Nos primórdios da era automobilística as rodas eram montadas em eixos rígidos ligados diretamente à carroceria. As rodas foram posicionadas com câmber positivo, dado pelo próprio eixo, de modo a manter o cubo de roda bem apoiado na ponta de eixo, e também para que os raios trabalhassem em posição vertical quando do carregamento do veículo.
O estudo da dinâmica veicular se tornou mais necessário desde o momento em que carroceria e eixos foram separados e ligados elasticamente por uma “dupla dinâmica”: molas — para suportar o peso do veículo e absorver as irregularidades — e amortecedores — para conter as oscilações da carroceria e das rodas, além de isolar das vibrações induzidas pelas irregularidades do solo. Estes dois elementos dissipam energia na forma de calor para minimizar as movimentações.
Equilíbrio em movimento
Enquanto eixos e carroceria eram solidamente ligados, a estabilidade dependia basicamente do centro de gravidade. Com a separação, surgiram a massa suspensa (carroceria e chassis) e a massa não suspensa (suspensão e rodas) formando um novo sistema único e não mais tão equilibrado e estável.
É certo que a pretensão inicial foi alcançada, pois o conforto aumentou; a frequência das vibrações transmitidas aos ocupantes diminuiu muito. Todavia, as oscilações com maiores amplitudes verticais geraram outro desconforto, o movimento excessivo nem sempre bem controlado pelos amortecedores.
A força de reação de uma mola é função direta do curso de suas extremidades, ou seja, posição relativa entre roda e carroceria. Já no amortecedor, a força de reação é uma função complexa da velocidade com que as extremidades são aproximadas e separadas; essa força aumenta de maneira crescente.
Como massa suspensa e massa não suspensa têm valores quantitativos bem diferentes, elas reagem de forma diferente às irregularidades. Suas frequências naturais são bem distintas, porém proporcionais.
Estas diferenças, por si só, dificultam o casamento perfeito das forças de reação de mola e amortecedor, de modo a obter controle total para todas as condições operacionais a que está exposta a suspensão.
Desenvolver a calibração desses elementos da suspensão com curvas de forças fixas é interessante porém trabalhoso e consegue, no máximo, um compromisso para o público-alvo do veículo. Agrada à média.
Décadas de evolução
Até o início dos anos 1920, as suspensões eram, literalmente, de carroça. Os veículos não passavam de carruagens a motor. Dessa época até meados dos anos 1950 ocorreu uma intensa diversificação dos sistemas, motivada principalmente pela adoção de borracha para aumentar a aderência entre roda (pneu) e solo, e pelo estudo de geometria da suspensão dianteira.
As suspensões tradicionais buscavam, como até hoje, compatibilizar a dualidade maciez-estabilidade por meio do estudo de geometria, cinemática (pontos de fixação dos componentes), suas formas e materiais, isoladamente ou como um todo.
O objetivo era, como ainda é, dar maior controle direcional, estabilidade e conforto de marcha, além de desgaste menor e mais regular dos pneus, de maneira a minimizar a variação da força de contato deste com o solo em qualquer condição.
Por sua vez, a produção em série exigiu novos conceitos de confiabilidade, custo (produção em larga escala), montagem e manutenção, obrigando a padronização de sistemas.
No entanto, desde o princípio era perceptível que configurações fixas de molas e amortecedores não atendiam por inteiro os anseios dos ocupantes do veículo.
Iniciaram-se os anos 1960 e era necessário interferir com alguma ação externa nas forças de reação das molas e amortecedores procurando adequar a suspensão às mais diversas condições de carga, velocidade, tipo de uso, piso, etc.
Multiplicaram-se as opções de mecanismos para alteração ou mesmo substituição por outros mecanismos atuadores para executar a mesma função, mas com opção de variação.
Desde um simples botão de regulagens nos amortecedores à troca das molas por bolsões hidropneumáticos controlados por válvulas mecânicas, as suspensões começaram a dispor de concepções mecânicas diversas e variáveis. Entretanto, eram passivas e sofriam de certa lerdeza inercial não compatível com a velocidade que as condições de uso exigiam.
A década de 1980 ofereceu novos recursos tecnológicos com a evolução da eletrônica. Possibilitou o gerenciamento computadorizado naqueles e em novos sistemas mecânicos, propiciando maior velocidade de resposta, além de praticamente dispensar a ação humana.
