A popularização do V-8 americano começa com o lançamento do Ford V-8 de válvulas laterais em 1932. O Ford V-8 de cabeçote plano — ou “cabeça chata”, como muitos dizem, de flat head em inglês — tinha esse nome porque assim eram os cabeçotes desse motor, planos, basicamente uma tampa de cilindros com os furos rosqueados para as velas (chegava a ser chamado de “tampão” pelos mais velhos) tinha uma série de novidades: o bloco era fundido em uma peça única, compacta e leve. Como era produzido em massa como todo Ford, era também barato. Se tornou imediatamente muito popular, pois seu desempenho passava a ser próximo de carros que custavam duas ou três vezes seu preço.
Digno de nota foi a Ford ter feito este lançamento em plena e severa depressão econômica, consequência da quebra da Bolsa de Nova York em 29 de outubro de 1929, que passou à História com a Black Tuesday (Terça-feira Negra). O ousado passo que Henry Ford deu provou ter sido o certo, pois reacendeu o desejo de compra de uma maneira avassaladora, remédio infalível para maus momentos da economia.
Até ali um V-8 era uma configuração rara, e restrita a carros de alto preço, mas Ford conseguiu ver as vantagens claras sobre os seis e oito em linha então comuns: um motor mais compacto, leve, tornando o centro de gravidade do veículo mais baixo devido às bancadas de cilindros inclinadas.
O carro que o usava não precisava de um capô mais longo do que era usado então em carros de quatro cilindros como os Ford A e B, fazendo assim um carro menor, mais leve e mais barato que os seis e oito em linha. Estava selada a maior tradição automobilística americana: o V-8 de alto desempenho e baixo preço.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, Ed Cole da GM se pôs a usar tudo que fora aprendido no conflito para melhorar ainda mais os motores desta configuração. O resultado foram os famosos V-8 “high compression” da Cadillac e Oldsmobile, lançados em 1949. Usando taxa de compressão mais alta, fruto das pesquisas de Kettering sobre aditivos de gasolina baseados em chumbo tetraetila, e sobre desenhos de câmara de combustão para evitar detonação, os motores passavam a ter um cabeçote com as válvulas nele, e não mais no bloco, acionadas por varetas (daí “vareteiro”) e balancins a partir de um comando único central no vale do bloco. Era configuração de válvulas no cabeçote, overhead valves em inglês, a universal sigla OHV.
Esses V-8 da GM efetivamente selaram a configuração básica do V-8 americano, e o tornou famoso e quase imortal. O desenho da câmara em seção é triangular (“wedge”, cunha) nesses motores, com as válvulas em um dos lados, a vela de ignição no outro, e o topo do bloco fechando o triângulo. Olhando de frente para a câmara de combustão no cabeçote, o desenho se aproxima ao de um coração, com a vela entre as duas válvulas, mas oposta a elas. Desta forma, câmaras pequenas são possíveis, com a consequente alta taxa de compressão — lembre-se, a fórmula da taxa de compressão é V/v +1, em que V é o volume do cilindro (ou cilindrada unitária) e v, o volume da câmara de combustão.
O motor permanece pequeno, extremamente compacto e leve em relação à sua cilindrada, e também o centro de gravidade é baixo pelo motivo explicado mais acima.
Em seguida, tanto Zora Arkus-Duntov com sua firma Ardun, quanto a Chrysler, tentam uma evolução em cima disso. Colocando as válvulas no cabeçote em lados opostos de um hemisfério em seção, e a vela no meio, mas mantendo o comando ainda no bloco, criam o famoso HEMI. Teoricamente ainda melhor que os V-8 com câmara triangular, mas na verdade, devido à sua complexidade, tamanho maior e mais altura (centro de gravidade do veículo mais alto), acabam por desaparecer da produção normal, para se manterem apenas esporadicamente em aplicações de alto desempenho.
A evolução importante que se segue é o famoso V-8 Chevrolet de bloco pequeno de 1955. O Chevrolet tornou cilindradas de 4,3 a 6,5 litros possíveis em um motor minúsculo, criado a partir de técnicas de fundição de parede fina, e o trem de válvulas com balancins de aço estampado permitia um desempenho exemplar com custo e peso baixíssimos. Foi uma verdadeira revolução, e durou até os anos 90, quando foi substituído pelo ainda melhor V-8 LS que ainda está em produção. O LS é provavelmente o topo, a maior evolução deste tipo de motor, o melhor. E uma evolução direta do primeiro V-8 Cadillac de 1949.
