O Museu do Ar foi uma surpresa ótima. Talvez o leitor ou leitora já saiba que sou absolutamente apaixonado por museus de aviões e de carros. É algo que não sei explicar, apenas sei que procurar museus e visitá-los me move.
Em Portugal, um país que preza e divulga muito sua história em todos os seus aspectos, não poderia faltar um local onde a história da aviação fosse preservada e mostrada de maneira adequada, somando itens militares e civis, algo sempre agradável. Fui para lá pela primeira vez com a missão de avaliar o Renault Captur diesel. Naquela matéria há uma foto na fachada do museu.
Os galpões do museu ficam na Base Aérea de Sintra, numa localidade chamada Granja do Marquês – Pêro Pinheiro, a não mais de meia hora de carro desde Lisboa. Pela falta de espaço para o acervo, que conta com cerca de 10 mil itens, está dividido em outro local, Ovar, onde estão mais aeronaves e onde funciona a oficina de restauração. Este também pode ser visitado, mas me faltou tempo, então me direcionei ao maior acervo.
Não é um museu novo, foi aberto ao público em 1º de julho de 1968, data em que se comemora o dia da Força Aérea Portuguesa — conhecida também pelo seu brasão, Cruz de Cristo — mas está muito bem mantido, o que ajudou a lhe conferir prêmios e entrar na lista dos 20 melhores museus de aviação do mundo, classificação proveniente da Associação Internacional dos Museus dos Transportes e das Comunicações.
A exposição permanente do museu apresenta aviões, motores, partes de aviões com cabines, simuladores antigos, painéis de instrumentos, equipamentos de navegação e uma grande quantidade de outros objetos importantes da aviação em Portugal e suas conquistas, principalmente relativas às viagens de longa distância do começo do século XX, quando a aviação engatinhava no mundo todo. Basta lembrar do primeiro voo de travessia do Oceano Atlântico que cruzou a linha do equador, saindo de Portugal em 30 de março de 1922 e chegando ao Brasil em 17 de junho, realizado por Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Há uma miniatura em escala 1:25 do Fairey IIID, um dos aviões utilizados nessa viagem, já que o avião original já desapareceu há muito tempo.
O Museu do Ar incorpora, na sua sede na Granja do Marquês, dois valiosos acervos provenientes da TAP (Transportes Aéreos Portugueses, atualmente Air Portugal) e da ANA (Aeroportos e Navegação Aérea), alargando o seu olhar ao mundo da Aviação Civil.
A primeira peça logo na entrada é novidade total para mim. Uma réplica das asas e cauda feitas em junho de 1540 por João Almeida Torto, o primeiro português a conseguir voar, embora de forma imperfeita. A história é imprecisa, com fontes afirmando que ele não chegou a voar nada, e outras dizendo que planou por uma certa distância, mas caiu depois que uma das asas se dobrou, além do “capacete” com forma de cabeça de pássaro tendo se deslocado e impedido sua visão, se ferindo na queda e falecendo depois de dois dias.
Há uma réplica do Demoiselle de Santos Dumont, embora modernizada, com motor de ultraleve e alguns detalhes diferentes, mas dá para pensar o que significava naquela época, mais ainda agora, com a tecnologia quase estelar em qualquer aeronave, onde se cruza um oceano e depois um continente na sequência, como se fosse fácil.
O primeiro treinador prático usado em Portugal foi o DeHavilland Tiger Moth, que foi inclusive construído sob licença de 1938 a 1952. Digo prático pois antes dele houve apenas um exemplar do biplano francês Maurice Farman MF-4 foi usado de 1912 a 1917, mas era lento demais, 80 km/h, e tinha alcance de apenas 60 km.
Bem mais moderno era o DeHavilland DHC-1 Chipmunk, de construção metálica e motor Lycoming de 180 hp, que podia voa a até 289 km/h. Também foi fabricado em Portugal, e voou até 1989 na FAP. Foi depois doado pelo governo a vários aeroclubes, e muitos voam até hoje. (Nota do autor: sabidamente 1 hp = 0,986 cv ou 1 cv = 1,0139 hp, mas mantive essa e outras potência em hp por razão exclusivamente histórica).
De 1936 a 1972 a Força Aérea Portuguesa utilizou os Junkers Ju-52 3m como avião de transporte, lançador de paraquedistas e treinamento de navegação, além da capacidade de levar 1.500 kg de bombas caso necessário. Depois que os motores BMW radiais de 660 hp se tornaram de difícil manutenção, alguns aviões foram modificados para utilizar radiais, também de 9 cilindros, Pratt &Whitney canadenses, com 550 hp, similares aos do treinador americano North American T-6, talvez o treinador militar mais utilizado em todo mundo. O Ju-52 tem construção toda metálica, com revestimento em alumínio corrugado de grande resistência e que faz parte da estrutura.
