Em 1988 apareceu nas Mil Milhas Brasileiras um Chevette modificado que chamou a atenção pelo seu visual e também pelo desempenho. A pista de Interlagos ainda era o traçado antigo de 7.960 metros, e os Opala Stock Car dominavam o grid e as primeiras posições dessa tradicional prova.
O regulamento da Mil Milhas nessa época era simples. Havia duas categorias sem restrições de preparação ou procedência do veículo. Ambas eram Força Livre e a separação era pela cilindrada do motor. Até 2 litros e acima de 2litros. No caso de utilização de turbocompressor multiplicava-se a cilindrada por 1,4. Um carro com turbo para se enquadrar na primeira classe deveria ter motor de cilindrada até 2.000 cm³ ÷ 1,4 = 1.428,5 cm³ (1,4 era o coeficiente de equivalência de cilindrada a menos para motores carregados ou turbocarregados; atualmente é 1,7).
O Chevette apareceu com motor de GM Família II de comando no cabeçote (OHC) 2,0 turbocarregado, montado longitudinalmente, diferente do Monza, que utilizava motor transversal. O câmbio era o Clark 4-marchas utilizado no Opala 6-cilindros e o eixo traseiro era do Opala Stock Car.
Chevette em competições nacionais não era uma surpresa. Desde o seu lançamento em 1973 houve aparições de carros na antiga Divisão 3 e posteriormente no Campeonato Brasileiro de Marcas e Pilotos. Mas nunca houve um Chevette que se destacasse muito nessas categorias.
O Chepalett, nome dado pelo Bob Sharp em sua matéria para a revista Oficina Mecânica de junho/1990 era derivado de um Chevette que disputou o Brasileiro de Marcas e Pilotos em 1983, e entre os pilotos estavam Fernando Rebellato, Roberto Azem e José Ricardo Fiaminghi. O regulamento desse campeonato permitia utilizar cabeçote do Monza no bloco de motor 1,6-l do Chevette. Essa configuração ficou conhecida como “misto quente”.
Em 1986 instalaram o motor GM Familia II com turbo no Chevette e participaram da Mil Milhas daquele ano, porém não tiveram bom resultado, apesar da boa velocidade em retas.
Finalmente em 1987, os engenheiros do Campo de Provas da Cruz Alta (CPCA) da GM em Indaiatuba, Rebellato e Fiaminghi, se uniram para transformar o Chevette do Campeonato de Marcas, que havia sido extinto, em um Chevette para disputar a Mil Milhas de 1988. Conseguiram o apoio extra-oficial de alguns departamentos da empresa, e um time de mecânicos, técnicos e engenheiros do CPCA passaram a colaborar no projeto.
Justamente nessa época eu fui contratado para trabalhar no CPCA no grupo de desenvolvimento geral, onde Rebellato e Fiaminghi atuavam. O meu envolvimento com o projeto foi inevitável, visto que vinha de outras experiências em preparação de kart, carros de corrida e turbos na Lacom Schwitzer (hoje Borg Warner).
A transformação
A teoria diz que todo carro de corrida nasce pelos pneus. São eles os responsáveis por transmitir a potência ao solo, e suportam a carga lateral gerada nas curvas. Não adianta ter bom motor ou excelente suspensão se não for possível transformá-la em velocidade. Existe um slogan da Pirelli que diz que “potência não é nada sem controle’.
Para competir de igual para igual com os Opala Stock Car, o Chevette deveria utilizar o mesmo pneu 225/55R14 da Pirelli, o Corsa P7. Era o que existia de melhor no mercado de competição com opções slick e chuva. Foram montados em rodas de liga leve de 8 polegadas, a mesma utilizada pela Stock Car, com fixação por 5 parafusos.
A outra opção era pneus aro 13, também Corsa P7 da Pirelli, que eram utilizados pelos carros com motores até 2 litros. Essa solução inviabilizaria a instalação de freios grandes, e o consumo de pastilhas, disco e até mesmo de pneu seria muito alto. Ou seja, não atingiria o desempenho esperado.