A Ford, Chrysler e a AMC/Jeep acabam por usar motores semelhantes, e ajudar na popularização deste tipo de motor durante os anos. Hoje a Ford usa até modernos V-8 com duplo comando de válvulas no cabeçote, uma configuração extremamente eficiente, mas evoluindo para um conceito mais europeu, diferente do que falamos aqui. No Mustang GT350, foi mais além: usa inclusive virabrequim plano, recurso normalmente usado nos V-8 de competição, e em Ferraris. A Chrysler voltou a um V-8 “vareteiro” semi-Hemi (a câmara é um meio termo entre o triangular e o Hemi), para poder usar o nome Hemi basicamente, algo de alto valor espiritual e de marketing, mas ainda se mantendo fiel ao V-8 americano. A GM, com o LS, tornou o V-8 dos EUA tradicional, “wedge”, algo moderno, capaz de se manter válido e comparável aos melhores duplo-comando atuais.
O motor V-8 com comando único no bloco e válvulas no cabeçote é uma configuração eminentemente americana, então, e de incrível sucesso e longevidade naquele país. Na Europa, porém, estes motores tiveram menos sucesso. Os europeus precisam de carros menores para suas vias mais apertadas, e precisam também sempre de maior economia de combustível que os americanos, que desde sempre foram abençoados com uma gasolina baratíssima. Desta forma, evoluíram sempre para motores menores mais eficientes em consumo. Uma tendência que se repetia praticamente no resto do mundo.
Mas, obviamente, as vantagens dos V-8 americanos não ficaram esquecidas pelos europeus. A ideia aqui hoje é mostrar algumas vezes onde o Velho Continente criou motores de configuração americana, tão parecidos com o desenho ianque que poderiam ter sido criados lá. Na verdade, um deles realmente foi, apesar de ficar famoso do outro lado do atlântico.
Mas estes V-8, é claro, são também diferentes. Acostumados a economizar tamanho e peso a todo custo, precisaram evoluir neste sentido para usar a configuração americana de motor em seus carros. Normalmente, os V-8 europeus são menores, e muitas vezes construídos em alumínio, e não ferro fundido. Hoje usar alumínio em motores é até corriqueiro, mas falando de V-8 tradicional, estes são pioneiros.
E, mostrando novamente o quão especial é o pouco entendido V-8 “vareteiro”, alguns deles foram produzidos por mais de dez anos, e alguns deles, por várias décadas!
São eles:
• Fiat 8V (1952-1954)
Logo depois da guerra, quando o grande Dante Giacosa estava desenhando o carro que seria o 1400, a Fiat pensava seriamente em substituir o 2800 do pré-guerra com um novo e moderno carro usando a carroceria do 1400, entre-eixos aumentado, e um novo motor. Para isso, Giacosa e sua equipe desenharam um minúsculo V-8 de baixa cilindrada e 70 graus de ângulo entre bancadas, designação interna Tipo 106, para mantê-lo pequeno em largura. Afinal de contas, a intenção era montar o motor no lugar aonde ia o quatro em linha do 1400, e Giacosa já mostrara que espaço em seus projetos sempre foi tratado como algo de valor inestimável.
O motor todo em alumínio media 72 mm por 61 mm, diâmetro e curso, para uma cilindrada de 1.996 cm³. Tinha comando único no vale do “V”, e válvulas acionadas por varetas e balancins, bem no idioma americano. O pequeno V-8 se mostrou suave e potente para sua cilindrada (algo em torno de 100 cv), mas muito caro. Logo nascia a ideia de aumentar a cilindrada do quatro em linha do 1400, o que seria muito mais barato. Nascia assim o Fiat 1900 em 1954, e o pequeno V-8 parecia fadado ao esquecimento. O 1900 era na verdade muito mais simples que o planejado sedã V-8, mas de qualquer forma o desenvolvimento deste carro parou completamente.
Mas aparece então em cena nesta história Carlo Salamano, lendária figura na história da Fiat. Salamano era ex-piloto de Grand Prix (monopostos antecessores dos Fórmula 1), e o chefe do departamento de testes da empresa. Nosso amigo, na verdade, é a pessoa sobre qual se costuma colocar a responsabilidade sobre o brio, a alma esportiva, de todos os carros Fiat. Viu neste pequeno V-8 uma chance de fazer um carro esporte e de competição novamente (a Fiat abandonara competições em 1927), e agarrou a oportunidade com vontade.