De 1950 a 1968 foi utilizado para fotografia aérea e reconhecimento o DeHavilland DH-89 Dragon Rapide, biplano inglês de cabine fechada e dois motores seis em linha de 200 hp cada. Trata-se de um clássico do aviões de transporte de pessoas, usado mais de maneira civil do que militar.
Os caças a jato estão dispostos na sequência, ao lado do primeiro caça puro utilizado em Portugal, o Supermarine Spitfire (foto de abertura). O primeiro jato da FAP foi o Republic F-84G Thunderjet, avião americano que foi construído em grande quantidade — mais de 7.500 — e distribuído pelas forças aéreas aliadas da Europa, tendo sido usado, entre outros, na França, Itália, Portugal, Espanha, Dinamarca e Bélgica. Só Portugal foram 125 exemplares em operação.
Já no fim da vida operacional, os Thunderjets começaram a ser trocados pelos Sabres. É sempre bom chegar perto de um F-86 Sabre, caça leve de fama enorme, forjada na Guerra da Coreia (de 25/06/50 a 27/07/53). Portugal utilizou-os de 1958 até 1980, armados com seis metralhadoras .50, 2.000 kg de bombas sob as asas ou dois mísseis ar-ar. O modelo F foi o mais fabricado e aperfeiçoado dos Sabres, que tem uma aerodinâmica apurada e um equilíbrio notáveis, sendo por muitos pilotos considerado o melhor jato de combate para se pilotar, sem vícios e nem problemas que requeiram habilidades fora do normal. Para saber mais sobre ele, veja essa matéria.
O Ling-Temco-Vought Corsair II, americano, chegou em 1981 em Portugal e substituiu o F-86 Sabre. Além de missões de caça, onde não era muito adequado, como avião de ataque ao solo teve uso bastante extenso — participou do conflito no Vietnã – a FAP teve 50 deles. Comparado ao Sabre, é um bruto, mas também muito interessante. O avião exposto é um dos seis de treinamento, TA-7P, e está com sinais de uso mas muito bem limpo e conservado, exatamente como eu considero a condição ideal para uma peça de museu. Pinturas camufladas brilhantes para ficar bonito para exposição definitivamente não combinam com aviões militares. Este está delicioso de ser visto demoradamente.
Também na linha dos caças, mas mais normalmente usado para ataque ao solo, é o Fiat G-91, o exemplar do museu sendo um dos mais voados em todo mundo, com 75 mil horas. A pintura mostra os anos de operação desse exemplar, de 1965 a 1993, muita coisa para aviões de alto desempenho em uso militar, mostrando a confiabilidade elevada desse projeto italiano muito baseado no do Sabre.
Um helicóptero bastante interessante mecanicamente é o Sikorsky H-19, de transporte, busca e salvamento. O motor é a pistão, radial, instalado inclinado no nariz, com a árvore de potência subindo inclinada para trás, passando entre os assentos dos pilotos até a caixa de transmissão, abaixo do rotor principal. Uma configuração mais apropriada a projetos soviéticos, mas é americano mesmo, embora o fundador da empresa, Igor Sikorsky, um dos pioneiros do helicóptero operacional seja ucraniano de nascimento, mas que se estabeleceu nos EUA após a revolução russa de 1917 e o regime comunista instalado.
O H-19 foi usado também no Brasil, e havia versão com flutuadores para pouso na água. Tem um guincho na lateral direita, junto da porta corrediça de grandes dimensões, equipamento básico para salvamentos. Uma das boas vantagens da posição do motor é a facilidade de manutenção, pois não é preciso subir até próximo do rotor.
Uma cabine completa de um Lockheed Constellation, quadrimotor de passageiros que é considerado um dos mais belos aviões comerciais de todos os tempos, está disponível para visitação. Não se pode sentar nos bancos dos pilotos, mas vale gastar um tempo para ver os vários rádios de comunicação, junto do posto do operador de rádio, a mesa e os instrumentos do engenheiro de voo e o espaço disponível.
Um avião de transporte militar muito curioso é o Nord Noratlas, exemplar em estado incrível de conservação. As portas traseiras em forma de concha se abrem para os lados, e pode-se ver o volume interno disponível, no acesso debaixo da cauda dupla. Os rodas do trem principal são um bocado grandes, e tenho uma foto ao lado para dar a noção do tamanho. O Noratlas foi fabricado de 1949 a 1961, voava a 404 km/h carregado, peso máximo de 20.600 kg, impulsionado por dois motores de 2.090 hp.
