Caro leitor ou leitora,
Acho que todos conhecem o jornalista Luís Fernando Silva Pinto, o Nando, por ter sido um dos principais repórteres da TV Globo. Paulistano, hoje com 66 anos, entrou para a emissora em 1976, onde trabalhou até dezembro de 2020. Foram 44 anos de grandes reportagens. Já em 1980 integrou uma das primeiras turmas do escritório de Londres e rodou o mundo. O que poucos sabem é que Luís Fernando é um verdadeiro autoentusiasta. Depois de conhecer a americana Lauren na Índia e se casar com ela em Londres, foram viver em Washington em 1986, onde tiveram dois filhos. Lá, ele envolveu-se com o automobilismo, primeiro como piloto e agora como piloto e instrutor. Estive com ele no mês passado e perguntei por que não escrevia sobre isso. Ele topou e o resultado está aqui, dividido em duas partes. É uma história empolgante e detalhada que os apreciadores de pilotagem, tenho certeza, adorarão. Em tempo: o Nando iniciou sua carreira como pupilo do querido mestre Luiz Carlos Secco, o “Seccão”, no jornal O Estado de S, Paulo. Eu também fui um dos muitos pupilos dele.
CL
ENSINAR – E APRENDER – NAS PISTAS AMERICANAS – PARTE 1
Por Luís Fernando Silva Pinto
O ALUNO
A curva 3 é o último desafio e eu não sei se devo repetir o comando pelo intercomunicador. Tracy, o meu aluno, tem que conquistar sozinho o desenho maroto dessa curva. É o único setor desse circuito que ele ainda não dominou. Eu fico torcendo, apesar de saber que mesmo não conseguindo, o desempenho dele terá sido excepcional. É que Tracy começou o fim de semana como um estudante 0-0. Nunca tinha entrado nessa pista. Só conhecia o traçado pela tela do computador. Não tinha noção da dimensão física do circuito, com os aclives e declives dos três quilômetros e meio do traçado, nem das inclinações diferentes em cada curva. Ele começou a aprender tudo isso ontem. Na chuva.
Essa é a oitava e última das baterias que temos desde que começamos. Nas anteriores, à medida que fui passando orientações a Tracy pelo intercomunicador entre os nossos capacetes, usei quatro palavras muitas vezes: “PATIENCE now” (paciência agora), com uma longa ênfase em “patience”, foi o que eu disse para lembrar que ele deveria se manter no lado externo da pista o máximo possível — até o momento preciso de apontar o carro para o interior de cada curva, atingindo o ápice e acelerando forte na saída. “Action NOW” (Ação agora), com forte ênfase na palavra “now”, foi o comando usado para enfatizar que a sequência de ações precisava ser rápida. Na pista, hesitação, mesmo momentânea, é inimiga do desempenho.
Durante várias voltas, enquanto Tracy tentou se aperfeiçoar na Curva 3, usei a frase para ele entender que acelerando forte depois da curva 2 e engatando a quarta marcha, ele tinha só uns dois segundos antes de — “Action NOW!” — frear, reduzir para terceira, tirar o pé da embreagem, liberar com suavidade o freio e apontar o carro para a entrada da curva 3. Como o ápice dessa curva é tardio e a pista é plana na saída, fazer bem a curva 3 significa resolver tanto a freada quanto a redução da marcha antes de começar a acelerar rumo ao ápice. Repeti “Action NOW” várias vezes, mas ainda não funcionou.
Mas uma vez, Tracy se atrasa na freada. Usa muita força, reduz a marcha tarde, solta o pedal do freio e a embreagem bruscamente e altera o equilíbrio do carro. Faz a curva 3 sem ritmo. Onde poderia estar acelerando, ainda está brigando para controlar a trajetória do Porsche 911 S. Entre os dentes, ele solta um quieto “shit” (merda). Tudo bem. Ainda temos algumas voltas antes de terminarmos esse último dia de instrução. Vamos ver o que vai acontecer…
Estamos em Summit Point Motorsports Park, a cerca de 100 quilômetros de Washington, DC. Um típico fim de semana no programa de instrução de pilotos do Clube do Porsche americano (em inglês Porsche Club of America, ou PCA), têm três dias. Sexta, sábado e domingo, instrutores e alunos andam duas vezes pela manhã, duas vezes à tarde. As quatro baterias diárias têm 30 minutos de duração cada. No total, são seis horas dirigindo na pista. Para os instrutores, a duração é dobrada, já que eles passam outras seis horas no banco do passageiro dos carros dos alunos, ensinando.
