Várias vezes me vejo perguntando quais os meus grandes desafios vivenciados nos meus muitos anos de indústria automobilística. Desafios não apenas meus, mas da indústria como um todo. Uma das respostas que me veio à mente, por exemplo, foi desenvolver sistemas de freios, que requerem, além de sensibilidade e eficiência, serem “lifetime”, ou seja, durar a vida útil do veículo (geralmente estimada em dez anos), exceto, claro, o material de atrito (pastilhas e lonas) e o fluido hidráulico, que fazem parte da manutenção periódica do veículo.
Com certeza, outra resposta aos grandes desafios da indústria seja fabricar veículos “B B B” — bonitos, bons e baratos —, agradando à totalidade dos consumidores sem fugir do lucro operacional esperado. É estabelecer os difíceis compromissos dos projetos e custos, mexendo-os num mesmo caldeirão para atingir os objetivos.
Lembro-me de uma frase enfatizando que “O ótimo é inimigo do bom.”: para que gastar mais se o nível que está já é suficiente e valorizado pelo consumidor? Ter esta percepção é o caminho do sucesso.
Além da beleza, o veículo tem que ter dotes de aerodinâmica para reduzir ao máximo a sua a resistência ao ar, objetivando seu desempenho, diminuição do consumo de combustível e também a redução do ruído de vento — turbulências e assovios — para maior conforto dos ocupantes.
O desafio dos profissionais que desenham o veículo é colocar a sua própria alma no desenho e conseguir unanimidade eterna na aprovação do consumidor. Veja o nível de dificuldade, pois nem sempre a melhor aerodinâmica casa com a beleza das linhas.
A subjetividade do que é ser bonito requer dispendiosas pesquisas de mercado, algumas vezes contraditórias e pouco eficientes. O Ford Probe I de 1979 é um claro exemplo de veiculo aerodinâmico em que as linhas não agradaram o consumidor nas pesquisas de mercado.
Outra dificuldade é que ser bonito depende da região do planeta em que ele será comercializado. Por exemplo, o VW cross up! europeu é muito mais alegre do que o vendido no Brasil e me lembra o Renault Twingo de 1994.
O grande desafio é um veículo que atenda a todos os mercados para economizar os custos das possíveis diferenças entre os modelos. ‘Fazer comum’ é a palavra-chave.
O Ford Sierra é um exemplo de excelente veículo que não foi valorizado no Brasil, mas agradou em cheio na Argentina, onde foi fabricado; aqui, não.
Além de ser bonito, o seu preço de venda é fundamental. Para as fabricantes o lucro é quanto maior melhor, desafiando os engenheiros a projetar veículos bons e de baixo custo. Isto requer não somente a parte técnica desenvolvida, mas também o poder de negociação com os fornecedores dos componentes.
Além disso, internamente os processos de manufatura devem eficientes para reduzir a um mínimo o custo operacional, gastos com ferramental, dispositivos e equipamentos de controle. A regra é fazer certo na primeira vez, pois um erro no projeto e/ou no processo produtivo pode gerar um preço muito alto, retrabalhos internos e principalmente externos — os recalls, ou revocações, com consequências geralmente desastrosas para a companhia, tanto financeiras quanto de imagem.
Não basta ser somente bonito e barato, tem que ser funcional e, mais do que isso, ser durável e manter diferenças que identifiquem a marca, gerem elogios ao conforto, desempenho, baixo consumo de combustível e outros atributos.
Problemas de motor e/ou câmbio são extremamente relevantes e podem destruir a imagem do veículo. Exemplo recente, o câmbio robotizado PowerShift que acabou se tornando um desastre para a Ford. Outro ponto fundamental é a facilidade e o baixo custo dos serviços de manutenção periódicos, sempre muito valorizados pelo consumidor.
O preço do veículo depende de seu posicionamento no mercado — básico, luxo, esportivo, etc. Não adianta querer vender o Ford Fiesta ao preço do Mustang ou vice-versa. Cada qual tem seu lugar no mercado.