A partir daí, houve uma bifurcação tecnológica que existe até os dias de hoje.
As suspensões convencionais, mais baratas e elementares pelo exposto acima, seguiram caminhos cada vez mais apurados e precisos nos elementos e na geometria. São utilizadas em larga escala e não só nos veículos menos sofisticados.
Já as adaptativas, por conta do aprimoramento eletrônico com mais capacidade e velocidade de processamento, padeciam de sistemas mecânicos não compatíveis com este desempenho eletrônico.
Sua evolução se deu e ainda se dá pelo melhor sensoriamento das características desejadas, processamento rápido e ação em tempo real dos elementos modificáveis da suspensão.
Tornaram-se assim mais ativas e não mais tão passíveis da ação humana.
Corpo humano e as vibrações
No período dos anos 1970, o estudo do fator humano e sua relação com sistemas vibratórios (como os veículos) modificou o conceito de conforto veicular, aprimorou o de estabilidade e dirigibilidade e deu impulso a novas tecnologias tanto nas suspensões convencionais quanto nas adaptativas.
Há muito se sabe que os efeitos de vibrações e oscilações agindo diretamente no corpo humano, e indiretamente em seus órgãos, causam desconfortos, cansaço e podem ser graves a ponto de causar danos físicos. Já tratei desse tema aqui nesta coluna no artigo Ás do volante.
Como tem massa muito menor que a massa suspensa, o corpo humano e seus órgãos são a parte mais sensível e frágil do conjunto homem-máquina.
Assim é que, quanto mais neutra e parada a massa suspensa em qualquer situação em relação aos movimentos da não suspensa, mais favorecidos serão os ocupantes. Esta é a noção de conforto veicular.
E a dirigibilidade? Deve ser a máxima possível dada pela carroceria com mínimo movimento e pneus com o máximo de contato constante com o solo em qualquer manobra.
Efeitos, causas e ações
O desenvolvimento das suspensões convencionais se dá em função dos efeitos e causas da reação dos seus componentes e as consequências sentidas pelo usuário. São passivas, e não se adaptam às condições que encontram pela frente.
Como exemplo, a situação em que repentinamente nos deparamos com um buraco daqueles capazes de estourar pneu e quebrar roda numa rodovia de boa qualidade, à noite. Neste tipo de suspensão, tudo depende de nossos instintos, experiência e capacidade de reação.
Nas suspensões adaptativas, os parâmetros dos componentes podem ser alterados em resposta (semiativas) ou em preparação (ativas) às mudanças nas condições de condução e operação do veículo. Elas se adaptam nos quesitos predeterminados em seu projeto.
A Fórmula 1 as introduziu nos anos 1980, mais exatamente pela equipe Lotus em 1987. A de maior sucesso, entretanto, foi a ativa da equipe Williams e que fez com que Ayrton Senna o chamasse de “carro de outro planeta”.
Naquele exemplo, em função de nossas reações e dos sensores disponíveis, a suspensão adaptativa semiativa se adaptaria imediatamente à mudança de piso, o buraco, minimizando o descontrole e desconforto. Por sua vez, a ativa se prepararia para atravessar a situação com o mínimo de impacto.
Quanto maior a variação de condições de uso de um veículo, mais apropriado aplicar uma suspensão adaptativa. Se pudermos conseguir ações de a cada instante a melhor constante elástica de “mola” conjugado a melhor carga de “amortecedor”, então teremos otimização das relações custo-benefício e conforto-dirigibilidade.
O tripé da inteligência artificial
Via sensoriamento e processamento eletrônico foi possível dar “vida” ao sistema variável e torná-lo “inteligente” agindo diretamente sobre as causas e efeitos das movimentações transmitidas aos ocupantes.
Surgiu um tripé de componentes que lhe dão sustentação e permitem ação em loop coerente.
Na primeira “perna” temos os mecanismos de ligação roda-carroceria; desde amortecedores e molas convencionais, mas com alguma forma de ajuste da constante elástica, até sistemas de atuadores eletro-hidráulicos ou hidropneumáticos substituindo totalmente a “dupla dinâmica”. Estes mecanismos ganharam muito em velocidade de resposta e precisão ao longo das últimas décadas.
