Pois bem. Dois pilotos atravessam o Oceano Pacífico sem escalas com um avião monomotor em 1931, tem o voo devidamente registrado e hoje mal são lembrados? Por quê?
Marketing é algo interessante. Consegue colocar na obscuridade um fato relevante, ou dar destaque excessivo a outro, mesmo que corriqueiro. Isso acontece em todos os campos de nossas vidas. Mas esse é o mundo real, e ele não é justo, como li certa vez em um livro que pode ser classificado como autoajuda, categoria que abrange desde lixo literário idolatrado até obras-primas desconhecidas.
Passemos à história.
Clyde Edward Pangborn nasceu em 1896 em Bridgeport, Washington, noroeste americano. Fez os treinamentos durante a Primeira Guerra Mundial no que viria a ser a Força Aérea Americana depois de algumas décadas, o Army Air Corps,um braço do Exército dos Estados Unidos..
A guerra terminou antes que ele pudesse ser enviado para combate, mas sua paixão pela pilotagem era sua vida e seu futuro. Rapidamente passou a integrar um grupo de pilotos que faziam demonstrações, naquele tempo chamados de barnstormers — em tradução livre, os bagunceiros de fazendas — os pilotos que percorriam os Estados Unidos mostrando manobras e acrobacias para chamar atenção das pessoas, a maioria delas jamais haviam visto um avião.
Como não haviam pistas de verdade, pousavam e se exibiam em fazendas, sempre próximas de cidades com uma razoável concentração de pessoas, ou no litoral, onde praias serviam de campo de pouso e de acrobacias que muitas vezes incluíam passar de um carro para um avião em movimento, e vice-versa. Foi numa dessas que ele sofreu seu único acidente sério da carreira, caindo durante a transferência a cerca de 90 km/h.
Ganhavam dinheiro levando passageiros curiosos para voos curtos, e até mesmo casamentos eram celebrados quando aviões com mais lugares eram usados.
Mas ele sabia que os dias de viver com toda essa diversão estavam contados quando a depressão econômica chegou em 1929, e imaginou um plano interessante, ganhar dinheiro de prêmios que eram oferecidos por jornais e cidades para quem batesse recordes de aviação. A influência que a travessia do Atlântico sem escalas feita por Charles Lindbergh era indelével para muita gente, não apenas em pilotos. Lindbergh voara 5.790 km entre Nova York e Paris em 1927, sozinho e sem paradas, feito espetacular e muito comentado ainda hoje.
A habilidade de Clyde Pangborn era já notória, voando invertido por mais tempo que qualquer outro piloto conhecido, o que lhe valeu o título “upside down Pangborn” (Panghorn de cabeça para baixo). Também conseguia andar nas asas dos aviões, sem equipamento algum de segurança, ou pilotar enquanto outro acrobata fazia a mesma manobra fora do avião. Não poderia imaginar trabalhar com outra coisa diferente de aviões, naturalmente.
Pangborn queria o recorde de volta ao mundo, que ele considerava fácil de bater, pois o detentor era o dirigível LZ-127 Graf Zeppelin. Esta marca foi estabelecida em 1929, com o tempo de 20 dias e 4 horas, com velocidade média bastante baixa, cerca de 100 km/h. O problema era a falta absoluta de dinheiro para a empreitada.
Conheceu Hugh Herndon Jr., um milionário que havia aprendido a pilotar e que tinha ambições de fama. Patrocinados pela mãe de Herndon, Alice Boardman, herdeira da petroleira Standard Oil, compraram um Bellanca CH-400 Skyrocket (em algumas fontes, J-300) que foi meticulosamente construído sob encomenda, com a melhor madeira e os melhores componentes que a empresa de Giuseppe Bellanca conseguiu reunir. O motor original Wright J-6 foi substituído por um Pratt & Whittney Wasp 425 radial de nove cilindros, com 22 litros de cilindrada e 420 hp de potência a 2.000 rpm. O peso desse motor era de 338 kg, e o histórico de confiabilidade era notável, sendo o mesmo usado no Ryan NYP de Lindbergh em seu voo histórico.
O avião tinha número de série 3004 e matrícula NR796W, sendo um dos 32 aviões desse modelo construídos. Em uso normal, voava com um piloto e levava cinco passageiros. Tinha trem de pouso fixo. Com 8.484 mm de comprimento, envergadura de 14.122 mm e altura de 2.540 mm. Na forma básica o peso era de 1.176 kg vazio e carregado, 2.087 kg. Da capacidade original de gasolina de 454 litros, que permitia alcance de 1.207 km, o Miss Veedol foi alterado para levar 2.347 litros, mais do que o peso total carregado.
