Na experimentação de veículos é bastante comum a presença do “carona”. Normalmente é o interessado direto no desempenho do veículo, ou seja, o avaliador ou engenheiro da fabricante. Também dirige. Como copiloto, as orientações, rota e foco do trabalho conjunto são determinados por ele. É quem “canta a pedra”. Lógico que aquele que dirige, representando o fabricante do componente sob teste, também “apita”. Mas o idioma influi, e muito.
Em certa oportunidade, desenvolvendo amortecedores para uma fabricante com fábrica e centro técnico na Argentina, um colega nosso foi trabalhar com um simpático hermano num roteiro misto que incluía urbano e rodoviário como parte das atividades. Aquelas condições normais de qualquer motorista em seu veículo com sua família no dia a dia.
Espanhol para cá, “portunhol” para lá, eles foram minimizando o lapso de comunicação e seguiam com o ride test (teste de rodagem) fazendo várias passagens na rota estabelecida.
De quando em vez, o hermano soltava um”Mira el buco!” e nosso colega, pensando tratar-se de desviar de um buraco, evitava-o, e recebia um solene ”No, no, no!”. Em outras oportunidades vinha um “Mira, el buco”; como a entonação era outra (note a grafia), nosso colega, desta vez, deixava o carro passar no buraco, e ouvia outro enfático “No, no, no!
Já pelas tantas, e depois de alguns desses descompassos gramaticais e fonéticos, eles já se entendiam e alinharam que “Mira el buco” era para apontar para um buraco e passar por ele. Já o “Mira, el buco” na verdade era para desviar das réplicas da superfície lunar.
Questão de comunicação. Entretanto, até hoje não estamos muito certos de que buco seja mesmo buraco. Mas a calibração dos amortecedores ficou OK.
Quem não se comunica…
Se uma simples vírgula pode causar distorção nas decisões tomadas em relação a um componente, que dizer no todo do projeto de um sistema veicular como a suspensão? Mais ainda quando esse sistema tem por essência justamente a comunicação (ou filtragem dela) entre o que se passa no piso e o que não se deve passar para os ocupantes do veículo.
Lembro-me bem de um amigo satirizando o “engenheirês” e chamando a suspensão simplesmente de molejo, como era no princípio dos tempos automobilísticos. Desta simplicidade linguística vem o fato de que suspensão era para ser simples mesmo; mas evoluiu, e bastante. Ainda bem!
Lá nos primórdios, a carroceria das carruagens puxadas por cavalos ficava suspensa (daí o nome utilizado até hoje) por feixes de mola que a ligavam aos eixos. Isto não se aplicava às carroças de carga, onde a carroceria ficava diretamente fixada aos eixos. Nestas, a velocidade era mais baixa, os movimentos eram menores e a exigência de conforto não era a prioridade.
Entretanto, quando os motores começaram a substituir os cavalos e a velocidade aumentou, a função mais básica de filtragem, evitando que o efeito das irregularidades chegasse aos ocupantes e cargas (através da carroceria, suas vibrações e movimentos) foi comprometida e exigiu mais “comunicação” para conciliar conforto e dirigibilidade.
Na verdade, a evolução começou já antes mesmo da impulsão automotriz, pois não dá para pavimentar toda superfície da Terra. Se todos os pisos fossem lisos e nivelados, e os deslocamentos em baixa velocidade, a ligação roda-carroceria podia continuar rígida e simples como nas carroças.
Os três mosqueteiros, que são quatro
O famoso bordão “Um por todos e todos por um” se aplica muito bem ao conjunto de três elementos que compõem a suspensão veicular. Ou seriam quatro?
Temos os elementos elásticos (por atenderem a Lei de Hooke) mais comumente chamados de molas. A ligação elástica, por molas classificadas basicamente em tipo de flexão ou de torção, é responsável pela absorção das imperfeições, evitando a transmissão integral dos impactos ao conjunto da carroceria.
Temos os elementos amortizadores, com nome similar. Os amortecedores, equivocadamente chamados pelos americanos de shock absorber (absorvedor de choques), na verdade “apenas” controlam a energia armazenada nas oscilações das molas, rodas e carroceria e sua distribuição no conjunto.
Completando o trio, temos os elementos de ligação. São aqueles que, como o nome já diz, têm a função de ligar cada roda a um ponto específico da estrutura (seja ela tipo chassi com carroceria ou monobloco) para que esta fique suspensa. Dos mais simples aos mais complexos sistemas, estes elementos são dispostos em ancoragem com geometria que determina são só a distribuição das forças atuantes no sistema, mas também os movimentos de cada roda em relação ao piso e à carroceria.
Numa discutível condição de quarto elemento está o pneu. Na verdade, tanto é elemento elástico como amortizador e até mesmo, em algumas aplicações, elemento de ligação. É o D’Artagnan do conjunto.
Quando atuando como elemento elástico, o pneu é responsável pelos primeiros contatos e filtragem fina das asperezas advindas do piso. Quando atua na função de amortecedor, o pneu auxilia na dissipação daquela energia em forma de calor. Em vários casos ainda serve como parte da fixação.
