“Navigare necesse, vivere non est necesse”.
Frase atribuída ao general Pompeu, foi proferida por volta do ano 70 a.C. para motivar marinheiros a enfrentar os riscos de desbravar os mares para salvar Roma. Foi transcrita pelo poeta italiano Petrarca no século XIV para a versão que conhecemos “Navegar é preciso, viver não é preciso”, versão disseminada pelo romancista português Fernando Pessoa.
Para historiadores e puristas da língua, o real significado não é o de necessidade, mas sim de precisão, exatidão para navegar, enquanto a vida é bem imprecisa.
Assim como dirigir um veículo em terra firme, a navegação requer muita precisão, equipamentos apropriados e experiência na condução.
Embarcações têm seu controle direcional na popa (atrás) por meio do leme ou de quilhas, como nas pranchas de surfe, por exemplo; por isso, deslizam sob controle no topo da água. Já os veículos sobre rodas têm controle direcional normalmente no eixo dianteiro e conduzem o eixo traseiro pelas leis da Física. Cada um, portanto, no seu devido lugar e modus operandi.
Assim, quando o assunto é sustentação hidrodinâmica do peso do veículo (mais conhecida por aquaplanagem), pneu não tem quilhas, não é prancha de surfe e carro não tem leme, não é barco; ou seja, não há controle algum do veículo nessa condição: é “navegação” à deriva.
O fenômeno aquaplanagem e as causas determinantes
De início vamos desmistificar que não se trata de aderência, mas sim da não existência dela.
Este perigoso fenômeno ocorre quando uma camada de água surge à frente dos pneus dianteiros e os levanta do pavimento, eliminando o controle direcional, e transformando-os numa prancha de surfe sem quilhas, podendo ainda atingir também os pneus traseiros.
Pneu e água não combinam. Espremer o ar que encontra pela frente é mais fácil do que espremer água. Pneus foram idealizados para obter o máximo de aderência ao solo, geralmente asfalto. O ideal é que fossem slick (lisos) para máxima aderência, estabilidade e capacidade de frenagem, mas a água se torna um problema, seja lá de onde ela venha, mas principalmente devido onde ela se deposite.
Quando um pneu encontra uma camada de água pela frente ele precisa drená-la o mais rápido possível, para os lados e para trás, de modo a manter a aderência que permite o controle direcional, e só pode fazer isso porque tem as ranhuras que formam os blocos da banda de rodagem.
Num carro médio entre 80 km/h e 100 km/h, os pneus precisam drenar aproximadamente entre 4,5 e 6 litros por segundo; numa picape esses números estão entre 10 e 12 l/s. Qualquer que seja o caso e o veículo, e para a mesma quantidade de água à frente, as quantidades drenadas variam não só com a velocidade, mas também com a largura dos pneus e, principalmente, com a espessura da banda de rodagem a ponto de acontecer não haver mais drenagem e, portanto, não mais contato com o piso, sustentando assim momentaneamente o peso do veículo.
Observe na foto de abertura que o pneu dianteiro não está girando, o que é percebido pela parcial faixa branca pintada na lateral. Isto significa que não há atrito direto entre o pneu e o solo, mas uma camada de água entre os dois. Já os pneus traseiros, neste caso, continuam drenando água e girando, o que fica evidenciado pelos rastros que deixam.
Pneus são de borracha justamente para que a aderência seja a melhor possível e com menor, mas inevitável, desgaste. Vão deixando borracha por onde passam e perdendo capacidade de drenagem ao longo da vida útil porque isto diminui a camada da banda de rodagem.
Posto isto, podemos afirmar que as causas determinantes da aquaplanagem, todas interligadas, estão fundamentadas e distribuídas em três pontos principais.
A meteorologia é a primeira delas. Num clima tropical como o nosso, as chuvas são previsíveis, mas inevitáveis as poças, corredeiras atravessando a pista e água parada nas mais diversas quantidades, espessuras e locais.
Quando a essa causa se junta outra, a imprevisível embora evitável, que é a má condição de pisos e calçamentos, teremos potencial para transformar veículos em embarcações.
No extremo oposto, os pisos bons e lisos são ótimos para diminuir o consumo de borracha e aumentar a aderência, mas complicam a vida do motorista, pois, como o coeficiente de atrito é menor no molhado, é mais fácil aquaplanar quando enfrentar uma lâmina d´água mais espessa.
Durante uma de minhas estadias no Japão, perguntei a um gerente de testes da Bridgestone, por que lá, naquela época, eles não trabalhavam tanto no desenvolvimento de melhorias nos pneus para evitar aquaplanagem. A resposta foi simples e direta. Porque, segundo ele, a empresa preferia auxiliar no desenvolvimento de pavimentos (para o bem de todos os usuários) que drenassem melhor a água das chuvas e com isso exigir menos dos pneus e dos motoristas.