Outro ponto importante é a capacidade do veículo de isolar os ocupantes de eventos singulares como buracos, juntas de dilatação, trilhos, blocos redutores de velocidade e lombadas, com ou sem ruído associado. Inclui também os ruídos de impacto nos batentes de final de curso da suspensão, tanto na distensão como na compressão total. Novamente custo e tecnologia entram em cena.
O trabalho de estabelecer o compromisso de estabilidade e conforto é facilitado quando dispõe de campos de prova especialmente projetados com pistas para baixas e altas velocidades, terra, cascalho, asfalto liso e irregular. A maioria das casas automobilísticas tem o seu próprio campo de provas ou aluga os existentes para tal.
A Ford, em particular, tem vários campos de prova no mundo, incluindo o da cidade de Tatuí, no interior de São Paulo, que facilita o desenvolvimento por manter sempre as mesmas condições padrão de avaliações e testes.
A interação do motorista com o veículo se dá através do volante de direção, do banco, dos pedais, do assoalho, olhos e ouvidos, daí a importância dos controles funcionais passarem confiança e operacionalidade ao consumidor. Vestir o veículo, como se diz no jargão popular, é fundamental para agradar significativamente o cliente.
E como garantir no projeto que todas estas características sejam mantidas e entregues ao consumidor? Eis aí um enorme desafio. Até o início da década de 1980 quase tudo era feito “no peito e na raça”, em processos subjetivos e de tentativa e erro. As molas, a barra estabilizadora, os amortecedores e os pneus eram escolhidos com base 80% experimental e 20% calculado. A geometria da suspensão/direção também era estabelecida experimentalmente.
Hoje tudo se inverteu. Poderosos softwares, totalmente correlacionados, predizem o comportamento do veiculo em quase todas as situações com 80% do trabalho feito virtualmente e os 20% restantes ajustado com a sensibilidade dos especialistas.
Novas tecnologias estão invadindo as fábricas de automóveis no mundo para cumprir as rigorosas exigências governamentais que regem o comportamento e as emissões gasosas dos veículos, e também a título de modernidade, como nos sistemas de informação e entretenimento — existe até um neologismo para isso, infotenimento.
Cada vez mais entram em cena os sistemas autônomos que alertam e ajudam corrigir potenciais riscos de acidentes, como o assistente de conservação na faixa de rolamento e a frenagem automática.
Tecnologia e qualidade andam juntas em processos cada vez mais dispendiosos. Motores com usinagens mais precisas e folgas menores para o uso de óleos lubrificantes menos viscosos, com redução de atrito, requerem forte investimento em máquinas, equipamentos e controles.
Posso citar também os turbocompressores, menores e mais eficientes, com geometria e vazão de ar variáveis, que aumenta o controle da pressão do ar admitido ao motor. Utilizando materiais mais nobres e leves, incluindo ligas de titânio, às modernas turbinas nada têm a ver com as antigas, maiores, mais pesadas e menos duráveis, para não dizer bem mais problemáticas. O que está cada vez mais sofisticado são os sistemas de infotenimento, nos quais componentes eletrônicos, de maneira geral, são relativamente baratos, e o que sai caro é o desenvolvimento do programa de atuação das tarefas, o software.
Quem paga o custo da modernidade é sempre o consumidor e o segredo está em garantir uma produção que consiga diluir os altos custos das tecnologias embarcadas. Sem produção não existe lucro e sem lucro as empresas entram em colapso. É aí que entra a globalização, aproveitando um desenvolvimento veicular único para aplicação mundial, em vários países.
Falando sério, sabemos que no verdadeiro Brasil o poder aquisitivo do consumidor, de maneira geral, é baixo, e as indústrias deveriam entender isso bem, oferecendo mais veículos básicos e de menor preço. Todos sairiam ganhando. Uma fabricante que já percebeu isso é a Renault, com o Kwid.
Resumindo, conseguir fazer o veículo bem balanceado em termos de atributos e com custo que o consumidor aceite pagar, tem sido o grande desafio para as indústrias automobilísticas
CM