Diferentemente da história da indústria automobilística brasileira, narrada em prosa e verso por inúmeros autores, a história da indústria aeronáutica brasileira sempre foi um assunto obscuro, pouquíssimo abordado tanto pela grande imprensa quanto pela dita especializada.
Merece destaque o jornalista Roberto Pereira de Andrade (1940-2015) que foi o primeiro (e talvez o único) pesquisador que abordou o assunto em sua obra “A construção aeronáutica no Brasil” (1977, Editora Brasiliense), com diversas reimpressões e atualizações.
Seu trabalho merece todos os aplausos, pois 41 anos atrás ele conseguiu entrevistar pessoas que viveram os primórdios da construção aeronáutica brasileira, um registro histórico que alguns anos depois se perdeu com o falecimento dessas fontes que viram e viveram a história.
Eu mesmo tive a oportunidade de conversar até que longamente com um dos personagens dessa saga, o Eng. Octávio Gaspar de Souza Ricardo, que trabalhou na Companhia Aeronáutica Paulista e me contou algumas passagens da empresa de Francisco “Baby” Pignatari.
O que busco expor aqui é um pouco da história que tive a chance de ler e ouvir de algumas fontes, ao longo dos anos, exposta em um ensaio, breve para a quantidade de informações, longo para o AUTOentusiastas, mas sem os detalhismos de descrever cada protótipo, cada personagem, cada ação para não tornar o texto absurdamente longo. Mesmo assim foi necessário dividi-la em duas partes.
Os primórdios
Em 1910 registra-se a primeira aeronave totalmente construída no Brasil: o monoplano monomotor São Paulo.
Tratava-se de uma iniciativa do piloto espanhol ascendência francesa Dimitri Sensaud de Lavaud que, se valendo de materiais disponíveis no país, construiu o monoplano São Paulo e em 1910 realizou o primeiro voo de uma máquina mais pesada que o ar na América do sul. Seu voo durou pouco mais de 100 metros e não chegou a 4 metros de altura, mas entrou para a história como sendo o primeiro.
O desenvolvimento da aviação ao longo dos anos ’10 e seu emprego na Primeira Guerra Mundial chamou a atenção do industrial e armador brasileiro Henrique Lage (hoje em dia escreve-se Laje mas o nome dele era com “g”). Proprietário da Companhia Nacional de Navegação Costeira, Companhia de Seguros Lloyde Sul Americano e minas de carvão em Santa Catarina, Lage construiu nos primeiros anos da década de 1920 duas aeronaves e importou da Inglaterra ferramental para a produção de aviões (Blackburn) e motores (Bristol), o que não foi concretizado naquela década.
Somente em 1934 durante o governo Vargas é que Henrique Lage obteve o necessário apoio para o prosseguimento de seu projeto aeronáutico, em grande parte graças ao apoio do Tenente-Coronel do Exercito e Engenheiro Antônio Guedes Muniz, um grande entusiasta (tal qual Getúlio) da aviação e na criação de uma indústria nacional.
Muniz, que havia desenhado algumas aeronaves e construído o protótipo de seu M-5, desenhou o modelo M-7 para treinamento de pilotos e, com os recursos da recém-criada Companhia Nacional de Navegação Aérea (também chamada de Fábrica Brasileira de Aviões) iniciou a produção da aeronave voltada para treinamento de pilotos.
O Muniz M-7 era um biplano de dois lugares, com aspecto semelhante ao De Havilland Tiger Moth. Dotado de um motor 4 cilindros em linha invertido De Havilland Gipsy Major de 130hp, o M-7 tinha uma estrutura em madeira, pesava cerca de 860 kg e foram produzidas 26 unidades entre 1936 e 1941, sendo 11 entregues à aviação militar e os demais, a aeroclubes, na época recebendo forte incentivo estatal tanto em termos de sua criação quanto em equipamento.
Na mesma época, em São Paulo, Orthon Hoover (um americano radicado no Brasil depois da Primeira Guerra Mundial), Fritz Roesler (um ex-soldado alemão da I Guerra, também radicado no país e marido de Tereza Marzo, a primeira mulher brevetada no Brasil) e Henrique Paulo Santos Dumont, fundaram, no Campo de Marte em São Paulo, a Empreza Aeronáutica Ypiranga.
