A fábrica da Chrysler era uma série de longas e relativamente estreitas alas, cortadas por ruas internas na margem esquerda da Via Anchieta, em frente à Volkswagen do Brasil.
As alas se estendiam por quilômetros, começando (lado Santos) pelo pátio de estacionamento dos veículos prontos, linha de montagem, estamparia, ala administrativa, engenharia e lá no fim, perto de São Bernardo do Campo, a área de Design.
O estúdio era relativamente pequeno, mas completo. Recepção, sala do chefe, Color & Trim, eram de entrada livre. Passando uma porta restritiva, abria-se a área da modelação, que era também a área de apresentação, a sala do estilista (eu), tapeçaria, oficina de máquinas e um pequeno depósito de materiais.
Todas as funções de um estúdio padrão da época estavam lá, porém os funcionários do Estilo eram poucos, já que naquele momento as coisas na Chrysler já não iam bem. Depois de me apresentar a todos da área, o Celso Lamas sentou comigo para me dar algumas dicas que, confesso, foram esclarecedoras e importantíssimas.
A principal delas era que as técnicas de ilustração de Design eram completamente diversas das que eu tinha usado minha vida inteira. A escola do Celso era americana, especialmente a que usava o papel “Vellum”, onde eram aplicados, por lápis ou caneta esferográfica, markers (conhecidos popularmente por canetas hidrográficas de ponta cortada diagonalmente) e aerógrafo, instrumento utilizado para pintura proveniente da pulverização de tinta provocada por ar comprimido.
Na ilustração técnica, tudo que se desenha deve ser o mais preciso possível, com o máximo de detalhes e perfeição do produto representado. Já nos sketches deve-se trabalhar mais pela representação dos efeitos visuais, sombra e luz, “High Lights” (linhas de luz) e spots (pontos de luz proveniente da concentração da luz em áreas normalmente côncavas.
No papel Vellun, podia-se pintar dos dois lados, frente e verso, pois ele é levemente transparente e a tinta aplicada no verso tinha aspecto reduzido pela transparência do papel.
Ele abriu as mapotecas onde haviam centenas de sketches, não somente dele mas também de muitos estilistas da Chrysler dos EUA. Quando olhei para aquele tesouro fiquei literalmente pirado!
Havia também outras técnicas, não tão comuns, mas muito utilizadas na época. Para os renders (desenhos finais) extremamente sofisticados, usava-se o Guache! Estes desenhos eram refinados por semanas para que ficassem o mais próximo possível de uma foto.
Os “backgrounds” (fundos) eram muito sofisticados, com representações de paisagens, cenas do cotidiano, com casas, marinas, ou prédios, céu, nuvens, e cenas noturnas. Também eram desenhadas pessoas, com roupas da moda e situações cotidianas, sempre felizes e ricas. Por cima de tudo isso, vinha o carro proposto nos mínimos detalhes, com formas, brilhos e reflexos. Verdadeiras obras de arte. Mas estes desenhos eram o resultado de uma seleção escolhida entre dezenas de sketches, estes somente focados na forma do carro, mais rápidos de serem elaborados, e com técnicas mais rápidas (markers sobre vellum).
Mas, antes mesmo dos sketches, havia os “rafs”, desenhos rápidos feitos somente com caneta esferográfica, onde se o estilista trabalhava de forma livre, tentando “descobrir” caminhos e novas interpretações de temas originais.
Nesta época não existia ainda a palavra “designer, ou design”, que vieram a ser inventadas quase uma década mais tarde.
Uma outra técnica muito usada por alguns estilistas era desenhar sobre um papel colorido, normalmente papel canson, que existiam em várias cores. Neste caso o estilista trabalhava somente com a luz e sombra, representados com uma paleta de markers de várias tonalidade de cinza quente ou frio para sombras e com o branco em diversas intensidades, para representar a luz. A cor original do papel se tornava a cor final do carro com todas as nuances que podemos observar quando se olha um automóvel.
Outra técnica muito interessante era a do “flow master” que consistia em fazer uma mancha com uma tinta transparente, que mais tarde ficamos sabendo era tóxica, mas que produzia efeitos muito interessantes. Fazia-se as linhas do desenho, depois aplicava-se a tinta (flow master) com um pad, ou chumaços de algodão, misturando cores harmônicas de pó de pastel seco, para provocar efeitos diversos e inesperados, e depois de tudo seco, então se trabalhava com a luz e sombra.
Porém, a ideia é que cada estilista desenvolvesse com o tempo seu próprio estilo de desenho, ao ponto de se reconhecer de quem era o desenho sem olhar a assinatura do autor.
O Celso usava uma técnica própria quando a questão era, por exemplo, novas propostas para o “front end” (dianteira). Fazia um desenho base somente em preto e tirava várias copias “sépia”, que eram de cor marrom amarelada, mas que tinha uma ótima textura para se usar lápis de cor e pastéis secos. Economizava muito tempo não ter que desenhar o carro todo novamente e de qualquer maneira fixava o conteúdo permitido pelo programa.
Os desenhos tinham somente uma função, que era a de representar várias propostas para que a diretoria pudesse escolher uma que seria interpretada pelos modeladores no modelo de “clay”.
