Como toda autoentusiasta, mesmo de férias aproveito para observar o comportamento do carro — seja do meu ou o dos outros. Chamem de desvio de comportamento, TOC ou apenas curiosidade. Como minha educação montessoriana surge a todo momento, sempre acho que tudo é uma boa oportunidade para aprender algo. E, garanto, todo conhecimento é útil em algum momento. Às vezes demora um pouco, mas, juro, sempre uso algo que aprendi.
Todos os que me conhecem sabem que dedico muito tempo ao planejamento — depois disso, a execução de qualquer coisa fica mais fácil e rápida. Mas essa primeira etapa demanda muito, muito tempo. Com minha mais recente viagem ao noroeste da Argentina e ao Atacama, não foi diferente. Sabia que a condição das estradas, a altitude e a dificuldade em achar infraestrutura de apoio seriam um enorme obstáculo e, claro, tentei de me prevenir e me precaver de todas as formas.
O primeiro passo foi pedir à locadora para alugar um segundo estepe. Não consegui. Eles se mostraram surpresos, mas continuo achando que teria ficado mais tranquila se tivesse conseguido obter isso. No final, nos cerca de 2.000 quilômetros dirigidos, nem um único pneu furamos, mas isso se deveu à habilidade de dirigir, claro, mas principalmente a muita sorte. Como comentei aqui semana passada, conversei com um casal que havia furado seis pneus em somente três semanas, dois dos quais no mesmo dia.
A segunda foi quanto ao combustível. Tentei em vários postos de gasolina comprar um recipiente para isso de 10 ou 20 litros e levar no porta-malas. Também não consegui. Acho que muitos antes de mim o fizeram, pois nos lugares em que perguntei já haviam acabado os “galões” para isso. Coloco galão entre aspas pois, a rigor, um galão equivale a 3,785 litros e um “galão” de 10 ou 20 litros é incoerente, mas é assim que é chamado no Brasil. Detalhe: na Argentina é legal e permitido transportar combustível desde que nesses recipientes. Novamente, não consegui e fiquei apreensiva, especialmente na primeira parte da viagem quando passávamos centenas de quilômetros sem ver um único posto, mas no final, não tivemos problemas.
Apenas no trecho Paso de Jama-Iruya: havíamos abastecido na fronteira e contávamos com completar o tanque em Iruya mas, ao chegar lá, a única bomba de combustível da vila não tinha combustível. Fomos até Humahuaca, a mais de 70 quilômetros de distância, onde encontramos todas as pessoas que estavam num raio de sei lá qual distância na mesma situação. Resultado: 50 minutos de fila e muita torcida para que a gasolina não acabasse.
E aí uma dica: nem na Argentina nem no Chile há álcool combustível, portanto, não adianta ir com um carro que não seja flex. Apenas gasolina, gás natural ou diesel, todos eles usados e permitidos em carros de passeio e muito comuns. Mas o gás não é encontrado em todos os postos, somente nos maiores e nas estradas mais movimentadas. Teoricamente, há três tipos de gasolina: comum, aditivada e premium, mas nesses fins de mundo por onde andei a maioria das vezes havia apenas um tipo – geralmente a premium. Na Argentina, as gasolinas são de 85, 95 ou 98 octanas RON, sempre sem chumbo. No Chile, 93, 95 ou 97 octanas RON, também sem chumbo.
No Brasi,l como tem sido explicado neste AE, temos a comum ou comum aditivada de 95 RON, a premium de 98 RON, e a Podium da Petrobrás e a Octapro da Ipiranga de 102 RON. Mas a comum/comum aditivada contém 27.5% de álcool e as demais, 25%. Ou seja, estamos até melhor do que a Argentina e Chile em octanagem, mas perdemos em poder calorífico em razão dessa adição absurda de álcool à gasolina (12% na Argentina, no Chile não sei precisar). Como o álcool tem poder calorífico 30% inferior ao da gasolina, esta nos países vizinhos é bem melhor do que a nossa em poder calorífico. Portanto ir com carro brasileiro em princípio não é aconselhável, já que a relação ar-gasolina é diferente nos carros do nosso mercado e com gasolina menos “alcoolizada” essa relação fica errada — a mistura fica muito rica — e isso poderá eventualmente danificar o catalisador.