Por aqui é igualzinho, não é? Na verdade, acho que às vezes deveríamos medir profundidade e não espessura da camada de água… O fato é que quanto mais água, pior.
Se na meteorologia e condições do piso tupiniquim não podemos exercer controle direto, na terceira causa determinante podemos atuar; o fenômeno se torna previsível e evitável.
Causa determinante e fundamental, o veículo e seu condutor
O primeiro e mandatório fator desta causa é a velocidade, quanto maior, mais problemas.
Há duas características marcantes. Uma relacionada à sensação de leveza; quanto maior a velocidade, maior a força de sustentação do veículo, esteja em piso seco ou piso molhado. A área de contato dos pneus vai diminuindo com a velocidade e com isto a drenagem quando encontra água (fotos abaixo). A outra característica é o impacto frontal com a “parede” de água ser cada vez maior, dificultar a imediata drenagem e assim facilitar a subida do pneu na água.
Veja como a área de contato vai diminuindo com o aumento de velocidade. As três fotos, da esquerda para a direita, são com veículo a 40 km/h, 60 km/h e 100 km/h. Influenciada pela força de sustentação, a capacidade de drenagem diminui com a velocidade.(Fotos: Bridgestone)
Pneus são, claro, o segundo fator.. Os de perfil baixo são ótimos para piso seco, e se tornaram tendência e fato mesmo em veículos que não precisariam deles. Ocorre que, quanto maior a largura, maior é a dificuldade para vencer a barreira de água, mesmo que o desenho da banda seja apropriado para o molhado. Se, além da largura, a altura dos sulcos (espessura da banda) for pequena e/ou com desgaste irregular, a perda de controle é mais iminente.
Geralmente relegadas ao esquecimento, as pressões de enchimento dos pneus recomendadas pelos fabricantes são as que procuram atender o máximo de desempenho. Para o caso de aquaplanagem, as mais altas que elas produzem pressão específica maior no solo, o que é bom, mas diminuem a área de contato da banda e, com isto, a drenagem. Por sua vez, abaixo do especificado, a área se torna côncava e menor, o que diminui a capacidade de drenagem.
Se a questão é sustentar momentaneamente o peso do veículo, então fica mais difícil que a camada d’água o faça com os mais pesados. Este é o terceiro fator: isto porque quanto mais pesado, maior é a pressão específica dos pneus contra o solo, e mais garantida fica a drenagem. Caminhões só aquaplanam em condições mais extremas do que as para os carros.;
já as motocicletas, apesar de leves, dificilmente “navegam à deriva” porque, assim como nos caminhões, a relação entre seu peso e a área da banda ainda é favorável. O pneu delas “corta” a água mais facilmente que o de um carro, por exemplo.
Repare que só nestes três fatores da causa determinante veículo podemos atuar diretamente.
Os tipos e os métodos de teste
O que faz termos ou não controle sobre um veículo são as quatro áreas de contato dos pneus com o solo num veículo pequeno/médio são do tamanho aproximado de um prato de sobremesa cada uma. É através delas que a aderência nos permite seguir em linha reta ou em curva.
Aliás, estamos sempre em linha reta ou em curva com um veículo; consequentemente a aquaplanagem pode ocorrer em reta (chamada aquaplanagem longitudinal) ou em curva (aquaplanagem lateral).
Entretanto, pouco se diz sobre os veículos serem simétricos apenas na estética, no design. Na arquitetura, e principalmente na distribuição de massas, eles são assimétricos, ou seja, os pesos agindo em cada roda do mesmo eixo na maioria das vezes são diferentes, bem como as áreas de contato formadas pelos pneus. Entre os eixos as diferenças são algumas vezes significativas.
A consequência é que a drenagem de água também é um pouco diferente, seja na longitudinal (foto abaixo), seja na lateral; normalmente uma das rodas inicia a aquaplanagem antes de outra e o direcional é ainda mais difícil seja em linha reta ou em curva.
É comum um pneu ser melhor para uma das duas condições e pior na outra. A mencionada assimetria dos veículos, bem como o desenho da banda de rodagem, cuidam disso. A impressão digital dos pneus no solo é mais ou menos na forma de uma elipse quando em linha reta, mas distorce e assume a forma aproximada de grão de feijão quando em curva. Isto faz com que na aquaplanagem lateral a drenagem e os ombros tenham mais influência do que quando em reta.