Tinha velocidade de cruzeiro de 209 km/h, máxima de 249 km/h, teto de serviço de 6.096 m (20 mil pés) conforme concebido pela fábrica, mas que seria totalmente diferente no “Miss Veedol”.
Esse nome de batismo era quase uma obrigatoriedade naqueles tempos pioneiros, veio do patrocínio do lubrificante Veedol, da Associated Oil Company, o óleo utilizado na viagem, sendo automaticamente injetado no sistema de lubrificação do motor à medida que o óleo ia sendo consumido.
Todo planejamento foi feito na prática por Pangborn, com Herndon passando a maior parte do tempo afastado, tendo inclusive se casado nesse período. A mãe de Herndon era a patrocinadora, com 100 mil dólares entregues ao filho e a Pangborn sem titubear. Seriam hoje cerca de 1,6 milhão de dólares.
Em 1º de julho de 1931, vários dias antes da decolagem, viram a notícia de que o recorde fora batido por Wiley Post e Harold Gatty, com 8 dias e 15 horas de tempo. Não era hora de desistir, e mesmo que não houvesse a chance de melhorar a marca, ainda restava para eles a opção de tentar cruzar o Oceano Pacífico sem escalas, um feito nunca conseguido.
Depois de partir de Nova York em 28 de julho de 1931, cruzaram o Atlântico sem escalas até o País de Gales onde Herndon foi recebido por parentes e gastou praticamente um dia em um almoço, fato que provocou a primeira discussão séria após a partida dele com Clyde, já que para este ficara claro que Hugh estava apenas passeando, e pouco se importando com recordes e prêmios em dinheiro.
Tudo transcorreu sem sustos, mas o mau tempo fez com perdessem muitos dias em Khabarovsk na Sibéria, retidos pelas condições meteorológicas. A pista não era asfaltada, e a lama dominava a área. Também haviam pedido autorização para pousar no Japão, via Embaixada Americana, mas esta não chegava dia após dia, e a falta de paciência de Pangborn e a desagradável convivência com Herndon os fez decolar sem mais esperar.
Chegando sobre território japonês em 8 de agosto de 1931, tiraram várias fotos, inclusive de áreas que eram consideradas sigilosas pelos japoneses, que estavam em guerra com a China. Ao pousar em Tóquio foram presos, e a situação piorou quando as fotos foram reveladas. Ficaram detidos no Hotel Imperial de Tóquio por sete semanas, mas conseguiram após algum tempo provar que as fotos não tinham intenções de espionagem, mas apenas de ensaio para a travessia do Pacífico e os necessários registros de prova de percurso, e sob pagamento de fiança de 1.050 dólares cada um, foram liberados.
Trabalharam por vários dias modificando o avião para que ele cumprisse o voo sem maiores problemas, alterações essas direcionadas apenas à autonomia máxima. As alterações no Bellanca foram importantes, como mais um tanque de combustível na cabine, logo atrás dos dois únicos bancos, para um total de 3.464 litros, com mais 170 litros de óleo para o motor, que podia ser adicionado em voo, como vimos.
A maior das modificações foi um trem de pouso alijável, para reduzir peso em cerca de 136 kg e o arrasto aerodinâmico ao ser solto, melhorando a velocidade de cruzeiro em 24 km/h. Iriam pousar leves e de barriga, era a solução.
Havia também um sistema de bombeamento manual da gasolina do tanque do assoalho para os das asas, que seria responsabilidade de Herndon.
Mas para decolar era necessária muita pista e muita fé, já que o peso do avião estava cerca de 50% acima do máximo recomendado pelo fabricante. A praia de Sabishiro, na cidade de Misawa, que tem hoje um monumento em honra ao recorde, foi a escolhida, com grande extensão de areia firme e um barranco suave que foi recoberto por madeira para evitar afundamento nos metros iniciais da corrida de decolagem. Misawa tem uma base aérea americana, inclusive.
Para poupar o máximo de peso, deixaram o rádio do avião no Japão. As roupas para frio extremo, pesadas, que certamente encontrariam voando a mais de 3 mil metros em um avião sem pressurização, e levaram o mínimo de comida e bebida. Além disso não havia equipamento de sobrevivência, como bote salva-vidas e coletes de flutuação. Um martírio sem dúvida.
Depois de problemas com a autoridade responsável, que desconfiava do mecanismo de soltura dos trem de pouso, decolaram em 4 de outubro de 1931, não sem antes terem que contar com a ajuda de alguns entusiastas, que conseguiram recuperar as cartas de voo roubadas um dia antes da partida por membros da Black Dragon, organização nacionalista japonesa que queria que o primeiro voo trans-Pacífico fosse feito por japoneses
Na viagem, Herndon se mostrou pouco preocupado com os prêmios em dinheiro — isso era algo que ele já tinha, e herdaria mais ainda — e teve sérios conflitos com Pangborn. O cansaço fez Herndon cochilar mais do que o saudável, e os tanques das asas se esvaziaram. O motor quase parou, só não apagando após o bombeamento ser feito desesperadamente por Hugh Herndon.