A primeira dificuldade foi a adaptação dos cubos de rodas de 5 parafusos. O Chevette utilizava cubos de 4 parafusos, portanto para montar as rodas/pneus definidos teriam que utilizar o mesmo cubo de roda do Opala. Pelo lado da carroceria seria necessário alargar para-lamas dianteiros e traseiros, o que era mais fácil.
Na traseira a solução já estava definida, mas ainda não equacionada, pois utilizaria o eixo traseiro do Opala Stock Car que já tinha o cubo de 5 parafusos. Mas na dianteira necessitava de mais engenharia.
Para suportar as cargas que a utilização desse pneu traria para a ponta de eixo dianteira, havia a dúvida se a peça do Chevette iria suportar tal nível de carga. A solução foi adotar as mangas de eixo do Opala, onde teria os cubos de roda de 5 parafusos do Opala. Dessa maneira, todo o conjunto manga de eixo, cubo e rolamentos dianteiros seriam os utilizados na Stock Car, o que permitiria colocar o mesmo disco de freio e pinças que essa categoria utilizava.
A suspensão dianteira do Chevette e do Opala eram similares apenas por serem de duplo braço triangular sobreposto, porém com dimensões totalmente diferentes. As juntas esféricas tinham diâmetros de encaixe diferentes. Os braços da suspensão do Chevette foram retrabalhados para receber as juntas esféricas do Opala. Nesse momento já foi calculado a faixa de câmber (mínimo 3 graus negativo) e cáster (mínimo 4 graus) que seria necessário para ajuste do carro na pista.
Outra diferença era a posição do braço de direção na manga de eixo. Em função da caixa de direção do Chevette ser montada à frente no subchassi, o braço era voltado para frente. Ao contrario do Opala que era voltado para trás. A solução foi soldar um braço de Chevette na manga de eixo do Opala. A grande preocupação era com a qualidade e resistência dessa solda, pois eram peças fabricadas em aço forjado, dada a alta carga que é submetida em operação.
Aqui entra a colaboração de profissionais de alta capacitação técnica do CPCA. Nesta fase de preparação o diretor do CPCA, Sr. Pedro Manuchakian, permitiu que alguns trabalhos fossem feitos lá dentro, porém fora do horário normal de trabalho. Na ferramentaria trabalhavam o “Russo” Bilesk e o Belarmino. Quando o assunto era usinar ou soldar, bastava entregar para eles que apesar de reclamarem bastante, faziam com o maior capricho.
Suspensão dianteira estava finalizada, utilizando os próprios braços de controle originais do Chevette, porém com juntas esféricas do Opala. Manga de eixo do Opala com retrabalho no braço de direção para Chevette. Cubos de roda e rolamentos do Opala com adaptação para montagem do disco de freio da picape D-20. Novamente a mesma receita utilizada pela Stock Car.
Na traseira a solução também exigiu muita criatividade para instalação do eixo traseiro completo do Opala Stock Car. A geometria da suspensão traseira do Chevette utilizava o tubo de torque fixado à carroceria como terceiro ponto de ancoragem da suspensão, além dos dois braços inferiores que tinham similaridade com o Opala. Ambas utilizavam a barra Panhard para limitar a movimentação lateral.
A solução foi desenvolver um suporte no assoalho traseiro do Chevette para fixar os braços superiores da suspensão do Opala. Por sobreposição dos desenhos de layout da suspensão traseira dos dois carros determinou-se o ponto de fixação, e foi desenhado um suporte. Primeiramente este suporte foi construído em papel cartão para simulações de movimentação da suspensão diretamente no carro. Passada essa fase, partiu-se para a construção da peça final que foi soldada ao assoalho, e posteriormente ancorada à gaiola de proteção interna (“santantônio”).
Nos dias atuais esse trabalho seria muito mais fácil de ser feito, pois com o recurso de computação gráfica essa sobreposição de imagens, desenho em 3D e até mesmo a movimentação seria feita virtualmente. Na época foi tudo realizado em pranchetas de desenho, utilizando réguas, esquadros, compasso e transferidor, além da ótima lapiseira Pentel com grafite 0,5 mm que todo engenheiro carregava no bolso da camisa.
