Há certas marcas que transcendem a expressão de batismo de um produto para se transformar em sinônimo do próprio produto. Gillete virou sinônimo de lâmina de barbear; Coca-Cola, de refrigerante, e BiC, de caneta esferográfica.
E tal qual os exemplos anteriores, Learjet virou sinônimo de jato executivo, aeronave de luxo almejada por cantores, jogadores de futebol, empresários bem-sucedidos, enfim, pessoas que queiram (e podem!) desfrutar do luxo de cruzar os céus com todo o conforto e independência, inclusive de horário, de um avião particular, voando em níveis de voo e velocidade de aeronaves comerciais com motores a reação.
A gênese
O “pai” do Learjet foi nada menos que Willian Powell Lear, ou simplesmente Bill Lear (26/06/1902-14/05/1978), um inventor e empresário americano — difícil ser os dois na mesma pessoa, mas Bill Lear conseguiu.
Lear nasceu em 1902 e era um autodidata. Formado em engenharia, um dos seus primeiros trabalhos foi desenvolver um transformador que eliminava a necessidade de baterias em aparelhos de rádio. Posteriormente começou a desenvolver trabalhos relacionados ao rádio, com os primeiros passos na miniaturização de componentes elétricos. Junto com seu amigo Elmer Wavering construiu o primeiro autorrádio, chamando a atenção de Paul Galvin, proprietário da Galvin Manufacturing Company.
A Galvin Manufacturing Company, com a fabricação dos autorrádios, foi rebatizada de Motorola, empresa que até hoje conserva o mesmo nome!
Na aviação, Lear começa seus trabalhos na aviação durante a década de 1940 com a Lear Avian, desenvolvendo pilotos automáticos e os RDF — Radio Direction Finder, hoje conhecido como ADF.
O ADF, abreviatura de Automatic Direction Finder, atualmente em desuso, é um instrumento que equipa as aeronaves e que quando sintonizada uma estação emissora de ondas de rádio entre 190 kHz e 1.750 kHz), indica a direção de onde são emitidas as ondas. Por englobar uma faixa de frequência que eram empregadas pelas rádios AM, essas emissoras eram usadas como meio para radionavegação. Essa é a explicação de as rádios AM (quando existiam — criminosamente extintas, infelizmente) tinham que se identificar, de tempos em tempos “ZYK-695, Radio X, Y kHz, cidade Z”.
Em 1960 Bill Lear muda-se para a Suíça onde funda a SAAC – Swiss American Aviation Company, e se valendo de uma equipe que outrora trabalhara no caça suíço FFA – Flug – und Fahrzeugwerke Altenrhein P-16, aeronave que voou pela primeira vez em 1955 e teve apenas cinco protótipos construídos, desenvolve o SAAC-23, um jato para até 9 pessoas, diretamente derivado do P-16.
Nesta época havia o desenvolvimentos de pequenos jatos voltados para o mercado executivo. A De Havilland inglesa (posteriormente Hawker-Siddeley e British Aerospace) começa a desenvolver o modelo 125, enquanto na França trabalhava-se no Dassault Falcon 20.
A aeronave, entretanto, não saiu do papel: Lear se deparou com a burocracia e a excessiva regulamentação suíça em termos de direitos trabalhistas e processos administrativos e a ideia original de duas linhas de montagem — uma na suíça pela Flug – und Fahrzeugwerke Altenrhein que faria componentes do SAAC 23 baseados no caça P-16, e outra nos Estados Unidos, acabou não se concretizando, fazendo Lear se concentrar apenas nos Estados Unidos, mais precisamente em Wichita, no estado do Kansas.
Assim, Lear criou a Lear Jet Industries e começou a trabalhar novamente no pequeno SAAC-23, que teve a fuselagem e empenagem reprojetadas, dando origem ao Learjet 23, cujo protótipo fez seu primeiro voo em 6 de outubro de 1963.