E aí uma curta explicação técnica, embora certamente meus leitores já saibam disso. Culpem um dos meus primeiros chefes no jornalismo, o maravilhoso Matías Molina: “Você tem de escrever de uma forma que todo mundo possa entender. Até minha tia-avó”. Então, lá vou eu explicar para todas as tias-avós que não entendem de carro: a octanagem indica o quanto um combustível, em mistura com o ar, pode ser comprimido nos cilindros antes de entrar espontaneamente em combustão, a chamada detonação, a conhecida “batida de pino”.. Assim, quanto maior a octanagem, maior a resistência do combustível a altas pressões e maior será a sua resistência à detonação, fenômeno altamente destrutivo pelo súbito aumento de temperatura na câmara de combustão, que inclui os pistões. Motores mais potentes têm maiores taxas de compressão e, obviamente, combustíveis mais resistentes à detonação, de octanagem mais alta são requeridos. Isto porque quanto maior a taxa de compressão, maior o aproveitamento da energia do combustível.
Em todas nossas andanças a qualidade da gasolina não foi nenhum problema. Pelo contrário. A potência dos carros que tivemos é que requereu alguns cuidados. Nem o Nissan Kicks nem a Spin eram assim, megapossantes. Como enfrentamos muitas subidas íngremes, caminhos de “rípio”, terra e descidas tão acentuadas quanto as subidas e quase tudo em elevadas altitudes, várias vezes desligamos o ar-condicionado para não roubar potência do motor. Na nossa avaliação, como já mencionei, era melhor que o interior do veículo virasse uma sauna (era impossível abrir os vidros pela quantidade de poeira) do que não dispor da potência do motor exclusivamente para movimentar o veículo
Felizmente nunca nenhum dos dois carros teve problema de superaquecimento, mas vimos muitos veículos parados ao longo dos caminhos esperando “desapunar”, ou seja, esperar que o motor esfriasse e, em muitos casos, voltasse a funcionar. Também não é bicho de sete cabeças. Outra das minhas primas que fez um percurso parecido com o nosso com seu próprio carro de passeio, passou por isso. Aí era desligar o motor e esperar um pouco.
Nos veículos com injeção eletrônica, o sistema ajusta com mais precisão a mistura ar-combustível à medida que aumenta a altitude, que quanto maior, menor a quantidade de oxigênio, o que exige menos combustível. Mas perda de potência e torque sempre há quando motor é de aspiração natural, mas nos turboalimentados a perda é praticamente desprezível.
O problema do combustível às vezes era fazer o pagamento. É comum em postos de lugares menores ou longe das estradas mais transitadas que eles não aceitem cartão de débito ou crédito. Aí, só dinheiro vivo, mesmo. Em Humahuaca, por exemplo, apesar de ser um lugar relativamente grande e de o posto ser do Automóvel Club Argentino, só dinheiro vivo — mas era para acelerar o trâmite, pois as filas eram gigantescas. Em muitos outros, como San Antonio de los Cobres, não há máquinas de cartão e muitas vezes sequer sinal telefônico.
Em apenas uma hora chegamos a mais de 4.800 metros e descemos para menos de 3.000 metros. Para, pouco depois, voltar a subir. Fica parecendo montanha russa o tempo todo! .Na foto de abertura está indicado 4.300 metros acima do nível do mar.
Em termos práticos, tudo acaba tendo algum tipo de pressão. Abrir um vidro de xampu sem se sujar não é coisa para iniciados, pois ele “explode” assim que o fazemos. E isso todos os dias, o tempo todo. Garrafas de água sem gás ao serem abertas não raro fazem um “shshshshshsh” pela pressão que escapa. Até comer um simples iogurte requer alguma habilidade para não se sujar. Ele já vem “apertado”…
É que ao nível do mar, a porcentagem de oxigênio no ar atmosférico é de 21% e a pressão atmosférica é de 1,01325 bar (760 mmHg – milímetros de mercúrio). À medida em que se aumenta a altitude, a porcentagem de oxigênio permanece constante em 21%, mas o oxigênio efetivamente absorvido por nosso organismo diminui. Assim, numa altitude de 3.600 m, a pressão atmosférica será de 0,60795 bar (456 mmHg), mas nosso organismo absorverá cerca de 40% a menos de oxigênio. Imaginem nos quase 5.000 metros que chegamos perto de San Antonio de los Cobres!
Então, para manter a potência do motor às vezes é necessário pisar mais no acelerador para ter o mesmo desempenho, o que pode fazer com que dirigir nestes lugares seja mais cansativo fisicamente. Motores turboalimentados têm menos problemas com essa questão, pois o turbocompressor consegue comprimir o ar para dentro dos cilindros e compensa a falta de oxigênio. Mas tem o outro lado também: a altitude não afeta apenas o motor do carro, mas também o motorista, que pode pisar menos o acelerador do que deveria. De uma forma em geral, a altitude nos cansa muito mais. É comum motoristas reclamarem da potência do motor quando na verdade, em muitos casos, eles é que não conseguem imprimir mais pressão no pedal do acelerador. O ideal é manter o giro do motor elevado, por isso é um prato cheio dirigir nesses lugares para quem gosta de passar marcha e usar o freio-motor. Reduz-se marcha com uma frequência impressionante — maravilha para os admiradores do câmbio manual.