Peças agregadas a todas essas modificações foram sendo obtidas com fornecedores parceiros do projeto. Amortecedores vieram da Cofap, buchas de suspensão da Axios, molas da suspensão da Fabrini. A própria Dana fez a revisão do eixo traseiro e instalou o autobloqueante. Entre outros colaboradores. Um cardã bipartido, semelhante ao que entrava em produção no Opala 88 foi adotado no projeto, uma inovação para a época.
Trem de força
Enquanto o carro permanecia no CPCA fazendo toda adaptação de suspensão, freio e carroceria, o kit turbo para o motor era desenvolvido e preparado na oficina EuroSport, no Cambucí, em São Paulo.
A EuroSport era uma oficina de preparação de carros com grande vocação para instalação de turbocompressor em carros carburados. Um dos proprietários era o Spiga Korenjak que amava o que fazia, e os carros que saiam dali eram verdadeiras referências. Era lá também que autoentusiastas se reuniam no final do dia para um bate-papo — de carros, é óbvio!!
O motor GM família II 2,0 8-válvulas de comando único no cabeçote (OHC), era bem robusto e suportava bem a pressão de turbo, portanto não poderia ter melhor escolha do que essa. A GM fabricava em São José dos Campos uma versão desse motor para exportação para EUA. Equipava o Pontiac Sunbird que também utilizava turbocompressor. Essa versão tinha bielas e pistões forjados e casquilhos reforçados, o que dava maior durabilidade sob as altas pressões do motor turbo.
Através de contatos internos a equipe conseguiu comprar esse motor “tipo exportação” para ser utilizado no Chevette. A instalação do motor no cofre do motor era relativamente simples visto que seu tamanho era similar ao original 1,6-l do Chevette. Para instaação do câmbio de Opala foi necessário um flange de adaptação que fixava ao motor de um lado e ao câmbio, do outro.
A preparação do motor consistia em instalação do turbocompressor Garrett T03 e interresfriador de ar montado à frente do radiador. O carburador era o Brosol 2E7 com difusor primário de 28 mm e secundário, de 30 mm. A pressão de sobreccaregamento era de 1 bar para ritmo de corrida, podendo ser elevada até 1,8 bar. Havia a intenção de instalar um mecanismo que pudesse ajustar a pressão de dentro do carro, mas não foi concretizado para a primeira corrida de 1988.
O comando de válvulas era o original da versão Pontiac (chamado 2.20), assim como a taxa de compressão de 8,8:1. A potência foi estimada em 250 cv a 5.800 rpm e 35 m·kgf de torque máximo a 3.000 rpm. Velocidade máxima teórica era de 240 km/h, mas na pista de Interlagos, em ritmo de corrida com 1 bar de pressão no turbo, chegava a 210 km/h, o que não era mal para a época.
Após instalação desse motor com kit turbo na carroceria do Chevette já com suspensão dianteira e traseira “tipo Stock Car” o carro foi levado a testes na Pista Reta do CPCA. Uma reta de 2,2 km plana e em nível, onde era possível fazer todas análises de motor, câmbio, freio, pneus, etc.
Tratando de uma prova de longa duração, a confiabilidade e durabilidade dos sistemas eram de vital importância. Os engenheiros da área de Ruídos e Vibrações fizeram medições com lâmpada estroboscópica para verificar se havia algum componente, ou suporte, ou encanamento com vibração acima do recomendado, o que certamente levaria a uma falha.
A excelência está nos detalhes
Um carro de corrida não é apenas motor e suspensão com bom freio. O carro tem que ser muito bem preparado, pois normalmente é nos detalhes que se perde uma corrida de longa duração. Era nesse ponto que os técnicos do CPCA, Alemão, Forner, Ivair, Niltão, Matiuzzo, Stradiotto e Darzan faziam a diferença. O carro era tratado com muito carinho por eles e ao longo da preparação recebeu o apelido de “nó-jento”, dado o extremo cuidado que tinham com os detalhes.
Na parte elétrica foi preparado um novo chicote elétrico, superdimensionado, que ficou a cargo do Mário da Autoelétrico Paratodos. A bateria veio para dentro do carro, no lugar do banco do passageiro dianteiro. Dois módulos de ignição e duas bobinas foram instalados lado a lado dentro do habitáculo para proteção contra calor e água. Um painel de fusíveis com fácil acesso foi instalado dentro do carro.
