegar diariamente cerca de 45 quilômetros em estradas de terra, com “costelas de vaca” e buracos, era frequente minha visita a uma oficina de alinhamento para efetuar a verificação e ajuste dos ângulos das rodas. Numa dessas visitas o profissional me chamou e me recomendou procurar uma oficina especializada alinhamento técnico de chassi. Nesse dia sai inconformado, como um carro tão novo, com cerca de 1 ano de uso, poderia estar com o chassis empenado?
Depois de muitas pesquisas na internet e no catálogo de peças da Ford, acabei por descobrir a existência de um conjunto parafusos/arruelas excêntricas de fixação do braço superior (conforme visto no nº 2 da imagem acima) que permitiam a regulagem de câmber e cáster da Ranger. Esse conjunto inclusive, além de vendido no mercado de reposição americano, era oferecido no Brasil pela própria Ford. E adquirido o conjunto, o ajuste do câmber podia ser feito sem a necessidade de macacos hidráulicos, correntes e torção do carro.
Depois disso, continuei com uma rotina normal com a Ranger até aproximadamente 80.000 km, quando necessitei reajustar o câmber e “erguer a frente” pelo ajuste da ancoragem das barras de torção no chassi. E foi aí que os problemas começaram a surgir.
A picape perdeu ajuste de cambagem e a frente, afundada num aparente “cansaço” das barras de torção, e a regulagem da chaveta (nº 5) já estava no limite. E foi nesse momento que um profissional me recomendou novamente o alinhamento técnico de chassis.
Como havia a necessidade de substituição dos rolamentos de roda da caminhonete (mal crônico das Ford Ranger Diesel, dianteira muito pesada pelo emprego de motor Diesel num projeto que previa apenas motores a gasolina), solicitei a desmontagem completa de toda a suspensão dianteira da picape e a explicação de todos os meus problemas apareceu como num passe de mágica!
A perda de câmber e cáster adveio de folga no terminal esférico do braço de controle superior (peça nº 1), bem como as buchas de borracha já desgastadas. A altura de rodagem estava prejudicada em virtude de desgaste do embuchamento do braço de controle inferior (nº 7). Como o referido braço é quem suporta a outra ponta da barra de torção, ao apertar a regulagem da chaveta (nº 5 – local de ligação da barra de torção nº6 com o chassis), esforçava-se ainda mais as buchas do braço inferior, acentuando o desgaste.
Trocada todas as peças tudo se normalizou. Os valores de câmber e cáster voltaram automaticamente para os valores estabelecidos pela Ford e o a altura da caminhonete voltou à normal, com o parafuso de regulagem da chaveta ficando praticamente todo desrosqueado (antes, ele estava rosqueado ao limite).
Aprendi nesse episódio algumas lições: 1) Alinhamento técnico em carro que não sofreu colisão é altamente questionável; 2) Todo conjunto mecânico tem um “fusível”, que é o primeiro componente a ser danificado quando de esforços acima do limite; no caso da Ranger, o terminal esférico do braço superior; 3) E por fim, para que sair “torcendo” uma torre de suspensão, um monobloco ou mesmo um chassi, se muito antes de um buraco causar um dano nesse conjunto existem peças mais fracas que podem ser substituídas e resolvem a questão com a técnica correta?
Assim, quando um dia chegarem e afirmarem que o carro “não dá cambagem”, desconfie. Há partes da suspensão desgastadas e o reparo correto não é puxando e repuxando peças com ferramenta hidráulica.
DA