Vale a menção que Henrique Paulo Santos Dumont era sobrinho de Alberto Santos Dumont e filho de Henrique Santos Dumont, o homem que trouxe o primeiro carro ao Brasil, um Peugeot, nos idos de 1893.
A Empreza Aeronáutica do Ypiranga , embora surgida com o propósito de fabricar aeronaves em série, enfrentou dificuldades oriundas do próprio momento político do país, com o encerramento da Revolução Constitucionalista de 1932, a perda do poder econômico e político dos cafeicultores, o que provocou um retardo nas iniciativas paulistas. A empresa dedicou-se inicialmente a fabricação de alguns planadores, mas nada em escala industrial e de forma seriada, e na construção do protótipo daquele que se tornaria um dos ícones da aviação brasileira: o Paulistinha.
O primeiro Paulistinha voou em 1935 e um segundo protótipo foi construído mas não chegando a voar. Entretanto nessa época, o Ypiranga (denominação original do Paulistinha) não despertou interesse.
Ainda na mesma década de 1930, os militares brasileiros preocupavam-se com a falta de mão de obra especializada para operação e reparo de aeronaves, bem como existiam muitos aviões militares parados simplesmente pela falta de manutenção. Assim, a Aviação Naval Brasileira, ligada ao Ministério da Marinha, decidiu participar ativamente na construção de uma oficina capaz de reparar aeronaves e eventualmente até construí-las nas instalações do órgão, no Rio de Janeiro. E é ai que nasce a chamada “Fábrica do Galeão” em 1935.
A Fábrica do Galeão, então, fez um acordo com a empresa alemã Focke-Wulf para a produção de quatro modelos de aeronaves. Todavia apenas o Focke-Wulf FW-44 e o bimotor FW-58 foram efetivamente construídos e logo a produção de mais aeronaves acabou encerrada com deflagração da Segunda Guerra Mundial em 3 de setembro de 1939, com a declaração de guerra da França e Inglaterra à Alemanha após esta invadir a Polônia dois dias antes.
Também merece destaque a importância do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas ligada a Escola Politécnica e ao Governo do Estado de São Paulo. A partir de um estudo sobre o emprego de madeiras brasileiras na aviação, realizado pelo engenheiro Frederico Abranches Brotero na seção de madeiras do instituto, houve um destaque desse setor para a criação da Divisão de Aeronáutica do IPT.
A Divisão de Aeronáutica do IPT teve destaque nos primórdios da indústria aeronáutica brasileira não apenas por ser um centro de estudos e formação de Engenheiros e pesquisadores na área, como também na fabricação de alguns materiais aeronáuticos como contraplacados aeronáuticos (chapas de madeira sobrepostas e coladas sob pressão) e hélices de madeira para aviões, fornecendo tanto para as indústrias aeronáuticas locais quanto para a reposição.
Anos 40 e o florescimento da indústria
A Companhia Aeronáutica Paulista
A turbulência no cenário político internacional com a Segunda Guerra Mundial e a necessidade pilotos no Brasil geraram um forte incentivo governamental no sentido de ampliação no número de escolas de aviação no país.
Em 1941, Getúlio Vargas criou o Ministério da Aeronáutica e o ministro da pasta, Salgado Filho, em um dos primeiros atos, divulgou pela imprensa as deficiências na aviação civil brasileira, tanto em número de pilotos, aeronaves e escolas de pilotagem.
Dessa maneira, capitaneada pelo Estado brasileiro com o suporte publicitário do grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, é criada a Campanha Nacional de Aviação, criadora de muitos aeroclubes pelo Brasil, fornecendo aeronaves e suporte financeiro para sua viabilização.
E é nesse cenário que surge em Santo André, no bairro de Utinga, a CAP – Companhia Aeronáutica Paulista, empresa pertencente ao conglomerado industrial de Francisco “Baby” Pignatari.
Pignatari que já produzira, usando a base técnica dos engenheiros do IPT, alguns planadores, resolve investir na construção de aeronaves e é nesse ano de 1942 que a empresa adquire os direitos de produção do EAY-201 Ypiranga, aperfeiçoando-o e criando o CAP-4 Paulistinha, iniciando sua produção seriada em 1943.
Conforme já abordado aqui no AE, o Paulistinha era um clone brasileiro do Piper Cub americano, era dotado de um motor Franklin de 65hp, o único componente importado do avião. Todos os demais eram nacionais e muitos deles (como os tubos de aço da estrutura) eram produzidos em Utinga, nas instalações do grupo Pignatari e os contraplacados vindos do IPT.
