Hoje complemento a coluna da semana passada sobre combustíveis veiculares. Nesta segunda parte, falarei (escreverei?) sobre os demais, exceto gasolina.
Primeiro, vamos a um mega programa que foi motivo de orgulho para muitos — digo isso, porque ao longo do tempo houve uma série de contestações. Sempre me lembro de quando foi lançado o Proálcool. O slogan era “Carro a álcool: você ainda vai ter um”. Um jornalista da área automobilística disse que essa frase era como uma ameaça para ele – algo do tipo: cuidado, mesmo que você não queira, está fadado a ter um.
Pessoalmente, acho que foi muito bom do ponto de vista tecnológico, de pesquisa e mesmo como uma alternativa ao até então dominante petróleo e seus derivados. É claro que podemos analisar se os custos envolvidos eram necessários, se o que se investiu valeu mesmo a pena, os tipos de tecnologia envolvida, etc. Mas essa é uma longa discussão e aqui vou abordar os aspectos técnicos de cada tipo de combustível veicular.
Uma última opinião sobre o Proálcool: na época do seu desenvolvimento (nos idos dos anos 1970) veículos movidos a energia elétrica ou outras fontes alternativas eram um sonho de doidos, praticamente. Então, visto em retrospectiva, parece-me que fazia sentido procurar opções aos derivados de petróleo, que vinha subindo muito rapidamente devido à crise do petróleo, à Guerra do Yom Kippur e outros eventos históricos. Mas isso não significa que apenas o Brasil use álcool como combustível. (foto de abertura). Na Alemanha ele foi usado durante a Segnnda Guerra Mundial para seus mísseis. Era produzido a partir de batatas, mas, claro, o fato se deveu muito mais à escassez de recursos e de matérias-primas do que a pesquisas com vistas a desenvolvimentos renováveis. Mesmo no Brasil, houve experiências de uso do álcool em veículos de passageiros em 1925 — tudo deixado de lado quando começou a cair o preço do petróleo para depois voltar a ser retomado pelo mesmo motivo.
Mas tudo muda muito rápido e com os combustíveis não foi diferente. Pode ser que daqui a algum tempo consigamos ver muitas coisas que poderiam ter sido feitas diferentemente. Mas tenho minhas ressalvas ao revisionismo sem levar em consideração a época, os costumes, a tecnologia, enfim, as circunstâncias — ou, como disse Ortega y Gasset, “O homem é o homem e a sua circunstância”.
Depois deste momento cultural, vamos à teoria:
Álcool/etanol
Em primeiro lugar, álcool e etanol são a mesma substância. Tanto faz como o chamarmos, apenas por causa de uma resolução da Agência Nacional do Petróleo (ANP) desde setembro de 2010 o termo utilizado nas bombas é “etanol”. No entanto, a palavra “álcool” ainda é mais popular. Eu mesma uso as duas indistintamente.
O álcool combustível vendido e utilizado no Brasil é o etanol ou álcool etílico. Tecnicamente, é CH3CH2OH. Por estas paragens, o biocombustível é feito quase em sua totalidade a partir da cana de açúcar, mas em outros países usa-se como matéria-prima beterraba, batata, milho, trigo, mandioca ou até mesmo cactos, testados em alguns países da África. Pode, ainda, ser produzido sinteticamente a partir de carvão, madeira e mesmo de outros recursos renováveis. O que define qual será a matéria-prima é apenas a disponibilidade e seu custo, pois o resultado é basicamente o mesmo. Escolhida a matéria-prima, procede-se a algum dos seguintes métodos para obtenção do álcool combustível:
– hidratação do etileno – o etileno é um gás incolor obtido a partir do aquecimento da hulha, um tipo de carvão mineral. Faz-se a síntese química entre as moléculas de água e as moléculas de etileno, que resultam no etanol. Esse método utiliza ácidos como catalisadores, como o ácido sulfúrico e ácido fosfórico, que possibilitam que a reação aconteça. No Brasil é pouquíssimo utilizado, mas nos Estados Unidos 80% do etanol é produzido por hidratação de etileno.
– redução a acetaldeído – o acetaldeído é um composto orgânico, também chamado de etanal (sim, com “a” mesmo). Tem estrutura molecular muito semelhante à do álcool etílico — apenas não tem hidroxila. No processo, usa-se um agente redutor. O acetaldeído recebe um íon de hidrogênio que se liga ao oxigênio formando a hidroxila e, consequentemente, o etanol. A matéria-prima deste processo é o acetileno, um gás incolor que quando submetido ao processo de hidratação produz o acetaldeído, que finalmente produz o etanol.