O carro resultante foi o 8V, ou Otto Vu em italiano. Com estilo de Fabio Luigi Rappi e desenhos de Dante Giacosa, o carro resultante tinha motor central-dianteiro, tração traseira, suspensão independente nas quatro rodas, e freios a tambor hidráulicos em todos os cantos. O pequeno V-8 era alimentado por um Weber duplo e produzia aproximadamente 105 cv a 5.600 rpm, mas alguns poucos carros foram equipados com um enorme Weber 36 IF4/C de corpo quádruplo, oferecendo reputados 125 cv para apenas uma tonelada exata de peso. Uma pequena série de apenas 114 carros serviu praticamente só para homologar o carro para competição, fabricados em parte nas oficinas da Siata. Mesmo tendo cessada a produção em 1954, o carro ganhou o campeonato italiano até 2 litros de 1952 a 1959.
• BMW (1954-1965)
Quando Fritz Fiedler volta para a BMW em 1952 depois de alguns anos na Inglaterra, encontra a empresa de novo de pé, mas com um problema sério. O novo 501, um sedã de luxo, ainda usava um seis-cilindros de 2 litros do pré-guerra, então completamente insuficiente para carregar o grande sedã de uma forma minimamente aceitável. Começa o desenvolvimento de um novo motor imediatamente, baseado em estudos já em andamento no momento de sua chegada.
O V-8 resultante é quase uma cópia do desenho básico do V-8 Cadillac de 1949. Mas também, é diferente de uma série de formas decisivas.
Primeiro, é muito menor. Na Europa, os 5,5 litros dos Caddy era simplesmente algo impossível, pois qualquer coisa acima de 2 litros já era considerado um luxo impensável, um motor grande demais. O V-8 BMW seria muito menor. Também, na mesma linha, era todo feito em alumínio, com camisas úmidas de ferro fundido insertadas, ficando então algo extremamente leve e compacto, não pesando muito mais que um quatro em linha de ferro fundido contemporâneo.
Deslocava inicialmente 2,6 litros e entregava100 cv, e no fim de sua vida, já com 3,2 litros e carburação dupla Zenith, 160 cv. Clássicos imortais da marca como o 507 de 1956 foram equipados exclusivamente com este motor, até que efetivamente foi substituído pelo novo seis em linha M30 no meio dos anos ’60.
• Rolls-Royce (1959 – hoje)
Nos anos ’50, o importante mercado americano ficava bem mais difícil para a Rolls-Royce. Carros americanos de luxo como Cadillac, Lincoln e Chrysler se tornavam extremamente refinados, com assistência nos freios e direção, câmbios automáticos e acessórios como vidros e bancos elétricos ou eletro-hidráulicos. Isso tudo sem contar com os novos V-8 de grande cilindrada e elevada potência, em pacotes relativamente pequenos de peso e tamanho.
Os Rolls-Royce ainda tinham câmbio manual, e seu principal motor era um seis em linha com admissão no cabeçote e escapamento lateral (cabeçote em “F”, num esquema parecido com o do Aero-Willys BF161), 4,9 litros. Algo precisava ser feito.
A primeira coisa foi adotar câmbio automático, uma unidade comprada da GM. Mas também se iniciou o desenvolvimento de um novo motor. Obviamente os motores americanos foram observados com cuidado para definir a configuração deste novo, pois o resultado final é bem parecido com eles.
Lançado em 1959, o novo V-8 era obviamente uma nova variação do tema “V-8 americano”. Eram 6,25 litros (“six and a quarter litre”) a partir de um diâmetro de 104 mm e um curso de 91 mm, “V” a 90 graus, comando único no bloco no vale do V, câmaras triangulares e válvulas no cabeçote. Mas também era diferente: todo em alumínio, tinha camisas úmidas de ferro fundido insertadas no bloco (a técnica de fazer motores de alumínio sem camisas ainda engatinhava), ordem de ignição diferente do usual americano (1-5-4-8-6-3-7-2) e os dutos de admissão inspirados no famoso V-12 Merlin usados em aviões militares.
Em 1968, já nos novos Silver Shadow com carroceria monobloco, recebia uma atualização por aumento de cilindrada, chegando aos 6,75 litros (por meio de aumento de curso para 99 mm) que mantém até hoje. Em 1982, parte de uma revitalização da marca Bentley, o V-8 ganha um turbocompressor AirResearch no Mulsanne Turbo. Em 1985, uma versão com suspensão e freios melhorados chamada de Bentley Turbo R é lançada, e se torna uma lenda: um gigante inglês cheio de couro e madeira que podia acompanhar carros esporte.