A pista principal de Summit Point, a que usamos, é muito concorrida, utilizada não só pelo Clube do Porsche, mas pelos clubes da Ferrari, do Audi, da BMW, o SCCA (Sports Car Club of America), além de vários clubes de motociclismo e de carros de corrida clássicos. Entre março e novembro, está em uso praticamente todos os dias. Entre dezembro e fevereiro, no inverno do hemisfério norte, o clima não ajuda. Mas se há previsão de alguns dias sem neve ou chuva de gelo, a pista é reaberta e novas reservas são preenchidas com rapidez.
O e-mail chega, como sempre, no fim de semana anterior ao evento: “Dear Instructor, this is your student for Potomac Region’s next DE. Please check his logbook” (Caro Instrutor, este é o seu aluno para a próxima DE da Região do Potomac. Favor verificar o diário de bordo dele).. Cada aluno, desde que entra na pista pela primeira vez, passa a ter um “diário de bordo” digital, onde a experiência que acumula pode ser checada online. Um grupo de seis instrutores seniores, todos voluntários, se encarrega de alocar instrutores aos alunos inscritos em cada DE (adiante explico o que é DE).
Vou ao diário de bordo do meu aluno, Tracy Briant. Vazio. O evento será o primeiro que ele fará. Semanas antes, Tracy cumpriu o curso obrigatório de controle de veículo (acelerações, freadas, slaloms, derrapagens controladas em pista molhada), mas nunca completou uma bateria com outros pilotos na pista (serão 25 carros no grupo Verde). E nesse evento, a sexta-feira foi reservada apenas a instrutores, ou seja, terei só quatro baterias no sábado e quatro no domingo para transmitir todas as orientações que puder a Tracy.
O sábado amanhece sob chuva. Às 7h45 da manhã, instrutores e estudantes participam separadamente de reuniões de pilotagem. Em uma espaçosa sala de aula, os instrutores (grupos Preto e Vermelho) discutem as condições da pista, a carga de alunos nos grupos Verde e Azul e são informados sobre quais já estão acumulando uma experiência sólida em pista, quais fizeram apenas alguns eventos e quais são totalmente iniciantes, nunca entraram em um circuito. O meu aluno é um deles.
Enquanto isso, na reunião geral feita em outro salão, Tracy e dezenas de outros pilotos dos grupos Verde, Azul e Branco são informados não só sobre as condições da pista, como recebem uma demonstração detalhada de todas as bandeiras que poderão aparecer nos 10 postos de controle espalhados pelo circuito e ficam sabendo em que pontos da pista poderão ultrapassar — ou dar sinal de ultrapassagem — para outros carros.
Às 8h25, alunos e instrutores se encontram. É o meu primeiro contato com Tracy. Como eu, ele é um homem de terceira idade (dois anos mais jovem, tem 64 anos); é profissional com formação superior — engenheiro de sistemas — e é ex-militar, chegou ao posto de tenente-coronel no exército americano. Parece ser um indivíduo calmo e meticuloso. Uma hora antes, o carro dele, um Porsche 2006 Carrera S, passou pela inspeção técnica obrigatória a todos os carros inscritos no evento. Mesmo assim, verificamos novamente se os cinco parafusos em cada roda estão apertados com o torque recomendado pela fábrica (13,4 kgf·m), confirmamos que os pneus, com 34 lb/pol² de pressão, estão calibrados dentro da faixa exigida pelo fabricante, e estabelecemos a posição ideal para Tracy no banco do motorista: a maior altura possível no assento sem que o capacete encoste no forro do teto; posição do encosto permitindo que os punhos (não as mãos) alcancem confortavelmente o topo do volante; visão plena nos três retrovisores; perna esquerda capaz de acionar todo o curso da embreagem sem ficar esticada e perna direita com flexão suficiente para impor a pressão necessária no pedal do freio.
Quando entramos na pista, meu primeiro objetivo é mostrar a Tracy o ponto ideal de entrada em cada curva e traçado melhor nas saídas, em preparação para a curva seguinte. Uso instruções precisas, falando pouco no intercomunicador para não sobrecarregar Tracy com informações: “Keep yourself on the outside of the track”. “Enter the turn now”. “Here is the apex”. “Use all the track exiting” (Mantenha-se na parte externa da pista”, “Entre na curva agora”, “Aqui é o ápice”, “Use a pista toda ao sair”).