Depois de algumas horas, o mesmo problema, com Herndon negligenciando seu trabalho. Motor parado, Pangborn precisou baixar o nariz para o avião acelerar até que o motor partisse tocado pelo giro da hélice em alta velocidade. Dos mais de 3.300 metros de cruzeiro, o motor só voltou a funcionar a cerca de 430 metros sobre o mar, com Herndon novamente tendo que recuperar o tempo de bombeamento perdido, cansando-se até quase não mais ter forças. Para sorte dele, dali em diante não havia mais combustível nos tanques inferiores, e o Bellanca voaria alimentado por gravidade a partir dos tanques das asas.
Depois de cerca de 30 horas de voo, Pangborn precisou dormir, com Herndon assumindo a pilotagem e navegação. Ao acordar depois de cinco horas, a rota planejada havia sido alterada por inabilidade de navegação de Herndon, e o tempo ruim os fez perder tempo sobre terra, e quase se chocar com uma montanha, já tendo voado mais que o necessário para chegar a Wenatchee em Washington, cidade onde sua mãe, Opal Lamb morava. Foram 41 horas e 13 minutos de voo.
Era o bastante para Pangborn. Após a parada e antes de sair do avião, Herndon tomou um soco bem dado no olho direito, e teve que dizer que uma das latas de gasolina vazias havia batido no seu rosto durante o pouso.
Após a aterrissagem, Alice Boardman recebeu o cheque de 25 mil dólares do prêmio dado pelo jornal japonês Asahi Shimbun, e pagou 2.500 para Pangborn pelos “serviços prestados”, tentando “marquetear” seu filho como o piloto do voo histórico e Pangborn como um auxiliar, exatamente o contrário da verdade.
Comparecendo a alguns eventos para comemorar a travessia do Pacífico, ambos só se falavam quando fosse necessário, o mesmo acontecendo ao levar o avião a Nova York, depois de algumas semanas, apenas para concluir formalmente a volta ao mundo.
O Japão, através da Imperial Aeronautical Society lhes concedeu a White Medal of Merit, entregue pelo cônsul geral do Japão, Kensuke Horinouchi, fato ocorrido em 21 de novembro de 1931. A United States National Aeronautic Association lhes premiou com o National Harmon Trophy.
Pangborn continuou pilotando, antes da guerra como piloto de provas da Bellanca, e durante o conflito como oficial da RAF, tendo servido como piloto de traslado na Segunda Guerra Mundial levando aviões novos para diversos campos de batalha. Fez cerca de 170 travessias do Atlântico e do Pacífico, e depois da guerra foi piloto comercial. Pangborn viveu até os 62 anos, vindo a falecer em 1958. O ano de seu nascimento não é exato, pois ele colocava datas diferentes de acordo com a necessidade. Pode ter sido de 1893 a 1896.
Herndon chegou a ser diretor de operações da TWA, a famosa Trans World Airlines, e trabalhava no Egito. Faleceu em 1952 com 50 anos de idade.
O avião Miss Veedol foi vendido para a organização American Medical Researches, Inc., de Nova York. Foi pintado de branco e batizado The American Nurse (A Enfermeira Americana). Em um voo que deveria ser feito de NovaYork a Roma, desapareceu em 13 de setembro de 1932. O piloto e mais duas pessoas nunca mais foram vistos. A única parte original que sobrou foi a hélice danificada no pouso, exposta ainda hoje no Wenatchee Valley Museum.
Porque ambos são pouco lembrados é algo que só o Marketing pode explicar. O feito foi importantíssimo, mas é difícil ouvir falar no nome de um dos dois, e isso fica claro ao se encontrar apenas dois livros sobre Pangborn e o voo.
Há um título que li, “One Chance For Glory”, publicado em 2012, que conta o feito de forma parte histórica, parte romanceada, o que me desagrada. Diálogos foram criados para colorir a história, e há algumas fotos em tamanho pequeno. Porém, é um bom relato das dificuldades e do planejamento do voo, embora nada profundo. Outro é mais antigo “Upside-Down Pangborn: King of the Barnstormers”, que não conheço.
O Bellanca Miss Veedol tem uma réplica que voa, sendo o avião que aparece nas fotos coloridas dessa matéria.
JJ
Fotos: OneChanceForGlory; ThisDayInAviation, Wikipedia, Wenatcheeworld, HistoryNet.