Como já contei aqui, quando chega 1998 vemos o motor V-8 descontinuado, substituído por V-12 (nos Rolls-Royce) e V-8 biturbo de 4,4 litros (Bentley), comprados da BMW. Quando a VW compra a Rolls-Royce no mesmo ano, acaba por ficar com a empresa, mas não com os direitos da marca Rolls-Royce, que estavam com a BMW. Some-se isso com um repúdio generalizado do V-8 BMW que equipava os Bentley então (torque menor que o antigo 6,75), e logo a VW começa um plano emergencial para a volta do motor antigo, reprojetado.
Hoje, com dois turbos, 537 cv e nada menos que 105 m·kgf, é, segundo dados da empresa, um motor com 150% mais potência e torque, 40% mais econômico, e com um nível de emissões 99,5% menor que a sua versão original.
Incrivelmente longevo, este último motor Rolls-Royce leva quase 30 horas para ser fabricado. Produção seriada aqui é um termo usado com bastante parcimônia.
• Daimler 2,5 & 4,5 litros (1962-1969)
Edward Turner, famoso por seu trabalho em motores nas motocicletas Ariel, Triumph e BSA, no final dos anos 50 é promovido para o cargo de chefia do braço automobilístico da BSA. Neste novo cargo, desenvolve um novo V-8 para os carros da marca britânica Daimler, então ainda independente.
Criado em dois tamanhos, de 2,5 e 4,5 litros, tinha bloco de ferro fundido e cabeçote em alumínio, e desenho de câmara de combustão hemisférica com válvulas opostas como os Chrysler Hemi. O motor menor foi usado inicialmente no carro esporte Daimler Dart, e depois da compra da empresa pela Jaguar, em uma versão do Jaguar MkII renomeada Daimler 250. O maior foi usado na limusine Daimler Majestic Major.
• Rover (1967-2004)
Este V-8 é o que mostra mais claramente a ligação americana: foi criado originalmente pela Buick.
Lançado originalmente em 1961 nos Buick Special, Pontiac Tempest, e, numa versão ligeiramente alterada, no Oldsmobile F85, o pequeno V-8 de alumínio e 3,5 litros era extremamente compacto e leve, ideal para a nova geração de avançados compactos da GM.
Na época se ventilou que este V-8 seria uma cópia do BMW, visto que ambos compartilham de várias dimensões importantes, mas é claro que não é verdade. Ambos saíram de uma análise apurada do V-8 Cadillac de 1949, e assim chegaram a resultados parecidos. No detalhe, são bem diferentes, a mais clara diferença no fato de que as camisas de cilindro no V-8 Buick são secas.
Mas este V-8 teve vida curta na GM; era muito caro e de fabricação muito complexa para os volumes enormes de venda da empresa, então dominando praticamente metade do mercado mundial de carros. É criado um V-6 de ferro fundido baseado nele, e o V-8 de alumínio desaparece do mercado americano.
Mas a Rover inglesa, então desejando motores mais potentes para seus carros de passeio, e um meio de voltar ao mercado americano com os Land Rover, se interessa pelo motor. Acaba por comprar o projeto da GM, com vistas a produzi-lo na Inglaterra. Comprou apenas os desenhos em papel mesmo, nenhum ferramental foi envolvido na transação, apenas os serviços de consultor do engenheiro Joe Turlay, da Buick. Os volumes da Rover seriam infinitamente menores, e, portanto, os ferramentais americanos não serviriam de qualquer forma: mesmo sendo produzido nos EUA por apenas três anos (frente a 37 na Inglaterra), ainda assim mais motores foram fabricados nos EUA do que na Inglaterra…
O V-8 Rover, lançado no sedã P5B em 1967, se tornou importantíssimo para a companhia. Foi a base de um novo Land Rover de luxo, um suve na sua essência, chamado Range Rover. Foi usado em praticamente toda a indústria de carro esporte inglesa, como no Morgan Plus 8. Teve vida longa nos sedãs da companhia, e foi a base da fama que até hoje a marca Land Rover tem. Os últimos motores deslocavam 4,6 litros, e tinham moderna injeção eletrônica multiponto sequencial. A produção finalmente se encerra em 2004.
Até na Fórmula 1
Esse mesmo motor foi utilizado, com cilindrada de 3 litros e cabeçotes próprios, pela preparadora de motores australiana Repco para propulsionar o Brabham de Fórmula 1, o Brabham-Repco BT20, carro que deu o campeonato de 1966 ao piloto-construtor Jack Brabham e o de 1967, ao neozelandês Denny Hulme. A Brabham levantou o título de Construtores nesses dois anos.
Brabham-Repco BT20 (Foto: primotipo.com)
MAO