Pela abertura do capacete, vejo que os olhos dele não estão arregalados nem apertados em excesso. As mãos não estão segurando o volante com tanta força a ponto de os dedos perderem a cor (acontece em iniciantes). Quando muda de marcha, ele não força a alavanca do câmbio. Todos bons sinais. Tracy é alerta, mas calmo. Depois de duas voltas, já não preciso indicar a linha correta de entrada e saída em cada curva e ele não se desvia do traçado ideal. Encorajo Tracy a impor mais velocidade nas retas e frear um pouco mais tarde antes das curvas.
A chuva nos ajuda porque à medida em que ganhamos velocidade e as freadas se tornam mais fortes, o ABS começa a ser acionado e — várias vezes — ele tem que controlar o carro para não sair do asfalto — porém como a pista está totalmente molhada, isso acontece a velocidades relativamente baixas. Na reta principal, não chegamos a 160 km/h antes de iniciar a freada para a curva 1. Tracy vai se acostumando com a delicadeza de exigir desempenho ao mesmo tempo em que controla a trajetória do carro em condições adversas e começa a impor um ritmo mais forte a cada volta — e a receber sinais para ultrapassar outros carros.
Quando a bateria acaba, o circuito de Summit Point — um pouco assustador apenas 30 minutos antes — virou parceiro nessa aventura. É o resultado mais positivo para a entrada inicial de um aluno em uma pista.
Nas três baterias seguintes, nos concentramos em técnicas mais sofisticadas: soltar o pedal do freio com suavidade mesmo depois de freadas fortes para não alterar o equilíbrio dinâmico do carro; acelerar rapidamente nas saídas de curva mas sem induzir a uma derrapagem no piso molhado. E metodicamente, vamos decifrando cada setor da pista.
Iniciamos com a curva 4, de velocidade média-alta, que depois de um breve toque nos freios, requer aceleração constante e logo em seguida um freada firme mas controlada para o carro não sair da pista na curva mais fechada do circuito, a 5. Em seguida, fica claro que todo o setor de baixa velocidade, entre as curvas 6 e 9, exige aceleração progressiva e obediência à linha mais generosa possível no traçado. Estabelecemos o momento ideal para soltar o pedal do freio e começar a acelerar forte na curva 10, a mais rápida do circuito. Descobrimos a vantagem de frear com uma pitada de prudência no final da reta, porque isso rende um controle muito mais rápido em direção ao ápice da curva 1 e uma saída forte em direção ao arco acelerado da curva 2 e à curta reta que nos leva ao ponto mais difícil de acertar: a curva 3, que tem entrada inclinada mas saída plana, uma variação de cambagem que já jogou centenas de pilotos para fora do asfalto.
No domingo, o dia é ensolarado e quente. No asfalto seco, tudo o que foi feito delicadamente na chuva, agora pode ser feito com confiança redobrada — e a velocidades muito mais altas. Bateria após bateria, aperfeiçoamos cada trecho do circuito. Tracy passa a manter um dos ritmos mais velozes do grupo, mesmo entre alunos que já estiveram nessa pista várias vezes. Ontem era um novato absoluto, hoje está confiante e percorre a pista com segurança.
Mas falta dominar a curva 3. Depois de várias tentativas, o “shit” que ele solta quietamente mostra a frustração que último desafio está impondo. Tudo o que ele tem que fazer é frear um pouco antes, ter tempo de reduzir para terceira e entrar na curva com a cabeça limpa.
Talvez quem esteja atrapalhando seja eu, com a minha frase forte “Action NOW”. Mudo a estratégia. Uso um “now” em tom mais baixo, dito com cumplicidade, não como comando impositivo.
E funciona!
Tracy relaxa, usa o freio no momento certo, reduz a marcha, solta a embreagem e entra na curva 3 acelerando progressivamente… depois com força suficiente para cobrir com tração positiva a saída plana do traçado.
Repete isso na volta seguinte.
E na penúltima da bateria.
E na última!
Passamos pela bandeira quadriculada falando alto pelo intercomunicador, como se tivéssemos ensaiado: “all right!”, “ALL RIGHT!!!”.
Em dois dias, Tracy Briant aprendeu vários dos segredos de Summit Point e do Porsche Carrera S que dirige. Descobriu habilidades ao volante que não sabia ter. E eu vi como uma mudança no tom de voz pode ajudar o aluno a desatar um nó na performance. Ensinando, se aprende.!