Em linha reta, seguindo o eixo longitudinal da via, os veículos dão sinal do risco pela frenagem involuntária que o impacto com a água provoca. Os de tração dianteira avisam do início da aquaplanagem quando o giro do motor sobe abruptamente sem a respectiva tração (como se virasse em falso). A partir daí, a sensação é de “flutuar” até o momento em que volta o controle.
Assim, neste caso, o primordial é saber quanto tempo os pneus levam para retomar sua função. Quanto maior a velocidade que o veículo consegue desenvolver na camada de água e menor for o tempo de retomada, melhor, pois é sinal de que voltou a drenar a água completamente.
A relação velocidade x tempo fica clara no gráfico abaixo que é resultado de teste comparativo realizado em um sedã médio com pneus normais de produção e aproximadamente 10 mm de espessura da lâmina de água. Numa condição, os pneus novos (7,3 mm de banda de rodagem) estavam no eixo dianteiro enquanto o traseiro foi equipado com pneus no limite legal de 1,6 mm (Indicado pelas marcasTWI). Depois a posição dos pneus foi invertida nos eixos e feita a comparação de resultados.
Já em curva não é tão simples; não sabemos qual das quatro rodas perderá o contato primeiro.
Nas mesmas configurações do teste em linha reta, e conforme vamos aumentando a velocidade, a aceleração lateral vai aumentando por conta da aderência que os pneus ainda exercem com o piso (foto abaixo). No momento em que ocorre a aquaplanagem em alguma das rodas, a aceleração lateral despenca para zero e o veículo segue na tangente.
Aqui não há avisos claros e a relação velocidade x aceleração lateral tem importância fundamental não só pelos valores numéricos, mas também pela forma das curvas . Quanto maior a área geométrica abaixo da linha no gráfico, melhor; significa que o pneu é mais progressivo, mais dócil e menos abrupta a perda de controle (gráfico abaixo).
Por fim, pelo que vimos acima, condições controladas de piso e quantidade de água, só mesmo em campos de provas dos fabricantes. Lá, os pisos são planos e de inclinação nula, e a lâmina de água é de fluxo constante, com espessura a escolher entre 4,5 mm e 12 mm. A ideia é eliminar variáveis e concentrar o estudo nos pneus e no veículo.
Os testes, tanto em reta como em curva, são executados com velocidade constante e controlada em cada passagem, com acréscimos de normalmente 5 km/h para a próxima velocidade. De velocidade em velocidade vão se executando várias passagens até o momento da aquaplanagem que é captada pelos instrumentos eletrônicos.
E então, o que fazer quando ocorre?
Nenhum pneu é superior em tudo; eles são feitos para atender compromissos. Portanto, cuidar bem do que é definido para o veículo é mandatório.
Primeiramente, melhor manter as medidas originais evita vários dissabores. Em seguida, usar pressões de enchimento especificadas até o desgaste atingir 3 mm de espessura da banda de rodagem: com menos disto, descartar os pneus.
Por fim, fazer rodízio para que estas condições de desgaste normal ocorram nos quatro pneus ao mesmo tempo e, então, trocar por quatro novos. Há quem prefira, por razões econômicas, não fazer rodízio (há fabricantes, como a Renault, que não recomendam rodízio),optando por trocar pneus aos pares. Nesse caso, como vimos acima, colocar os pneus novos na dianteira
Velocidades adequadas ajudam muito, até evitam problemas. Mas, se mesmo assim acontecer, calma, muita clama. Não alivie o acelerador bruscamente e não freie, até porque não adianta nada e ainda pode causar acidentes uma vez que as rodas estarão paradas quando retomar o controle. Uma transferência brusca de peso do eixo traseiro para o dianteiro pode desequilibrar o conjunto e aliviar a traseira deixando-a passível de “flutuar”.
Se o veículo seguir em linha bem reta e for efetuar pequenos movimentos com o volante (para sentir se há aderência, como indicam alguns técnicos) para com isto verificar se realmente está em aquaplanagem, tenha certeza de que sejam bem pequenos e que o volante e as rodas voltem à posição reta em que estavam quando se iniciou o fenômeno.
Pelo que foi exposto acima, pode haver inclinações de pista, camadas distintas de água e diferenças nas bandas de rodagem e com isso o veículo puxar para um lado quando em linha reta, mas não tente corrigir desvio de rota durante a “navegação”. O retorno pode trazer surpresas. Lembre-se que ao retomar o controle direcional, o veículo irá para onde as rodas estiverem apontadas.
Falando em navegação e dos riscos dela com veículos em vez de embarcações, ouso um trocadilho com a frase famosa. Eu diria que: navegar (com carros) não é preciso, mas viver é mais preciso…seja qual for o sentido linguístico da palavra preciso.
MP