O clay é a massa de modelagem desenvolvida principalmente pelas grandes fabricantes e que também possuem características únicas. O clay fica sempre dentro de fornos a uma temperatura de +/- 80 graus Celsius. Nesta condição, a massa e extremamente fácil de se aplicar sobre a estrutura que servirá de base para o modelo. Normalmente havia uma espessura de 100 mm de massa para que o modelador e estilista tivessem uma camada suficiente para esculpir.
Depois de frio (21 ºC) o clay se torna duro o suficiente para se esculpir.
A grande vantagem é que você pode pôr e tirar o material quantas vezes for preciso, até atingir o efeito esperado ou corrigir a forma conforme as modificações necessárias.
As ferramentas usadas pelos modeladores são muitas: pequenas enxadinhas e espátulas para detalhes e grandes lâminas de aço para as superfícies principais. Na época, os modeladores interpretavam os desenhos conforme seu entendimento, e o estilista orientava e modificava a forma e linhas, seja com fitas especiais aplicadas sobre o modelo em clay ou desenhos rápidos que se transformavam em “chapelonas” com a forma desejada, que servia de base e ferramenta para o modelador trabalhar o clay. Peças pequenas sempre eram feitas à mão mas com material “duro” como a massa plástica e mais tarde com o “epowood”, ou seja, um material sintético com a dureza da madeira, porém sem os veios, e com densidades diversas.
As peças duras, maçanetas, espelhos retrovisores, grades, faróis, emblemas, frisos, eram então aplicados com fixação mecânica sobre o clay.
Quando tudo estava montado e aprovado pelo Diretor de Design, o modelo era desmontado, pintado e preparado para a apresentação.
O objetivo final era que o modelo tivesse a aparência final de um automóvel de verdade, já que o modelo sempre é feito em escala 1:1, ou seja, o tamanho real do automóvel.
Estes modelos, que são praticamente maciços, com estrutura de aço reforçado, enchimento em madeira e espuma, com o clay finalizado podem pesar mais de 2 toneladas.
O movimentação dos modelos naquela época era feito, na raça, isto é eram empurrados com a mão, com muito cuidado para não danificar o trabalho.
Um modelo em clay pode demorar vários meses até atingir uma aprovação final. Isto porque depois de pronto os modelos passam pelo crivo da engenharia, que checam dimensões, viabilidade de estampagem, fixações das peças, e viabilidade de montagem na linha. Sempre havia grandes discussões entre o Estilo e as outras áreas da companhia para modificações de forma, seja por motivos técnicos ou simplesmente pelo gosto da diretoria, o que acontece com muita frequência. Este processo sempre provocou grande dores de cabeça, já que os engenheiros sempre se baseiam por conceitos já existentes e o Estilo sempre quer tentar coisas novas.
Toda novidade era recusada, e então tínhamos que provar tecnicamente que era possível se fazer de outra forma, o que sempre provoca um grande desgaste nos trabalhos.
Outro vilão é a área financeira, que controla os investimentos para se construir as ferramentas necessárias para realizar as peças propostas. Centenas de idéias morrem anualmente devido às restrições de “budget”.
A área de Color & Trim é responsável por desenvolver os materiais de revestimento, cores e texturas. Estes materiais são desenvolvidos sempre por fornecedores específicos, conforme a orientação dos estilistas desta área. Normalmente, os emblemas, faixas, e ícones também são responsabilidade do C&T. A área é dominada por mulheres, devido à sensibilidade e intimidade com a “moda”.
Os tapeceiros são responsável por desenvolver os padrões de corte que vão se tornar, quando unidos através de costuras, capas de banco, carpetes e teto, assim como na época, revestimento de painel de instrumento e colunas internas em couro ou tecido. O tapeceiro é o alfaiate da indústria automobilística.
Não vamos esquecer que na época não existia a tecnologia digital que temos hoje, e tudo era feito à mão. Não havia escolas que formassem profissionais para estas disciplinas. Tudo “on the job”, isto é, aprendiam com a experiência dos mais velhos dentro da indústria.
Tive também que conviver com um ponto muito importante: o segredo do trabalho. Tudo que fazíamos lá dentro era absolutamente secreto e não podia sair de maneira nenhuma de dentro do estúdio.
Depois de uma semana eu tinha todas as paredes do estúdio e modelação cobertas por meus desenhos, e o chefe teve que, na brincadeira, pedir para eu reduzir o ritmo. Na realidade eu estava só treinando, mas a partir deste momento meu vício pelo desenho se tornou uma neurose, que nunca mais foi curada. Mesmo já como diretor, eu continuei aperfeiçoando meu desenho, coisa que normalmente não acontece nesta situação.
Quando você evolui dentro da área, tornando-se um gestor, normalmente você sai da prancheta, e não desenha mais, ficando somente com a administração e orientação aos designers, coisa que não aconteceu comigo.
Nunca fui político ou administrador, o que não me impediu de “subir” dentro das empresas em que trabalhei, mas confesso que sou caso raro.
O estúdio da Chrysler teve um fim muito triste. Uma grande enchente em São Bernardo do Campo destruiu tudo que havia lá dentro: mobiliário, modelos, máquinas e, principalmente, todos os desenhos, que ficaram submersos pela enchente. Trabalho de anos perdido em uma noite.
Ao mesmo tempo, a Chrysler foi comprada pela Volkswagen Caminhões, e esta foi a morte de grandes carros como os Chargers, Le Barons, e Polaras. Todos passaram para a eternidade e hoje os sobreviventes são joias preciosas nas mãos dos colecionadores.
LV