O PROGRAMA DE INSTRUÇÃO
O Clube do Porsche foi fundado em 1955 e a minha região (do Potomac; foi a que começou tudo. Hoje, há 147 regiões do PCA em todos os Estados Unidos, com mais de 140 mil integrantes e nós achamos que, por sermos os originais, somos os mais bacanas. Brincadeira, é claro, porém, há um aspecto que nos dá orgulho porque nele, somos referência: a formação de pilotos. Para promover segurança ao volante, a Potomac Region iniciou desde o fim dos anos 50 um programa de educação de motoristas em pistas de corrida. Ao longo de décadas, esse Driver’s Education, (educação de motoristas) ou DE como é conhecido (explicado agora?), desenvolveu uma estrutura copiada por outras regiões.
O conceito é basicamente o inverso do usado em uma corrida, onde as categorias são reguladas pelas características dos carros (peso, potência, tipo de combustível, pneus, etc…) e os pilotos tem níveis de habilidade muito diferentes entre si.
No DE, a habilidade dos pilotos é o foco da regulamentação. Iniciantes (grupo Verde), só entram na pista com a presença de um instrutor ou instrutora no banco do passageiro. Depois de alguns eventos (ou toda uma temporada), se o/a estudante mostra habilidade, é promovido/a para o grupo acima, o Azul, onde os pilotos também dirigem com a presença de instrutor/a no carro, mas durante a temporada, podem receber licença para pilotar solo. No grupo seguinte, o intermediário (Branco), pilotos entram sozinhos na pista. O grupo posterior é avançado (Preto) e os pilotos já começam a instruir iniciantes. Finalmente há o grupo mais experiente (Vermelho), integrado apenas por instrutores.
No DE, não há classificatória nem grid de largada. Quando o chamado para cada grupo é feito, os pilotos simplesmente alinham seus carros e recebem sinal de pista aberta quando o último carro do grupo anterior regressa ao paddock. A primeira volta é feita sob bandeira amarela para evitar ultrapassagens (e acidentes) com pneus frios. A partir da segunda volta, a velocidade é aberta. Ultrapassagens nos grupos inferiores é limitada às retas. Nos grupos superiores, pode ser feita em qualquer ponto da pista, porém, para que haja segurança em alta velocidade, o piloto a ser ultrapassado — em qualquer grupo — tem que indicar por que lado o piloto mais rápido deve passar. Isso é feito por um sinal de mão — ou do indicador de direção em carros com janelas fixas.
Em uma corrida, quem está na frente não tem a obrigação (ou intenção) de deixar um concorrente ultrapassá-lo. No DE, a regra é a oposta. Se um piloto cola na traseira de um outro carro é porque é mais rápido — ou tem um carro mais rápido. O piloto do carro da frente não pode demorar a autorizar a ultrapassagem (não pode digamos, dar uma volta inteira segurando o carro que está atrás, sem dar o sinal de mão ou de seta). Se fizer isso, recebe bandeira preta e tem que voltar ao paddock para explicar por que prejudicou o carro mais rápido. Como “bloqueio“ de ultrapassagem é penalizado, o ritmo do grupo experiente (Vermelho) no DE é forte e produz tempos cronometrados comparáveis — à vezes melhores — do que os registrados em corridas na mesma pista.
É fácil verificar isso, já que, além de dezenas de DEs, o Clube do Porsche promove 27 corridas por ano, com classificatórias, grid de largada e vencedores individuais em cada categoria. Os tempos, à medida em que são cronometrados, são postados em tempo real no site do evento.
No DE, todos os pilotos receberem a bandeira quadriculada indicando o fim da bateria. Formalmente, não há um vencedor. Mas quem está na pista, dirigindo — ou quem está assistindo — sabe quais pilotos andaram melhor. Na minha região do Clube do Porsche, o curso de Drivers Education tem um lema:
1 – Promover segurança na pista
2 – Aprender
3 – Divertir-se
Os itens 1 e 2 são obrigatórios. O 3 é opcional. Lema apropriado. Desde que entrei para o clube, em 1997, aprendi muito e continuo me divertindo à beça cada vez que entro na pista. Sou instrutor desde o ano 2000 e em mais de duas décadas, isso me permitiu não só transmitir técnicas aos iniciantes, como também me ajudou com a regra infalível: ensinando, se aprende.
(Fim da Parte 1 – continua e termina na quinta-feira que vem)
CL