O pequeno jato tinha 13,10 m de comprimento e 10,82 m de envergadura e podia levar 8 ocupantes incluindo piloto. Era dotado de dois motores turbojato GE CJ-610 de 2.850 llibras-força (lbf) de empuxo, motores esses que nada mais eram que a versão civil, sem pós-queimador, do motor J85 que equipava nada menos que o caça Northrop F-5. O desempenho também impressionava, cruzando a mais de 800 km/h de velocidade de cruzeiro e com uma razão de subida de 6.900 pés por minuto (2.103 metros por minuto).
Embora no inicio da década de 1960 todos vissem a ideia de Willian Lear com ceticismo, as vendas do Learjet surpreenderam e mostraram a visão de seu criador com a boa aceitação no mercado, se tornando objeto de luxo e status. Frank Sinatra foi um dos primeiros clientes do Learjet
Todavia, nem tudo eram flores: o pequeno jato era uma aeronave de pilotagem complicada e devido ao seu alto desempenho requeria técnica apurada. E esse alto desempenho cobrou seu preço com um expressivo número de Learjets 23 envolvidos em acidentes e incidentes nos três primeiros anos de vida da aeronave.
Os Learjets da série 20, em especial os 23 e 24, são aeronaves consideradas “quentes” em termos de operação e estiveram envolvidas em uma série de acidentes e incidentes ao longo de sua operação. Um dos mais conhecido e incrível deles era a perda de controle em voo de cruzeiro. O que acontecia era que, em voo de cruzeiro, os pequenos turbojatos CJ610 podiam levar o Learjet a uma situação de excesso de velocidade (overspeed) a ponto de existir até um aviso de excesso de velocidade no painel.
Aí, seja por desatenção do piloto, seja por negligência pura e simples (havia um jeito de desativar o aviso), o Learjet excedia sua velocidade máxima e as asas simplesmente deixavam de produzir sustentação por já entrar em situação transônica (quando o fluxo de ar em PARTES da aeronave — no caso as asas — excede o valor da velocidade do som mesmo o conjunto estando em velocidade abaixo da do som), no fenômeno conhecido como estol de velocidade.
A aproximação de pouso da série 20 também se dava em velocidade elevada (a velocidade de estol sujo — flapes e trem de pouso abaixados é de 185 km/h), fazendo-a uma aeronave de operação exigente, diferentemente do Cessna Citation, mais lento seja em voo de cruzeiro, seja em aproximação, mais dócil, rendendo até o jocoso apelido de Cessna “Slowtation” (slow, de lento) enquanto o Learjet era o “Fearjet”! (fear, de medo).
Importante salientar que na série Longhorn (com winglets), a mudança no bordo de ataque das asas permitiu comportamentos muito melhores em baixa velocidade, adicionando muito mais segurança a sua operação.
Ao modelo 23 se sucederam as versões 24 (1966), 24D e 25 (1967), sendo estas duas ultimas versões as primeiras com janelas arredondadas, e a segunda, uma versão alongada do modelo 23 e 24 para até 10 ocupantes incluindo piloto e copiloto.
Em 1967 Bill Lear vende 60% da Lear Jet Corporation para a Gates Rubber Company (a mesma Gates fabricante de correias automobilísticas), operação essa que termina em 1969 com a Gates encampando toda a Lear Jet formando a Gates Learjet Corporation. Bill Lear no entanto, ainda tentou uma nova incursão no meio aeronáutico adquirindo unidades de um pequeno jato denominado Foxjet, aeronave da categoria dos Very Light Jets que efetivamente só tomaria corpo 30 anos depois.
Ja nas mãos da Gates, aperfeiçoamentos começam nos jatos Learjet: Os motores CJ610 todavia eram muito ruidosos e gastadores, mesmo se falando de anos de 1960/1970 quando ainda não se falava muito de ruídos e consumo e por essa razão em 1971 surge o Learjet 25BGF — a aeronave nada mais era que um Learjet 25 equipado com os turbofans Garrett TFE-731, o primeiro turbofan de engrenagens produzido e que havia feito seu primeiro funcionamento apenas um ano antes. O resultado foi uma aeronave superior, mais silenciosa e econômica, o que levou a Gates a aprimorar o modelo 25BGF e com isso fazer a versão 35,que passa a ser comercializada em 1973.
