*A expressão em latim acima é usada na liturgia católica na parte do ofício dos mortos que significa ‘repouso eterno’. Como o do Tata Nano, que deixa de ser fabricado. E adianto: para minha tristeza e, tenho certeza, de muitos.
Fiquei empolgado com o anúncio de lançamento do Tata Nano em 2008 e quando o vi no Salão de Genebra de 2009. O motivo da empolgação, saber que milhares de pessoas poderiam ter a chance de ingressar no mundo automobilístico pela primeira vez em suas vidas e resultar no aumento exponencial do autoentusiasmo.
Isso porque o Tata Nano — do grego nánnos, anão, o multiplicador 10-9 que representa a bilionésima parte de um inteiro — foi anunciado com preço equivalente a 2.500 dólares sem impostos, que incluídos no seu país de origem, a Índia, ia a pouco menos US$ 3.000. Um carro — minimalista, sim, mas nem por isso deixando de ser um carro de verdade por R$ 12 mil ao câmbio de hoje. Quantas pessoas aqui no Brasil poderiam tê-lo?
Cheguei a conversar com o então presidente da operação da Jaguar Land Rover no Brasil, Flávio Padovan, no sentido da passar a importá-lo para o Brasil, certo de que teria seu lugar no nosso mercado. Mas foi em vão.
Um carro de 4 lugares, 4 portas, motor traseiro transversal bicilindro de 624 cm³, arrefecido a líquido, bloco e cabeçote de alumínio, injeção no duto, 38 cv 5.500 rpm e 5,2 m·kgf a 4.000 rpm, taxa de compressão 9,5:1. Acoplado ao transeixo com câmbio manual de quatro marchas, deveria propulsionar o veículo de 695 kg, relação peso-potência, 18, kg/cv. Velocidade máxima de 105 km/h e aceleração da imobilidade a 100 km/h em 30 segundos.
Era o “o carro do povo” (the people’s car), mote utilizado pelo industrial indiano Ratan Tata, novo e recente proprietário das marcas Jaguar e Land Rover e presidente da Tata Engineering and Locomotive Co. Ltd. de Mumbai, Índia.
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“Eu via famílias transportadas em veículos de duas rodas, o pai dirigindo a motocicleta, os filhos mais novos à sua frente, o mais velho atrás e sua esposa por último com um bebê nos braços. Isso me levou a imaginar um carro como o Nano, que fosse seguro e acessível para qualquer família indiana de classe média.”, disse Ratan Tata na apresentação do Nano no 9º Salão do Automóvel de Nova Déli, em 10 de janeiro de 2008.
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Eu encontraria o Nano pela primeira vez no Salão de Genebra daquele mesmo ano, ocasião em que pude me sentar ao volante (no lado direito) e logo notar a ergonomia perfeita — antes que um grosseiro funcionário da fábrica no estande me pedisse para sair e em seguida trancasse o veículo. O idiota (ou seu chefe) obviamente não entendeu que se tratava de um famoso salão de automóvel europeu e que aquele era justamente um dos dias de imprensa.
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O desenho externo e interno do Nano coube ao Instituto I.de.A, de Turim, Itália. A “caixinha” não fora obra de um estúdio qualquer, denotava know-how de seu desenhista. Havia elegância até nas entradas de ar para o radiador após as portas traseiras.
Visando simplificar ao máximo o desenho, o Nano não era hatchback (como o Mini de primeira geração nunca foi). Era necessário colocar a bagagem pelo interior do carro, como sempre foi no Fusca ao se usar o espaço atrás do banco traseiro (em 2015 houve uma reestilização chamada GenX Nano em que a carroceria se tornou hatchback). Sob o capô dianteiro há espaço apenas para o estepe, cilindro-mestre com servo-freio.e reservatório de água do limpador de para-brisa.
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Houve problemas com a fábrica planejada do Nano em Singur, West Bengal. Fazendeiros irados de terem suas terras desapropriadas para a construção da fábrica iniciaram uma onda de protestos de tal ordem que Ratan Tata desistiu do projeto e resolveu fabricar o carro outro estado, Gujarat, o que acabou atrasando muito a produção do Nano.
A trajetória do Nano foi prejudicada também por incêndios em algumas unidades, mas que tiveram grande repercussão. Houve também a questão de segurança (o tal marketing das estrelinhas) em que o Nano foi considerado “inseguro”. Por isso, o melhor ano (fiscal) de vendas foi 2011-2012, 74. 527 unidades, depois 53.848, 21.129, 16.903, para chegar em 2016-2017 com apenas 7.591. Na primeira metade de 2017-2018, abril-outubro, apenas 1.502. No mês passado foi produzido apenas um Nano. A Tata reconheceu que o carro na sua forma atual não poderia passar de 2019 e encerrou sua produção.
“Um rei em Boxberg”
Esse foi o título da matéria que escrevi em 12 de junho de 2011, após uma viagem oferecida pela Bosch em 2011 a um pequeno de grupo de jornalistas, em que dirigi o Nano no campo de provas da empresa em Boxberg, 95 quilômetros ao sul de Frankfurt.
Quando você ler esta matéria com link vai entender o porquê do título, mas tem tudo a ver com o Nano. Nossa ida ao campo de provas destinou-se conhecer e experimentar tudo o que a Bosch tinha de produtos presentes e futuros para a indústria automobilística. Lá estavam os melhores carros como plataforma de teste de itens Bosch. Mas nós, brasileiros, não estávamos sozinhos: havia ao todo 135 jornalistas do mundo todo naquele dia.
O que ninguém esperava era ver naquela mostra tecnológica dois Nanos. Eles estavam lá como parte do programa organizado pela Bosch lá para mostrar o que a fabricante de material elétrico — agora eletrônico — havia fornecido para o “anão”, entre eles o gerenciamento de motor Motronic e a injeção multiponto.
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O que vi e todos viram foi algo totalmente inesperado: fila, e grande, para dirigir o Nano, independente do que estava lá à disposição.
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Chegou então minha vez. A posição de dirigir, perfeita, como eu já havia observado no Salão de Genebra. Relação banco-volante-pedais, tudo no lugar. Punta-tacco “telepático”. Desempenho totalmente dentro do aceitável para quem, como eu e muitos, andou de Fusca 1100 de 25 cv. Ao som típico dos bicilindros juntou-se uma sensação única de estar dirigindo um carro minimalista mas que tinha dotes dinâmicos absolutamente normais em razão da suspensão independente nas quatro rodas McPherson/braço arrastado e direção sem assistência (leve e rápida). Apenas leve rolagem, pela altura do veículo, 1.655 mm.
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O Nano mede 3.100 mm de comprimento, 1.495 mm de largura e seu entre-eixos é de 2.230 mm (na minha matéria citada está 2.400 mm, um engano agora corrigido).
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O motor, como eu disse acima, é um bicilindro transversal de 624 cm³ (73,5 x 73,5 mm) e a ignição é direta sem distribuidor, de disparo simultâneo de centelha nos dois cilindros (centelha perdida, como no Citroën 2CV e no motor boxer Gurgel Enertron).
Acabou
Com o fim do Nano encerra-se mais um capítulo do carro realmente popular, um projeto que partiu do zero e não uma adaptação ou redução do que já existisse, de preço acessível de verdade e que pudesse transportar 4 adultos a 105 km/h — você já ouviu isso antes: o Volkswagen do Professor Ferdinand Porsche, só que a 100 km/h.
Acredito que o Nano pudesse ter curso igual na História, em vários países e também, e principalmente, no Brasil. Poderia ao menos ter sido tentado aqui. Quem sabe o destino do Nano fosse diferente.
BS