– fermentação – e o método mais comum no Brasil. É um processo bioquímico de geração de energia a partir de açúcares na ausência de oxigênio — nada muito diferente do que se faz para produzir bebidas alcoólicas como a cachaça, mas tem também uma semelhança com o preparo de pão caseiro. Resumidamente, a fermentação é feita quando se adiciona ao caldo da cana-de-açúcar micro-organismos (leveduras) que reagem com os açúcares e quebram moléculas, transformando-as em duas moléculas de etanol e mais duas moléculas de gás carbônico (as bolhas que vemos na massa de pão). O próximo passo é a centrifugação e o bombeamento do produto para as colunas de destilação, ou seja, a separação das misturas decorrentes da fermentação feita pelo aquecimento a até 90 °C. Porém, a destilação não purifica nenhuma substância a 100% — por isso nunca entendi essa denominação de “álcool anidro” usada no Brasil. Não há, na prática, como se produzir uma substância que seja 100% e exclusivamente álcool — ela terá sempre algo de água. Se bem que o álcool em si é relativamente menos poluente do que os derivados de petróleo (depende de como eles são obtidos), no geral, a queima do álcool produz em média 25% menos monóxido de carbono e 35% menos óxidos de nitrogênio que a gasolina. Mas não é totalmente não poluente.
O etanol pode ser produzido e comercializado de duas formas:
Álcool anidro – fora minha implicância com a questão semântica, o que define o álcool anidro é que ele tem teor alcoólico mínimo de 99,3°, isto é, teoricamente tem no máximo 0,7% de água. É composto apenas de álcool etílico que depois da fermentação passa por processo de purificação para retirada do excedente de água. É mais usado como combustível para veículos e matéria-prima para indústria de tintas e vernizes. É aquele que é acrescentado à gasolina na proporção de 25% (na gasolina premium) e 27% (na gasolina comum/aditivada).
Álcool hidratado – é o produto que sai direto da coluna de destilação, basicamente uma mistura de água e álcool com teor alcoólico de 92,6° (INPM), isto é, teoricamente tem um máximo de 7,4% de água. É utilizada nas indústrias farmacêuticas, de bebidas, de produtos de limpeza (nesse caso, por lei, 46,2º INPM) e como combustível para veículos. É aquele que vai no tanque dos veículos quando se abastece exclusivamente com álcool.
Temos ainda outra versão do etanol hidratado:
Etanol aditivado – É o álcool hidratado com diversos aditivos que promovem a limpeza e proteção dos bicos e do sistema de injeção, anticorrosivos para evitar a formação de ferrugem e agentes que reduzem o atrito entre as peças móveis do motor. A questão é que a queima do etanol praticamente não gera depósitos de resíduos logo, a preferência por etanol aditivado não é tão importante quanto à gasolina aditivada, embora traga benefícios.
GNV (Gás Natural Veicular)
Um combustível abundante, barato e de menor impacto ambiental. É obtido a partir do gás natural ou biometano ou da mistura dos dois — que produzem o gás metano. Mas não adianta conectar o botijão de gás de cozinha que não vai dar certo. O GNV tem hidrocarbonetos como metano e etano, enquanto o gás liquefeito de petróleo (GLP) usado nas cozinhas é constituído por propano e butano. É tudo gás, mas são diferentes. No Brasil o uso do GLP em veículos é proibido exceto para alguns casos, como empilhadeiras, embora nossos vizinhos aqui da América Latina e os italianos o usem há décadas. Aqui dizia-se que não havia gás suficiente para abastecer frotas do tamanho da brasileira ou que GLP tinha preço subsidiado pelo seu caráter social — gás para cozinhar —, mas acredito mais em lobbies específicos que barram esta opção. Como a queima do GNV é mais lenta que a da gasolina há uma demora na queima da mistura ar-GNV comparada com o tempo da mistura ar-gasolina e ar-álcool. Para compensar esta particularidade usam-se estratégias de avanço de ignição para que a centelha na vela ocorra antes do que normalmente aconteceria e dê mais tempo para o GNV queimar. Mecânicos costumam dizer que veículos adaptados para GNV não apresentam desempenho correto. Concretamente, o GNV suporta uma taxa de compressão maior do que a da gasolina sem detonar – daí ser necessário aumentar esta taxa para maior eficiência do motor. Mas isso só pode ser feito se o veículo for movido exclusivamente a GNV. Como a maioria dos veículos hoje são flex gasolina-álcool, a calibração é pelos combustíveis usados com menor taxa de compressão, de forma a que o carro seja compatível com todos. A questão é que se perde rendimento — não apenas por causa do GNV em si, mas pela taxa de compressão que não aproveita plenamente sua característica antidetonante. Não adianta querer que o carro suba uma pirambeira em terceira marcha — se para um veículo a gasolina isso pode ser difícil, para um a gás é quase impossível. A perda de potência, para ilustrar, é como se um motor 1,8-litro passasse a 1,6-litro.
Alta pressão
O GNV é fornecido aos veículos a uma pressão de 200 bar. Pessoas sem conhecimento desse fato acham que podem converter seus veículos para GNV clandestinamente utilizando botijões de GLP (“gás de cozinha”), que são construídos para pressão máxima de 30 bar. O resultado é o botijão se desintegrar no posto quase que instantaneamente ao ser abastecido, destruindo o veículo e boa parte das instalações do posto, muitas vezes resultando em ferimentos ou mesmo óbito em pessoas próximas.