A versão 35 é facilmente distinguível das antecessoras pelo diâmetro dos motores, significativamente maiores que os empregados na versão 25.
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Também tendo o modelo 25 como base, a Gates fabrica em 1977 os modelos 28 e 29, conservando a fuselagem do modelo 25 mas empregando um novo projeto de asas, sem os marcantes tanques de ponta de asa, e em seu lugar, empregando winglets (apelidada de Longhorn wings— asas com grandes chifres) e um bordo de ataque modificado, visando melhorar as características de voo em baixas velocidades.
Os modelos 28 e 29 foram pouco produzidos (apenas 9 unidades) por empregarem motores mais gastadores e ruidosos, sendo que a empresa fabricava o modelo 35, com motores mais modernos.
Em 1977 a Gates anuncia o modelo da família 55: com motores TFE-731, possuía as asas com winglets e capacidade para até 12 ocupantes incluindo os pilotos.
Em 1987 voa a penúltima das versões consideradas “originais”, descendentes diretas do modelo 23: o modelo 31. Basicamente um descendente direto do modelo 28, o modelo 31 era dotado dos turbofans Garrett idênticos aos dos modelos 35 e 55, mas apresentava como destaque os deltafins na cauda (as duas aletas embaixo do leme). O objetivo dessas aletas era permitir uma sustentação da cauda na situações em que o estabilizador entrasse na esteira de turbulência da asa (o temido estol profundo — deep stall).
Em 1990 surge a versão 60, esta a ultima a conservar o projeto básico nascido no modelo 23: consistia numa versão 55 alongada, com aprimoramentos aerodinâmicos, para 10 pessoas (incluindo piloto e copiloto). Equipada com motores Pratt & Whitney PW305A, tinha alcance estendido para até 4.150 km cruzando a 810 km/h de velocidade de cruzeiro.
Também foi em 1990 que a Learjet Corporation deixa de pertencer a Gates Rubber Company e passa a ser propriedade da canadense Bombardier Aerospace.
De posse da Learjet, a Bombardier praticamente parte do zero e reprojeta o pequeno jato, conservando apenas a estética original mas com estrutura completamente remodelada e homologada nos requisitos mais rígidos, criando inicialmente o Learjet 45, uma aeronave para concorrer no segmento de jatos executivos leves, cujo primeiro voo se deu em 1995.
Em 2013 voa a ultima versão da linhagem Learjet: o modelo 70. Voltado para um segmento de jatos executivos de médio porte, tem capacidade para até 11 ocupantes (incluindo piloto e copiloto) e uma autonomia de 3.780 km.
Vale a menção de que tanto a versão 40/45 quanto a 70/75 são equipados com os turbofans com redução Honeywell (sucessora da Garrett) TFE731, já com gerenciamento eletrônico dos motores Fadec (full authority digital engine control).
Agora, em 2021, no entanto, a Bombardier anunciou que irá, até o final do ano descontinuar a linhagem Learjet e focar nos modelos Challenger e Global, jatos de maior capacidade e autonomia (o Bombardier Global, por exemplo, tem mais de 9.500 km de autonomia!), dentro de uma estratégia em que a companhia focará apenas nesse segmento.
A empresa vendeu a divisão ferroviária para a Alston, a divisão de jatos comerciais (C-Séries – concorrente direto dos E-Jets da Embraer) para a Airbus que os batizou de A220, e a de turbo-hélices da familia Dash-8 Q400 para a Longview Aviation Capital, que ressuscitou a família De Havilland Canada.
E assim, mais uma página se fecha na história da aviação executiva, com o encerramento da família Learjet.
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DA
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