O Paulistinha CAP-4 foi a principal aeronave produzida pela indústria paulista, que no auge da campanha nacional de aviação no final de 1943, a empresa chegou a produzir um Paulistinha por dia! Segundo os dados da CAP, foram produzidos 777 Paulistinhas entre 1943 e 1948, e embora os números sejam questionáveis (houveram denúncias de duas matriculas para uma mesma aeronave) diversas centenas de Paulistinhas foram produzidos
Entretanto o CAP-4 não foi o único produto da empresa paulista. A CAP chegou a produzir em série outros modelos como o CAP-1/3 Planalto, o CAP-5 e o CAP-9, além dos protótipos CAP-6 Tufão e CAP-8, uma aeronave que era para ter sido revolucionária.
O Planalto foi uma aeronave monoplano, asa baixa de treinamento em tandem (piloto e aluno um atrás do outro), carlinga aberta, produzida entre 1942 e 1943. Projetada pelo IPT (foi inicialmente batizada de IPT-4), teve seus direitos de produção adquiridos pela CAP. Devido a problemas de projeto aerodinâmico do Planalto, o projeto foi um fiasco comercial e as aeronaves de vida mais longeva mal chegaram à década de 1950, com a esmagadora maioria acidentada entre 1943 e 1945.
O CAP-5 Carioquinha de 1945 nada mais era que o Paulistinha CAP-4 mas com bancos lado a lado. Seis aeronaves foram produzidas e sua existência na história da aviação só é lembrada porque duas delas sobreviveram até pelo menos meados dos anos de 1990.
O CAP-9 Carioca foi a derradeira tentativa da CAP, em 1947, em se manter no mercado de aviões: Consistia num Paulistinha de 4 lugares, uma fórmula mais do que provada mas que para o mercado em geral, já se encontrava desgastada especialmente em aviões “de turismo”, que nessa época já via com bons olhos as aeronaves metálicas, tanto em estrutura quanto em revestimento.
Segundo narrou a mim um antigo engenheiro da CAP, era no mínimo incompreensível a empresa ter optado pela construção do CAP-9 Carioca no lugar do CAP-8. O CAP-8 (que chegou à fase de protótipo) era uma aeronave asa baixa para 4 lugares e embora o protótipo tenha sido feito em madeira com a finalidade de ganho de tempo (a guerra estava por terminar mas ainda havia escassez de alumínio), a idea era a construção de um avião totalmente metálico.
E sem sucesso comercial com seus novos projetos e uma queda vertiginosa em suas encomendas, a CAP encerra suas atividades em 1948.
As aeronaves de Henrique Lage
No Rio de Janeiro, a divisão aeronáutica do armador Henrique Lage (também chamada de Fabrica Brasileira de Aviões) também teve uma grande expansão de suas atividades com a Campanha Nacional de Aviação. E é nesse contexto que surge a Companhia Nacional de Navegação Aérea (CNNA).
Em 1940 a empresa recebeu a incumbência de desenvolver uma aeronave de treinamento de dois lugares no estilo do Piper Cub e de seu similar paulista, o EAY-201 Ypiranga (ainda não era o Paulistinha). E assim a empresa fez, em pouco mais de dois meses o projeto e a construção do protótipo do HL-1.
A aparência do HL-1 era praticamente indistinguível se comparado com o CAP-4. Só se perceberia a diferença olhando para os montantes das asas: enquanto no Cub e no Paulistinha os montantes das asas eram construídos em “V”, no HL eles tinham montagem paralela.
Comercialmente o HL-1 obteve um relativo sucesso com a encomenda de 100 exemplares pelo recém-criado Ministério da Aeronáutica e da fabricação de outro pequeno lote vendidos a alguns aeroclubes.
Devido à subdivisão da fabricação de componentes e partes do HL-1 em diversos setores das organizações Henrique Lage e a falta de um rigor técnico, a aeronave pecava do ponto de vista construtivo e por consequência, em sua operação. Segundo me narrou o advogado, piloto (além de um grande amigo) Caio Celso Nogueira de Almeida, que teve a chance de tirar seu breve voando HL-1, a aeronave era chamada de “tijolo voador” e seu instrutor só voava a aeronave em locais próximos as estradas de rodagem, por permitiram pousos de emergência. Seja como for, poucos HLs chegaram aos anos de 1960, diferentemente dos CAP-4, que sobrevivem até hoje.