No nosso caso, acabamos cruzando diversos cursos d’água que atravessam os caminhos por valetas feitas especialmente para isso. Nenhum realmente fundo, pois não havia água nem nos rios nesta época do ano. Cruzamos a pé o Rio Iruya, em toda sua largura. De outros só soubemos que eram rios pelas placas no caminho. Pura pedra. Nos casos dos cursos d’água, é engatar uma primeira marcha e sair acelerando o máximo possível, sem subir marcha. Pura aventura, é claro. Com tantas emoções esta deve ter sido a viagem em que menos conversamos, meu marido e eu. E olha que eu estou muito longe de ser muda… O máximo que me permitia era avisar o que o caminho nos reservava à frente: “Curva de 90 graus à direita”… e por aí vai. Mesmo chamar a atenção de um para o outro no caso de uma paisagem era algo a ser feito em determinados momentos. Assim, saímos para o acostamento e demos marcha à ré em alguns lugares, pois na hora não dava para avisar de algo tão prosaico. Também paramos muitas vezes, encostamos o carro em lugar seguro e saímos a pé para admirar uma paisagem ou fazer fotos. Na maior parte das vezes, é claro, as duas coisas. Eu sempre digo que meus olhos enormes e redondos são propaganda enganosa — tenho certeza de que sou japonesa, de tanto que gosto de registrar tudo.
Apesar de que em nenhum momento passamos mal, na primeira noite em grande altitude (3.800 metros) meu marido acordou no meio da noite com dificuldade em respirar. Era como se o ar não entrasse totalmente nos pulmões. Aí ele respirou bem fundo umas duas ou três vezes e foi como se os pulmões “desentupissem”. Aí continuou dormindo sem problemas. De resto, sempre andávamos mais devagar do que nosso normal, que é bem acelerado, parávamos muitas vezes mesmo quando não nos sentíamos cansados, e bebemos hectolitros de agua. Eu levava na mochila pelo menos entre 1,5 e 2 litros de água mesmo em caminhadas relativamente curtas.
O peso nas costas foi amplamente compensado por não termos sofrido nadinha com o “soroche”, como chamam os indígenas do local o mal da altitude. Vimos muita, muita gente passando mal em toda a viagem. No Tren a las Nubes, que a cada vagão tem uma enfermeira, equipamentos de oxigênio e outros itens de primeiros socorros, estavam todos cheios e com fila. Uma enfermeira me disse que os mais atingidos são as crianças porque não param de correr — algo fatídico para a altitude. Pessoalmente, aproveitava cada parada das caminhadas para tomar água e fotografar — e assim acabei fazendo 2.500. Haja parada, não?
Também é interessante evitar bebida alcoólica pelo menos no início da viagem, até que o organismo se acostume. Como apreciadora de vinho que sou, preferi me arriscar e mandei ver os vinhos de altitude que tanto gosto. Mas apenas à noite. E aí outro parêntese: como era Carnaval, atravessamos sei lá quantos comandos para verificar alcoolizados ao volante. Quando digo sei lá é isso mesmo. Depois do sexto perdi a conta. Alguns nos fizeram ficar parados na estrada por mais de uma hora para fazer meros 6 quilômetros, como na saída da Quebrada das Conchas, na província de Salta. Na Argentina a tolerância é 0,25 ml de álcool por litro de ar alveolar (pouco menos que no Código de Trânsito Brasileiro original, que era 0,3 ml/L), mas nesta época do ano o pessoal exagera mesmo. Vimos muita gente bebendo vinho de péssima qualidade em caixa tetrapak, diretamente da embalagem, em quantidades homéricas. Fora a chicha (um fermentado de milho), a cerveja e outras bebidas e destilados e fermentados de diversas plantas. Nas comemorações do “desenterro do capeta” no domingo de Carnaval em Iruya, fomos embora depois de 3 horas porque as pessoas bêbadas já eram tantas e tão inconvenientes, que preferimos sair. Isso mesmo sem ter o que fazer naquele povoado esquecido pelo mundo. Voltamos ao nosso hotel e ficamos na varanda admirando a paisagem e tomando um ótimo Torrontés com umas empanadas.
Mudando de assunto: alguém poderia me explicar por que os problemas de um veículo somem miraculosamente a cerca de 1 quilômetro de distância da oficina? Depois de problemas intermitentes com o ar-condicionado do meu carro, ele pareceu parar de funcionar de vez há algumas semanas. Na volta da minha viagem, resolvi levá-lo numa loja especializada muito recomendada. Deve ser muito boa mesmo, pois antes de chegar o ar voltou a funcionar. Pelo menos até a próxima parada que, claro, nunca é perto da tal oficina.
NG