Veja esse vídeo da Rede TV News:
Diesel
O diesel é basicamente um composto formado principalmente por átomos de carbono, hidrogênio e, em baixas concentrações por enxofre, nitrogênio e oxigênio. Sua combustão tem um excelente rendimento energético e proporciona menor consumo do veículo e, consequentemente, elevada autonomia. A emissão de monóxido de carbono é menor do que na queima da gasolina por funcionar com excesso de ar. Como nenhum combustível no Brasil é apenas aquilo que está escrito na bomba, por lei o diesel por aqui tem sempre 11% de biodiesel — produzido de óleos vegetais ou sebo animal — e há um planejamento de acréscimo de 1 ponto porcentual por ano até atingir os 15% em todos os óleos diesel categoria C. O diesel é o combustível mais consumido no país e é produto de vários processos a partir do petróleo. O primeiro passo com o petróleo em geral é, claro, é extraí-lo e separar seus componentes. Depois é feito o refino, de onde se obtém gasolina, querosene de aviação, gás liquefeito de petróleo e diesel, entre outros derivados.
No Brasil, temos vários tipos de diesel. Todos eles podem ser categoria A (sem biodiesel, mas não são vendidos diretamente ao consumidor) ou C (com biodiesel, aqueles que se encontram nos postos de combustíveis). São eles:
Diesel S-1800 – com teor de enxofre máximo de 1;800 ppm ou partes por milhão (ou 1.800 mg por kg de produto). É para uso não rodoviário, em usinas termoelétricas e trens, entre outros, por isso não vou me alongar neste item. Tem coloração amarela ou laranja, mas pode ser meio marrom.
Diesel comum (S-500) – com teor de enxofre de 500 ppm (ou 500 mg de enxofre por kg de produto). Sua cor é vermelha. Pode ser utilizado em veículos produzidos antes de 2012. Tem um índice de cetano 42 , o que diminui o rendimento do motor quando comparado com o índice de cetano do S-10. O índice de cetano é a medida da qualidade de combustão dos combustíveis diesel. É a relação entre a velocidade de ignição (o período entre o início da injeção de combustível) e o início da combustão.
Diesel S-10 – com teor máximo de 10 ppm (ou 10 mg de enxofre por kg de produto). Bem menos poluente do que o S-500, o S-10 é adequado para motores a diesel fabricados a partir de 2012. Segundo a BR Petrobras, o S-10 possibilita a redução das emissões de material particulado em até 80% e de óxidos de nitrogênio em até 98%. Veículos nacionais pesados que atendem às emissões P7 — nova fase do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proncove) 3 devem usar somente o diesel S-10. Senão os veículos podem apresentar falhas nos sistemas de pós-tratamento de gases de escapamento e emissões acima do máximo especificado. Tem índice de cetano 48, o que proporciona melhor desempenho. Não há problemas em usar este combustível em veículos de gerações anteriores, apenas não terão ganhos de potência nem de consumo. É mais caro do que o diesel comum e seu aspecto varia entre incolor e amarelado — mas pode também ser marrom ou alaranjado por causa da adição de biodiesel. Ou seja, pode ser de qualquer cor. Você não terá como ter certeza absoluta sobre o que está colocando no tanque do seu veículo apenas pela cor.
Diesel aditivado – É o diesel comum com uma série de aditivos. Tem detergentes dispersantes, anticorrosivos e antiespumantes. Segundo a Petrobrás, eles atuam já durante o abastecimento, reduzem o tempo de parada e garantem o total enchimento do tanque. Como os fabricantes de veículos e motores não especificam o uso desse tipo de combustível, a opção fica a critério dos proprietários. O diesel aditivado pode ser encontrado como S-500 ou S-10.
Diesel Premium – Segundo a BR Petrobras este tipo de diesel, que também conta com aditivos multifuncionais, oferece melhor desempenho e maior proteção ao motor. O diferenciador é o maior índice de cetano, mínimo de 51, enquanto o diesel S-10 tradicional apresenta mínimo de 48. Isso resulta em melhor qualidade de ignição e desempenho do veículo, obtendo menor tempo na retomada de velocidade. Contudo, nem os fabricantes de veículos nem os de motores especificam o uso deste tipo de combustível.
Bem, como escrevi na semana passada, abastecer um veículo não é algo para amadores, né? Está mais para autoentusiasta.
Mudando de assunto: para quem acompanhou minha saga, a seguradora me pagou a taxa de substituição do lacre do meu carro. Deu trabalho, mas consegui depois de ser passada de um setor para outro durante mais de uma semana, de ter enviado três remessas de documentos diferentes a cada pedido para três setores e, finalmente, de acionar o Serviço de Atendimento ao Cliente para ver se alguém me dava as informações corretas. Perdi sei lá quanto tempo por pouco mais de R$ 50. Mas se cada um deixar para lá, vejam quanto a seguradora lucra.
NG