Em veículos como os tratores, os pneumáticos executam relativamente bem todas as funções da não existente suspensão tradicional. Isto por conta das baixas velocidades e dispensa de conforto, como nas carroças de antigamente. Mas a sua função majoritária é a aderência ao solo e garantir a trajetória do veículo em qualquer velocidade e condição de carga. Tópico essencial para o desenvolvimento da suspensão como a temos hoje, particularmente dos elementos de ligação, como veremos adiante.
Obtendo mais do mesmo
Até o início do século passado, a suspensão permanecia basicamente a das carruagens, embora estas já passassem por transformações profundas para receber motor e rodas distintas daquelas de quando puxadas por cavalos. Em meados do século, dada a diversidade de fabricantes, modelos e aplicações de veículos, também ocorreu a grande busca pela já mencionada conciliação de conforto e dirigibilidade.
Mas os altos custos de produção de cada invento em pequena escala por seu respectivo fabricante, sem falar nos problemas de confiabilidade e de manutenção, engavetou muitos bons projetos. Esta tendência somente seria revertida, e muitos deles retomados, apenas na segunda metade do século justamente pela produção em larga escala e a consequente redução de custos com aumento da confiabilidade.
Em sua maioria, são dessa época sistemas como a De Dion, a McPherson, braços sobrepostos, braços arrastados ou semiarrastados, multibraço, semieixo oscilante, quadrilátero deformável, etc.
A proliferação de esquemas construtivos retomados e aperfeiçoados avançou por toda a segunda metade do século. E acompanhada daqueles que iam além do elementar e tornavam a suspensão adaptativa. Com ou sem o apoio da eletrônica, e passando por sistemas como a suspensão a ar e a do projeto Bose (que troca mola e amortecedor por um único componente elétrico para as duas funções), as geometrias e os elementos de ligação e fixação se tornaram cada vez mais eficientes.
Mas mais eficientes em quê e para quê? A resposta está na segunda função que a suspensão precisa desempenhar, a de manter as rodas em posição adequada em retas e, principalmente, em curvas. Isto é mandatório para que a condição de distribuição das forças através da impressão digital do pneu no solo seja a mais equilibrada e constante possível, propiciando assim mais estabilidade e dirigibilidade.
É mais do mesmo. Desde as primeiras suspensões de eixo rígido (real ou virtual), onde os movimentos de uma roda implicam diretamente nos movimentos da outra desse eixo, e passando pela outra categoria de sistemas (os que têm as rodas independentes umas das outras), os elementos de ligação e fixação seguem buscando a melhor geometria tanto no trem dianteiro como no traseiro.
Buscando neutralidade
Relembrando que Cinemática é a parte da Física que estuda os movimentos dos corpos, sem levar em consideração massas e causas, fica perceptível que as rodas tenham as mais variadas trajetórias em seus movimentos (principalmente os verticais) em relação ao solo e ao chassi por conta de tantos e diversos sistemas de ligação. Sem falar na contribuição do sistema de direção ao qual estejam ligadas.
Primeiramente, a fixação dos elementos da suspensão ao chassi ou monobloco deve ser a mais rígida possível para minimizar os pequenos deslocamentos e variações de geometria. Mas não à ponto de ampliar vibrações e choques. Acuidade geométrica é mandatória no automobilismo, mas conforto também é meta quando se trata de uso convencional. Articulações elásticas (buchas) são o meio-termo.
Já os materiais, formas geométricas e disposição dos braços de ligação devem levar em conta os impulsos provenientes do perfil do piso e suas consequências cinemáticas nas rodas, tanto dianteiras como traseiras. Isto seja em linha reta como, especialmente, em curvas.
Além de evitar deslocamentos transversais do pneu durante a trajetória em linha reta, um bom sistema de suspensão deve minimizar as variações de câmber. Estas últimas provocam tendência de giro da roda em torno de seu próprio eixo vertical (efeito giroscópio) e consequentes vibrações no volante.
Vale acrescentar ao que já comentamos aqui sobre curvas perfeitas, que a essência está na postura do “quarto elemento”, o pneu, antes, durante e após a trajetória curvilínea. Pois em curva, tudo é mais delicado e complicado para buscar a neutralidade do veículo.
Espera-se de um bom projeto que a variação de câmber, e consequentemente dos ângulos de deriva, seja a mais progressiva possível nos quatro pneus. Quando iniciamos uma curva, a inércia tende a nos manter na linha reta em que vínhamos e, com isto, aumenta a carga nas rodas do lado externo; esta transferência deve ser linear e progressiva. Ao iniciarmos o retorno à linha reta, a transferência ocorre em sentido contrário. Ou seja, para manter o veículo neutro sem tendências subesterçantes ou sobre-esterçantes, é primordial que os elementos de ligação controlem os ângulos da geometria, principalmente o câmber.
Em adição, um adequado estudo para localização dos pontos de ancoragem dos elementos de ligação também conduz para estabilidade, manutenção da trajetória e nivelamento em frenagens e acelerações.
Ou seja, passando ou não pelos bucos a suspensão deve fazer bem o seu trabalho.
MP