Dirigir é um ato social. Mas também é um ato de conectividade. Não, não estou me referindo à multimídia tão importante para imagem e vendas de uma marca nos dias de hoje. Refiro-me à ligação mecânica apurada entre o condutor, o veículo e a via por onde vai. Sincronismo.
Dependendo de seu temperamento (instintos) e sua personalidade (atitudes), o motorista impõe ao veículo e ao meio muito de seus aspectos emocionais pessoais.
Existe diferença entre comum e normal. Pela diversidade de pessoas e infrações contra a legislação de trânsito, é comum a situação caótica. Isto não é nada normal. Motoristas normais deveriam ser comuns e vice-versa; entretanto, quase nunca é assim. Infelizmente há muito mais motoristas que comumente não são normais neste sentido…pelo menos no Brasil. Cada um de nós tem um pouco de “culpa no cartório” e comete lá suas “infraçõezinhas” de quando em quando. É fato.
Em sentido oposto aos termos comum/normal acima utilizados, temos aqui outro caso. Não são tão comumente encontrados aqueles com capacidades, talentos e habilidades acima da média humana (nascida apenas para dirigir mecanicamente). São pontos acima da curva na linha mediana dos comuns e normais no que diz respeito à conectividade mecânica a que me referi acima.
Se por força das atividades profissionais tivermos a possibilidade de lapidar nossas arestas, desenvolver nossas habilidades e talentos e nos tornarmos os tais pontos acima da média, isto nos traz muitas responsabilidades. “A quem muito se dá, muito será cobrado”. Mas há também o prazer de saborear momentos que os comuns/normais talvez não consigam nem entender.
Quer um exemplo? Lá vai algo que não foi inspirado em fatos reais; aconteceu mesmo.
Tempos atrás, eu dirigia um hatch compacto por uma estrada plana de terra batida, lisa e coberta daquela argila fina, típica do interior. Pelos retrovisores, só poeira vermelha. Entre fazendas e chácaras, reta e mais larga até do que algumas avenidas, ampla visão em todas as direções; apenas algumas porteiras na beira da estrada. Era convidativa e não desperdicei a oportunidade de acelerar um pouco mais sendo o único veículo no trajeto.
Umas poucas ruas secundárias terminando em “T” surgiam lá de quando em quando e era possível ver bem longe o que vinha ou não por elas. Era numa dessas que eu tinha que entrar. Quando chegou o momento comecei a preparação (emocional) para a ação a seguir.
Sem reduzir muito a velocidade, punta-tacco para redução de marcha, num golpe de volante esterço para a direita (a rua era para a direita), contraesterço, ao mesmo tempo puxo o freio de estacionamento e…voilà, o carro deslizou suavemente nas quatro rodas até ficar 90º com a direção em que eu vinha e 0º com aquela em que eu queria entrar. Foi só voltar a acelerar mais.
Perfeito! Exceto pelo palavrão que minha esposa proferiu por conta do susto.
Por essas e outras é que ela é normal e eu não.
Capacidade de manobra
Motoristas normais conduzindo veículos normais em vias normais atuam quase que com exclusividade na faixa tradicional de linearidade. Para ação imposta, reação esperada e proporcional. Ações sobre os comandos correspondem às reações diretas e planejadas com resposta veicular na trajetória esperada.
A expectativa é de um comportamento dinâmico sempre linear; tudo deve ser proporcional. Sair dessa zona de normalidade causa grande apreensão, sustos e, em geral, descontrole emocional (não se esperam grandes emoções dirigindo dessa forma) e até descontrole mecânico. Manobras e situações inesperadas, causadas ou não pelo próprio motorista, geralmente não acabam bem.
Motoristas mais habilidosos, principalmente os pilotos de competição, em particular os de rali (foto de abertura), bem como os de testes e jornalistas especializados, agem quase sempre no limiar da linearidade, e fora dela quando aplicável. A manobra que mencionei acima é típica das provas de rali, notadamente em pisos escorregadios, pois auxilia muito nas tomadas de curva em ângulo reto a baixas velocidades. Sem dizer o prazer de controlar o veículo. É favorável até para as fotos.
De onde decorre essa capacidade de manobra fora da “normalidade”? Além, claro, da capacidade do condutor, vem da não linearidade dos pneus, geometria de direção e cargas de controle dos elementos da suspensão do veículo quando utilizadas fora da linearidade.
As forças de aceleração e desaceleração, bem como e principalmente as de esterço, enviam cargas aos pneus que reagem longitudinal e lateralmente de forma proporcional ao que foi distribuído pelos elementos da suspensão em função da geometria de direção.