Eu gosto demais de descobrir aviões (e carros, claro) dos quais nunca havia ouvido falar, e no Museu do Ar existe um desses. O Jurca MJ-2B Tempete (tempestade), projetado por Marcel Jurca no começo dos anos 1950, que comercializava as plantas para construtores amadores que quisessem um avião leve acrobático, atividade conhecida como aviação experimental. Foram construídos mais de 300 exemplares. O do museu voou em 1965 e depois de algum tempo foi doado para o museu. Com motor Continental de 90 hp chega a até 280 km/h, denotando a boa aerodinâmica. Há vários ainda voando, a maioria nos EUA.
Outro avião que também operou bastante no Brasil é o Cessna T-37 Dragonfly, utilizado para treinamento de jatos, ataque ao solo e bombardeio leve, aí passando a se chamar A-37. Lutou bastante no Vietnã, e tem fácil manutenção por utilizar pequenos motores General Electric J69, de utilização ampla na aviação militar, facilitando a comunização de procedimentos de trabalho de mecânicos. Apesar do último ter sido fabricado em 1975, ainda é usado em alguns países da América Latina. No Brasil foi substituído pelo Embraer T-27 Tucano.
Após a aposentadoria do T-37, Portugal passou a utilizar o Alpha-Jet, projeto conjunto alemão e francês para equipar vários países com um jato de baixos custos de operação. tem um desenho belíssimo, acesso fácil sem escadas para os dois tripulantes, motores baixos para rápidos consertos sem necessidade de escadas ou plataformas de trabalho e trem de pouso robusto para operar em pistas ruins.
Os administradores do Museu do Ar estão de parabéns pelas ideias diferentes. Uma peça que chama muito a atenção de quem gosta de mecânica é o helicóptero Sud-Aviation Alouette III que era utilizado para treinamento de mecânicos das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, na base aérea de Alverca. Não há nenhum dos painéis que formam a fuselagem da aeronave, estando apenas o piso principal com o trem de pouso, banco do piloto, comandos de voo, motor, transmissão, rotor principal e de cauda. É magnífico para se ver componentes e peças, e é possível movimentar alguns comandos sentado no assento principal, que está disponível, já que não havia nenhum aviso em contrário.
Há uma sala no museu dedicada aos pioneiros da aviação portuguesa, principalmente no que se refere a viagens de longa distância em busca da primazia por rotas nunca antes tentadas. Nas palavras do autor Mário Correia, partiam de Portugal “deixando para trás o conforto e a rotina diárias, estes aviadores aventuravam-se para o desconhecido, arriscando a vida em frágeis aviões, com que sobrevoavam pela primeira vez, e durante horas, vastas regiões desconhecidas e inóspitas.” O local tem muitos documentos, fotos, cartas, itens pessoais, partes de aviões, medalhas, troféus e muito mais coisas, e me despertou a vontade de ler mais a respeito. Encontrei na loja do museu um bom livro, do autor citado, Aviadores Portugueses, a Aventura dos Pioneiros, 1920-1934, que li em poucas horas, pela ótima narrativa e a organização separando por viagens de cada uma das equipes. Estas, partindo de Portugal, foram desde as ilhas do Atlântico até o Oriente, nessa fase de pouquíssimo apoio técnico e viagens que duravam muitos meses e muitas quebras, consertos e incidentes. Junto à Torre de Belém, em Lisboa, há um monumento em homenagem e esses aviadores, uma escultura em tamanho real do Fairey de Cabral e Coutinho.
Do lado de fora do museu, em parte do pátio da base aérea, que é operacional, há quatro aviões em estado que clama por cuidados e um teto protetor. Um Lockheed P-2V Neptune, de patrulha marítima; um treinador supersônico Northrop T-38 Talon, avião de transporte pessoal dos astronautas americanos até meados da década de 1970 e usado em muitas forças aéreas do mundo; Um CASA Aviocar, transporte espanhol de peso médio; e um Lockheed P-3C Orion, também de patrulha marítima, aeronave baseada no Electra L-188, que tão bem serviu à Ponte Aérea Rio-São Paulo durante tantos anos. O Neptune já equipou esquadrões marítimos no Brasil, e o Orion já está em operação agora, complementando com longo alcance as missões dos EMB-111 Bandeirante Patrulha (P-95M quando modernizados). Todos precisam de uma restauração, que não parece ser extensa, mas o problema é sempre espaço quando se trata de guardar aviões em museus.
O local tem um belo acervo, é organizado, muito limpo, decentemente espaçoso, com iluminação razoável em quase todos os pontos, uma boa loja com vários itens — os mais interessantes sendo os livros — e pouco público em dias de semana. Talvez por isso, o pequeno bar e restaurante não estava funcionando, tendo sido desativado há alguns meses, realmente uma pena. Quem for a Lisboa ou arredores deve dar uma passada de algumas horas.
JJ