As empresas de Henrique Lage também desenvolveram outros projetos e apenas o HL-6 obteve algum êxito comercial. O HL-6 era uma aeronave de asa baixa, carlinga aberta e construída em madeira, era para treinamento primário e foi idealizada visando atender a uma concorrência do Ministério da Aeronáutica para a compra de aviões de treinamento para os aeroclubes. Todavia, o êxito comercial da aeronave não passou das encomendas governamentais e logo saiu de produção.
A empresa de Henrique Lage também desenvolveu inúmeros outros projetos de aviões, chegando a rascunhar, inclusive, um pequeno avião a reação. Todavia pouquíssimos chegaram a fase de protótipo. Chegou a requerer, junto ao Ministério da Aeronáutica, permissão para a fabricação de motores Continental no país, sob licença, mas nada foi concretizado.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, a presença de enormes excedentes de guerra no mercado internacional de aeronaves, e o declínio da Campanha Nacional de Aviação, selaram o destino tanto da CNNA quanto da CAP que, extremamente dependentes das encomendas governamentais, não conseguiram se manter diante de um mercado aberto e com o agravante, inundado de aeronaves importadas vendidas a preços módicos.
Um DC-3 por exemplo, podia ser adquirido nos idos de 1946/1947 por US$ 5.000 que em valores de hoje representam cerca de US$ 56.500 (cerca de R$ 220.000). O preço de um CAP-9 Carioca era quase igual ao de um Stinson 108, aeronave da mesma classe do CAP-9, só que o Stinton possuia desempenho significativamente superior. E assim sepultaram-se esses empreendimentos pioneiros da década de 1940, remanescendo apenas as iniciativas estatais como a Fábrica do Galeão (ligada à Marinha), a Fábrica Nacional de Motores (FNM) que embora tenha fabricado caminhões Alfa Romeo nos anos 50/60, foi criada para produzir motores radiais Wright, e o empreendimento de Lagoa Santa (MG).
A Fábrica do Galeão, com o início da guerra e o corte das relações diplomáticas com a Alemanha nacional-socialista de Hitler, optou por produzir, sob licença, o Fairchild PT-19. Embora os lotes iniciais tenham sido montagens, a Fábrica do Galeão fabricou efetivamente a aeronave empregando materiais nacionais, exceto motores e instrumentos. Essas aeronaves foram conhecidas como 3FG e foram produzidas 220 delas que se juntaram a outros PT-19 recebidos pela Força Aérea Brasileira, que chegou a ter mais de 400 aeronaves do tipo.
A Fábrica Nacional de Motores surgida nos anos 40 foi concebida para a fabricação de motores de aviões e o modelo escolhido foi o Wright R-975 Whirlwind de 450 hp, 9 cilindros e 15,9 litros. Na época, esse motor equipava uma série de aeronaves empregadas pela Força Aérea como os Beech 17, o bimotor Beech 18 e o treinador Vultee BT-15. Yodavia quando os primeiros motores ficaram prontos, em 1946 a Guerra já havia acabado e enormes excedentes desses motores acabaram entrando no mercado e deixando de justificar o projeto.
O empreendimento de Lagoa Santa denominado Construções Aeronáuticas S.A. nasceu privado em 1940, com um grupo de empresários capitaneados pelo então ditador-presidente Getúlio Vargas que desejava uma grande fábrica de aviões no Brasil. Para tal, Getúlio concedeu diversos incentivos fiscais ao empreendimento (quase igual vimos num passado não tão distante assim) e apesar de todos os incentivos, até 1944 o empreendimento não havia produzido uma aeronave sequer.
Para tentar dinamizar o empreendimento, o Governo encampou a fábrica e se associou à Companhia Aeronáutica Paulista do Grupo Pignatari e com isso, a montagem sob licença do North American AT-6. Entretanto as dificuldades para o empreendimento e os desentendimentos entre as partes fez com que apenas os 81 AT-6 originais fossem montados e a Força Aérea encampando a fábrica de Lagoa Santa, que acabou por tornar-se Parque de Manutenção da Aeronáutica.
Na semana que vem será visto o que aconteceu com a indústria aeronáutica brasileira a partir de 1950.
DA