Se aumentarmos as tais forças e a velocidade com que fazemos isso nos comandos, em particular no volante, os pneus podem ser incapazes de gerar reações longitudinal e lateral suficientes para evitar mais que a deformação dos flancos e flexão da carcaça (que já acontecem na linearidade), mas atingir o escorregamento, seja longitudinal ou lateral, ou até ambos.
Nas forças longitudinais (aceleração, tração), qualquer diferença entre a velocidade com que as rodas giram entre si, pode levar a esse estado. Nas forças laterais (esterço) é quando se ultrapassa a capacidade do ângulo de deriva do pneu em suportar a situação sem escorregamento.
Definições da marca
Saber identificar, ultrapassar e utilizar favoravelmente esse limiar definitivamente não é para a maioria. Isto também aumenta os riscos, riscos estes calculados no projeto, claro, para atender quem não sabe ou não quer ultrapassar nada e dirigir fora da definição de linearidade.
Os projetos definem um mínimo de comportamento dinâmico para condução confortável e segura de um veículo. Estão atrelados a este padrão mínimo a estabilidade direcional — em retas e curvas — sob carga de aceleração ou frenagem e a coerência no comportamento e resposta da direção.
Por isso que os veículos de um dado segmento têm cada vez mais comportamento muito similar entre si.
Eu conseguiria manobra semelhante àquela que efetuei naquele hatch com qualquer outro do segmento, sem muitas diferenças e surpresas, não pela minha habilidade pessoal, mas pela similaridade mencionada.
Claro que há aspectos emocionais amplamente estudados pelo pessoal do marketing e de vendas e que, no fundo, são o que distingue os veículos no mercado…mesmo com plataformas comuns. Calibrações de suspensão e direção dão o tom específico a certa marca, mas no fundo os resultados são parecidos.
Os logotipos trazem identidade visual, charme e herança, mas também carregam o que se convencionou chamar de DNA da marca. Aquela ideia de identidade da marca, transferida a todos os modelos da fabricante e que diferencia mesmo quando o grupo é dono de mais de uma e comuniza plataformas.
Alguém na Prodrive Automotive Technology Ltd., Inglaterra disse que “marca é uma promessa, uma experiência única que proporciona uma diferente combinação de benefícios tangíveis e intangíveis para o usuário. A partir da perspectiva do comportamento dinâmico do veículo, os atributos de marca podem não ser estritamente necessários para o desempenho, mas identificam prontamente a origem do produto e são importantes na decisão de comprar sempre a mesma marca”. Verdade marcante e aplicada.
Na estratégia, a essência
Nas suspensões e sistemas de direção convencionais o limiar da linearidade é mais facilmente perceptível, quer o condutor tenha habilidade ou não para atuar se ele for ultrapassado. Já nos sistemas semiativos e ativos, a não linearidade é mascarada o quanto a marca assim o desejar. Tudo para prover ao usuário uma condição de condução supostamente mais linear.
Quando os limites físicos de ações e reações são ultrapassados, entram em ação os componentes dos sistemas eletrônicos estudados para que nem o motorista, nem os passageiros, se surpreendam. Aqui os atributos da marca são amplamente estudados e aplicados para que a experiência seja a mais agradável possível dentro das emoções esperadas pelo público consumidor. Dá para dizer que o veículo ganha certa personalidade dinâmica graças às atitudes com que reagirá aos comandos e à via.
Uma vez que toda tecnologia tem suas vantagens e desvantagens, empresas como a própria Prodrive e as engenharias dos fabricantes de veículos trabalham muitas vezes em conjunto para “esticar o cobertor curto” das características antagônicas de projeto. Supõe-se que o sistema ativo, ou mesmo o semiativo, conseguem melhorar o desempenho nos atributos escolhidos.
Entretanto, se por um lado buscar enaltecer as virtudes que tragam prazer ao dirigir, isto pode afetar o conforto de rodagem. Por outro lado, se a estabilidade direcional for intensificada, pode trazer certa apreensão devido as respostas no modo Sport, por exemplo, e privar de certo conforto os ocupantes. E assim por diante na definição da melhor estratégia para os atributos da marca.
Mas o que desequilibra mesmo a equação é a simplicidade, ou falta dela, no projeto. A complexidade da estratégia de controle consegue esticar o cobertor em praticamente todas as direções, menos na dos custos. São eles que ainda definem o projeto final.
Alguns veículos no mercado seriam bem difíceis (para dizer o mínimo) sem assistência eletrônica; certas deficiências estão bem camufladas e não deixam a marca ser arranhada.
Por isso temos veículos que parecem não ter nem “alma” ou identidade, enquanto outros são tão intensos.
MP
Matéria baseada no artigo Branding Vehicle Dynamics, revista Automotive Engineering International, uma publicação da SAE International, edição de julho 2003.
Mário Pinheiro escreve a coluna “Pelos retrovisores” quinzenalmente às sexta-feiras