A distribuição de peso foi pensada na instalação do tanque de combustível de 180 litros no lugar do banco traseiro. Esse tanque permitia 2 horas de autonomia com álcool. Uma vantagem em relação aos Opala Stock Car, que com tanque de 200 litros conseguiam no máximo 90 minutos. A distribuição de peso chegou perto da perfeição de 25% em cada roda, logicamente com variação entre tanque cheio e vazio.
Para compensar a diferença de carga no eixo traseiro nas condições do tanque, foi instalada uma válvula proporcionadora de freio sensível a carga que podia ser ajustada pelo piloto, permitindo maior ou menor participação do freio traseiro, dependendo da condição de carga e pista.
As limitações orçamentárias da equipe eram grandes. O patrocínio do fabricante de freios Bendix pagava as despesas de corrida, como pneus, combustível, transporte e alimentação da equipe. Não era possível, por exemplo, comprar as sapatas de pedais Tilton que outros competidores já utilizavam. Tudo era feito para aproveitar ao máximo os componentes normais de produção, facilitando assim a compra dos fornecedores locais.
Treinos e corrida
O teste final só acontece na pista, e foi lá que os últimos ajustes foram feitos. Nos treinos diurnos e noturnos foram vários problemas de carburação e mangueiras de pressão que se soltavam com a temperatura e vibração, mas tudo foi sendo solucionado.
No último treino uma falha no câmbio quase impede o carro de largar, mas novamente os mecânicos e engenheiros do CPCA entraram em cena. O câmbio foi desmontado, e por falta de peças de reposição a peça falhada foi soldada, limada, ajustada e remontada, permitindo largar.
O Fernando Rebellato ao dar uma volta com o carro após esse retrabalho disse que o câmbio parecia que iria morde-lo, de tanto que rosnava. O engenheiro disse a ele: vai com fé que vai amansar.
Durante a corrida vários pequenos problemas foram acontecendo e sendo solucionados pela equipe de box, durante as paradas programadas. Mesmo quando o carro estava mais lento na pista, a decisão era perder segundos na pista, evitando perder minutos no box. Cerca de 2 horas antes do final da corrida, o câmbio voltou a dar problema e o carro ficou apenas com a quarta marcha. Na última parada nos boxes, toda equipe empurrou o carro para no embalo engatar a 4ª marcha e seguir até o final.
O Chevette chegou em 10º lugar na geral entre mais de 60 participantes. Uma vitória para toda equipe, que ao som do hino das Mil Milhas comemorou a chegada ao final, independente da classificação. Foi a coroação de um trabalho de um ano inteiro, com muitas histórias, amizades, brigas e reconciliações.
Em 1989, ainda no circuito antigo de Interlagos, ocorreu um vazamento de combustível após o primeiro abastecimento da corrida, ocasionando um incidente térmico na freada da curva do Sargento, que levou ao abandono da corrida.
Após várias atualizações estéticas, como a instalação da frente de Kadett GS e mudanças nos para-lamas traseiros, mas mantendo a receita mecânica original, veio o melhor resultado na edição de 1990. Sob a condução de Fiaminghi, Rebellato e Silvio Zambello, 4º lugar na geral, que foi o melhor resultado de um Chevette em toda história das Mil Milhas. Poderia ter subido ao pódio, caso um desgaste irregular das pastilhas do freio traseiro não tivesse obrigado a uma parada extra, perdendo assim o terceiro posto que ocupava.
A última Mil Milhas do “nó-jento” foi a de 1992, visto que em 1991 não teve corrida. E após isso o carro foi usado para algumas corridas da categoria Força Livre em São Paulo. Um acidente com a carreta que o transportava acabou com a brincadeira e o sonho de toda equipe. Quem sabe um dia os amigos do “nó-jento” criem coragem e façam um clone dele. Ou ficaremos com as histórias já registradas.
GB
(Atualizado em 25/04/20 às 15h45, correção de Firebird para Sunbird)
Fotos de participações nas Mil Milhas de 1990 e 1992: