Em 22 de dezembro de 1945 levantava voo pela primeira vez um revolucionário (para a época) monomotor, quadriplace. O que a equipe que o projetou (liderado por Ralph Harmon) e mesmo o lendário Walter Beech e sua esposa (e também parte da administração da empresa), Olive Ann Beech, não esperavam com toda certeza, é que a compacta aeronave de metal fosse sobreviver tanto tempo, virar o século e não ter prazo para sair de linha! Trata-se do Beechcraft Bonanza, a aeronave há mais tempo em produção no mundo.
O nascimento
Desde 1944 já se previa o final da Segunda Guerra Mundial para breve e a consequente mobilização do mercado civil de aeronaves. Até aquela data, o que existia de aeronaves de pequeno porte seguiam a receita básica de tubo e tela com estrutura em madeira nas asas, tracionada ou por diminutos motores boxer na linha do Piper Cub — Piper PA-16, Stinson 105 Voyager, ou de aeronaves de maior porte, mais pesadas, equipadas com enormes motores radiais, como era o caso do Stinson Reliant, projeto datado de 1930.
A Beechcraft, fundada por Walter Beech e sua secretária (e esposa) Olive Ann Beech em 1932 em Wichita, Kansas, fez, como sua primeira aeronave o modelo 17 Staggerwing cujo primeiro voo se deu ainda naquele ano, ficando em produção até 1949. O Beech Staggerwing era um elegante biplano, com asas e acabamentos em madeira, fuselagem em tubos de aço soldados, totalmente entelado. Era equipado com um motor que poderia ser Wright, Jacobs ou Pratt&Whitney com potências entre 225 e 450 hp, dependendo da versão.
A empresa já em 1937 lança os famosíssimos Beech 18 “Bi” (no Brasil recebeu a alcunha de “mata 7” por conta de sua precária capacidade de voo monomotor), totalmente metálica, com motores radiais Wright R-760 de 7 cilindros, 12,4-L e 350 hp, aeronave esta cuja produção excedeu os 9 mil exemplares entre 1937 e 1970.
Todavia, no pós-guerra o mercado civil já não era mais aquele dos anos 30, havia uma enorme quantidade de pilotos voltando da guerra e, as aeronaves da década de 30 eram caras de serem produzidas e comercializadas.
É neste contexto que a partir de 1944, com o aval de Walter Beech, a equipe de engenheiros liderados por Ralph Harmon projeta e constrói uma aeronave inteiramente nova, concebida já com a ótica de produção em massa, coisa que o modelo 17 não possuía.
O resultado foi o modelo 35, um elegante avião quadriplace de asa baixa, inteiramente metálico, trem retrátil, e com leme/estabilizador em uma única peça em “V”, chamado de “ruddervator” (aglutinação das rudder e elevator – leme e estabilizador), visando justamente redução de arrasto. Para extrair desempenho, a equipe se valeu do uso de estudos em túnel de vento e o resultado não poderia ser melhor.
Aliás, o esforço em redução de arrasto estava até mesmo nos detalhes, como os rebites tipo flush (rentes à superfície) e o trem de pouso totalmente fechado quando recolhido. Equipado com um motor Continental E-165, 6 cilindros e 7,7-L de 165 hp a aeronave tinha velocidade máxima de 175 mph (281 km/h), um grande feito, considerando que até então, as aeronaves para atingirem tal velocidade precisavam de motores maiores.
Apesar disso, o Beech 35 era não menos robusto. As asas possuíam longarina dupla, a fuselagem já tinha a preocupação quanto a impactos e o motor era montado no prolongamento da estrutura da fuselagem.
E a aeronave, embora tenha voado em 22 de dezembro de 1945, teve sua certificação e comercialização em 1947, estabelecendo novos padrões para a indústria aeronáutica leve, oferecendo desempenho superior custando um terço do preço de um biplano Staggerwing, além de muito mais econômico de se operar.
A guisa de comparação, o Bonanza custava US$ 7.975,00 em valores de 1946 enquanto o G17, a última safra de Staggerwing, US$ 29.000,00 (US$ 96.526,80 e US$ 351.006,56, respectivamente, em valores atualizados de 2020).
E embora tenha começado sua produção em 1946, a certificação e venda só iniciou em 1947, sendo logo bem recebido pelo mercado, sendo produzidos 1.486 unidades da versão inicial entre 1947 e 1948, com pequenas diferenças entre elas, o que incluiu o ganho de 20 hp no motor, que passa a ser o Continental E-185.
E tal qual acontece na indústria automobilística, pequenos incrementos foram sendo incorporados ano após ano. Em 1949 é lançada a versão A-35 cuja principal diferença do modelo original era a bequilha comandável (no 35 comum, virar a aeronave em solo era feito com o uso dos freios individuais nas rodas do trem principal) e a estrutura de asa, que assume a forma definitiva de longarina em substituição ao formato tubular.
Da versão A até a versão K35 a aeronave permaneceu a mesma, com pequenas modificações estéticas (adição da terceira janela), ganho de peso máximo de decolagem, potência de motor (que chegou a 250 hp em versão injetada do tradicional Continental O-470 e 7,7-L), além de incremento na capacidade de combustível para 50 galões/189 litros (originalmente de 40 galões US, 151 litros).
O K35 (Foto: euroga.org)
A versão M35 ganha 20 cm de envergadura (de 10 m para 10,2 m) e um quinto banco opcional mas é na versão S35 que o Bonanza da família 35 adquire sua forma final: Equipado pela primeira com o motor Continental IO-520 de 8,51 L, 6 cilindros, de 285 hp, o S35 tem sua fuselagem alongada em 0,41 m (de 7,65 m para 8,06 m) e se torna uma aeronave de até 6 lugares, ganhando a terceira janela no formato trapezoidal.
A versão seguinte a V35 inaugurou o para-brisa inteiriço de maior área e outros refinamentos menores, podendo ser equipado com motor turbocarregado V35TC. Permaneceu em produção até 1982.
O sucesso do Bonanza foi tamanho que derivaram duas novas versões da aeronave: A família 33 e a 36.
A família 33, concebida em 1959 como concorrente do Cessna 182, consistia basicamente no Beech 35 com cauda convencional. Inicialmente concebido como uma versão simplificada e compartilhando do mesmo certificado do modelo 35 (era chamado de Beech 35-33 Debonair), ganhou seu próprio certificado a partir da versão E33, permanecendo em produção até 1994.
Já a versão 36 consiste no modelo alongado do Bonanza, com 8,38 m de comprimento (frente aos 7,65 m do V35), tornando-o verdadeiramente um avião de 6 lugares.
Inicialmente equipado com o motor Continental IO-520 de 285 hp, chegou a ter versões turbocarregadas, todavia hoje apenas a G36 (só houve os modelos 36/A36/B36TC e G36) permanece em produção, já adotando o glass cockpit Garmim G1000.
A família Bonanza também deu origem a outras aeronaves derivadas como os bimotores Modelo 50 Twin Bonanza, o modelo 95 Travel Air (que depois viria a se tornar o Baron — ainda em produção), além do monomotor de treinamento militar Beech 45 T-34 Mentor, com capacidade acrobática, inicialmente concebido com um motor Continental O-470 de 225 hp, chegando, em suas ultimas versões, a ser equipado com um turbo-hélice Pratt&Whitney PT-6 com potência no eixo declarada de 400 hp.
No campo civil, os Beech E33 e F33 na versão C possuía fuselagem reforçada, com chapas de maior espessura sendo homologados para manobras acrobáticas sendo inclusive operado como aeronave de treinamento militar pela Força Aérea Mexicana.
O preço do pioneirismo
O Beech Bonanza foi, sem dúvida, um pioneiro em seu tempo e como todo pioneirismo, acabou pagando seu preço pela inovação.
Num mercado com pilotos acostumados a voar aeronaves de baixo desempenho, o número de acidentes envolvendo o Beech Bonanza, em especial os de cauda em V, foi muito alto, rendendo-lhe o apelido de “the forked-tail Doctor killer”, ou o assassino de doutores da cauda bifurcada, dada a quantidade de proprietários que pilotava seus próprios Bonanzas.
As razões para o número de acidentes com o Bonanza serem significativamente altas se resumem basicamente em dois fatores: treinamento insuficiente em situações de clima adverso e um comportamento mais “bravo” da aeronave em voo.
O Bonanza de cauda em V tem uma estabilidade longitudinal menor que seus congêneres de cauda convencional. Uma vez entrando em situação de mau tempo, acontecia de muitos pilotos entrarem velozes e acabarem perdendo o controle da aeronave. Por ser um avião de comandos responsivos e leves, acontecia uma recuperação abrupta impondo elevadas cargas “g” podendo levar a quebra da cauda da aeronave.
Contribuia para essa instabilidade o fato do Bonanza ter um amplo passeio no centro de gravidade e, por erro de carregamento, a concentração de peso na parte traseira da aeronave deslocando o centro de gravidade de maneira acentuada para o limite traseiro, diminuindo a ação do “ruddervator” e por consequência, da estabilidade longitudinal do avião.
O “crescimento” do Bonanza em termos de motorização e peso máximo de decolagem levou a um crescimento do “ruddervator” para a frente da longarina da superfície, contribuindo também para os problemas estruturais. Assim, uma modificação interessante surgida consistiu na fixação do bordo de ataque do “ruddervator” as longarinas do cone de cauda.
A própria cauda em V foi alvo de muitos testes e modificações por diretrizes de aeronavegabilidade (AD´s, Airworthiness Directives): um desbalanceamento dos comandos (podia ser até em virtude de pintura) podia levar a uma situação denominada vibração aeroelástica e a quebra da cauda.
Entretanto, como qualquer aeronave, quando operada dentro de seus limites legais e preconizados pelo fabricante, o Bonanza da família 35 é uma aeronave extremamente segura, robusta e de um ótimo desempenho. Talvez, mais exigente no trato, quando comparado aos seus irmãos de cauda convencional, mas uma aeronave excepcional…e com o charme da cauda em V!
DA