A suspensão hidropneumática ativa (Hydroactive) do Citroën Xantia de 1991 é o primeiro exemplo de aplicação com longo tempo de existência.
A segunda “perna” do tripé visa substituir os excelentes, porém subjetivos, sentidos humanos. Sensores de parâmetros da dinâmica veicular e da relação do corpo humano com ela. Parâmetros estes sobre os quais se queira agir através de alterações no comportamento da suspensão.
Inicialmente mecânicos e em número reduzido, transformaram-se em preciosidades eletrônicas na captação e medição de fenômenos da Física tais como: massa, tempo, distância, ruído, vibração, temperatura, etc. São dos mais variados tipos de funcionamento – acústico, magnético, indutivo, térmico, ótico, radar, etc. — e devem transformar sinais eletromecânicos em sinais elétricos com informações úteis.
Hoje em dia, praticamente qualquer veículo, mesmo mais simples, tem vários atuando em tempo integral.
Qualquer um dos outros sistemas veiculares tem seus próprios sensores e aplicação específica. Exemplos? Alguns: câmbio (trocas de marcha), direção (posição do volante), freios (ABS), motor (velocidade, rotação, injeção), carroceria (aproximação, distância, ponto cego, mudança de faixa) e por aí vai.
A terceira e essencial “perna” é aquela que permite trabalhar com as necessidades e resultados das outras duas…e provendo o sistema de harmonia. É o módulo eletrônico com a central computadorizada de processamento de dados.
Trata os sinais de entrada vindos dos sensores, processa informações através de comparações predeterminadas e envia sinais de saída com instruções aos atuadores variáveis da suspensão.
Simples assim? Nem tanto!
Estratégia de controle
Com três “pernas”, torna-se imprescindível que haja equilíbrio. Neste caso, a base de apoio é a estratégia de controle programada no módulo de processamento. Nela reside o fundamento de técnica e tecnologia da suspensão adaptativa “inteligente”.
Mas foi interessante como chegamos nisso e até passamos à frente.
A acirrada competitividade na indústria automobilística gerou ampliação nas engenharias. Hoje em dia, praticamente não há mais generalistas dada a capilarização das especificidades de cada projeto na arquitetura de um veículo. Temos muito mais especialistas em cada sistema veicular.
Os desenvolvimentos correm em paralelo, provocando o surgimento de tripés específicos para cada um dos inúmeros sistemas e subsistemas de um veículo. A complexidade cresceu sobremaneira.
Há no mínimo um ou mais tripés para cada sistema. Um para freios, um para direção, um para transmissão, um para direção, um para carroceria, um para entretenimento e assim por diante, e, claro, um para suspensão.
Veículos mais sofisticados têm dezenas de módulos de controle eletrônico e quilômetros de fiação elétrica que já começa a ser trocada por fibra ótica.
A grande sacada foi integrar todos esses módulos numa só ECU – Electronic Control Unit (Unidade de Controle Eletrônico) através de linguagens como a CAN – Controller Area Network (Rede de Controle de Área), tratar os sinais de todos os sensores disponíveis e aplicar em um dado sistema, mesmo que aqueles sensor e módulo não estejam relacionados a esse sistema.
Aliás, foi no aproveitamento dos sinais de sensores já disponíveis nos diversos sistemas dos veículos, e integrando-os entre si, que a evolução da suspensão adaptativa se tornou exponencial. Ideias, imaginação e a necessidade dos engenheiros e consumidores se encarregaram de acrescentar outros tantos mais ao veículo. Hoje são centenas num só veículo.
Esta é a estratégia e a real “inteligência” dos veículos atuais. Isto permite que os diversos sistemas “conversem” entre si.
Exemplo: um sensor de estacionamento (aproximação, na carroceria) avisa que é necessário alterar a constante das molas e as cargas dos amortecedores, pois a velocidade (outro sensor) do veículo na estrada é alta para a situação e indica que é necessário acelerar. Basta criar uma estratégia de controle para isso, utilizando o que já está disponível, e introduzi-la na configuração do módulo central.
O tripé pode até ser chamado de inteligente, e dá para considerar que é; mas são da engenhosidade humana a estratégia e o controle.
MP