O título é interessante, e merece explicação. Bowtie é gravata-borboleta em inglês, mas também é o nome do logotipo Chevrolet transcrito para o emblema dos carros da marca; Ferrari não precisa explicar. O que tem então a ver Chevrolet com Ferrari?
Alguns sabem e outros não. Eu havia ouvido falar pouco sobre o fato, comum há algumas décadas nos Estados Unidos. Muitos, mas muitos Ferraris valiosíssimos e raros existem até hoje porque utilizaram motores Chevrolet em alguma fase de suas atribuladas e sofridas vidas. Heresia ou sobrevivência?
Randall “Randy” Cook, falecido em 16 de fevereiro de 2017, resolveu publicar o resultado de anos de pesquisas, perseguindo a história de carros de todos os anos, mas concentrado nas décadas de 1950 e 1960, que foram usados em ruas mas principalmente em corridas dotados de motores Chevrolet V-8 de bloco pequeno, o popular — nos EUA — sbc (small block Chevrolet).
Sua curiosidade sobre esse assunto nasceu muito antes de ele comprar o seu Ferrari com motor Chevrolet em 1997, e isso o fez manter o carro nesse estado modificado, porém melhorando algumas características para que ele se parecesse mais com os carros de rua que corriam nas provas organizadas pelo SCCA (Sports Car Club of America) no período em que seu carro era novo. O livro saiu em 2014, e teve uma segunda edição em 2016, essa que tenho o prazer de ter comprado.
A história é simples e fascinante. O grosso do material do livro é o histórico de cada carro, identificado primeiro por número de chassi e depois por nome de modelo. E a sequência das páginas segue a dos números de chassi. São pouco mais de 70 Ferraris mostrados nesse livro, que tiveram essa época de “entranhas americanizadas”, quando pouco valiam depois de muita lenha, e seus motores pediam socorro de mecânicos dedicados. Como especialistas nesses motores avançados para a época não eram fáceis de encontrar, principalmente na América mais acostumada à simplicidade, a solução era a mais direta possível: um Chevrolet V-8, disponível em cada esquina.
Com a passagem dos anos todos viram a grande mudança que os Ferraris começaram a sofrer, sua metamorfose de carros de corrida com toda a simplicidade que isso exige, para objetos de coleção e status de seus donos, e os carros mais antigos foram se tornando mais raros e clássicos, subindo de preço multiplicados sabe-se lá quantas vezes.
Tornava-se então quase que obrigação de quem era abonado salvar esses carros sofridos, aplicando além de uma restauração importante, a busca pela mecânica original. Alguns mais sortudos ou dedicados chegaram a encontrar motor e câmbio originais, outros só conseguiram encontrar motores iguais mais com números de série que não eram os autênticos. No fundo pouco importa, o fundamental é resgatar a originalidade dessas peças de arte mecânica.
Cook conta tudo isso nesse livro de 192 páginas, que é pouco pelo assunto apaixonante, mas saboroso pela história cheia de reviravoltas de exemplares. O carro do autor é um modelo 250 GT Pininfarina cupê série I de 1959, com chassi número 1.175, um de 170 fabricados, que ele fez questão de manter com sua segunda originalidade — o motor americano — sendo assim história viva dessa fase que ficou para trás. Hoje em dia trocar um motor de um Ferrari é caso para hospício, no mínimo.
Há carros com extensa documentação e outros quase fantasmas, daqueles que apareceram modificados sabe-se lá de onde e sumiram sem deixar rastros, mas a maioria tem texto que conta sua saga ao redor do mundo. Não é incomum modelos semidestruídos que tiveram carrocerias quase totalmente refeitas na DK Engineering na Inglaterra — o principal especialista britânico em Ferraris antigos — para em seguida terem seus antigos motores e câmbios originais localizados e restaurados, voltando ao carro. Alguns chegaram a passar mais de uma década em processos desse tipo, custosos e detalhados, para depois serem vendidos por milhões de dólares em leilões. Nesse nível de importância histórica, alguns carros passaram de dono a dono em países diferentes. Japão, Estados Unidos, Inglaterra e Itália são as viagens mais comuns que muitos fizeram, com uns poucos tendo ido até a Austrália.
Um dos mais incríveis é o Super Squalo Morrari, um modelo de Grand Prix de 1955 que não venceu nenhuma corrida na Fórmula 1, sofreu um acidente e depois de anos de abandono teve chassis vestido por uma carroceria de Morris Minor, e o motor trocado por um Chevrolet de 327 polegadas cúbicas. Depois de muito uso na Austrália e Nova Zelândia, foi vendido para um americano que o restaurou e voltou o motor original. Depois disso foi todo refeito nos anos 90, vendido no Japão e depois na Espanha, sendo o último negócio fechado por 1,1 milhão de dólares.
Outra história mais curta é a de um 250 GT Lusso 1965, que foi usado por algum tempo por um engenheiro aeronáutico que morava em Las Vegas e trabalhava em Seattle. Todos finais de semana ele ia para casa e voltava a Seattle, percorrendo 3.500 km por semana. Em uma tentativa de chegar à velocidade máxima o motor quebrou além da possibilidade de reparo, e o Chevrolet foi colocado no lugar do V-12 italiano. Depois disso o carro ainda rodou mais 160 mil km nessa rotina. Depois de muito gasto foi guardado em uma fazenda na Califórnia e ficou 25 anos parado, sendo depois roubado para nunca mais ser visto.
Uma delícia de observar como cada carro tem sua história, e como o que fazemos com eles determina o futuro dessas máquinas magníficas.
O pequeno vídeo abaixo mostra um modelo 340 America comentado pelo autor no Concorso Italiano, evento que faz parte da programação de Peeble Beach.
Agora é aguardar pela reedição de outro livro publicado em 2016, em que Randy mostra outros Ferraris com motores transplantados, obra essa mostrando os carros com motores Ford, principalmente.
JJ