Apesar de ter escrito longamente sobre o Catar na coluna passada, deixei para fazer um texto à parte sobre um projeto interessantíssimo do país sobre o qual não conhecia absolutamente nada antes de chegar e sobre o qual não encontrei muita coisa quando quis me informar melhor. Aliás, nem no hotel consegui algo — apenas um muxoxo das duas concierges (assistentes ¨para hóspedes) que consultei, em ocasiões diferentes. Resposta na linha “ah, se quiser conhecer, tá”. Assim, seco, sem nenhuma explicação.
É claro que não ia ficar por isso mesmo e lá fui eu, com meu valente marido, rumo ao desconhecido. Então, o assunto é Msheireb, um bairro novíssimo totalmente planejado bem no centro de Doha. Quando digo bem no centro é isso mesmo, pois fica a uns cinco minutos a pé do Souq Waqif, o principal mercado da cidade e o centro nevrálgico da cidade inteira, e pouquinho ao sul de Diwan, onde está a sede do poder real. É um importantíssimo projeto de regeneração sustentável, mas que foca em várias áreas ao mesmo tempo e de forma consistente (foto de abertura).
O projeto tem como ponto positivo, na minha opinião, não querer ser algo isolado, uma experiência de laboratório, mas sim é uma porção coerente da cidade — sequer diria que é uma cidade ou um distrito, pois está totalmente integrado a Doha, inclusive à parte antiga da cidade. Talvez bairro seja mais correto, mas usarei indistintamente as nomenclaturas oficiais do lugar. Evidentemente, está inserido no projeto do país de se tornar independente do petróleo em algum momento, de fazer parte de uma economia pós-petróleo e, claro, de ser um lugar que atraia pessoas e empresas.
Msheireb foi construído no antigo distrito de Mushayrib. As obras começaram em janeiro de 2010 ao custo de cerca de US$ 5,5 bilhões. A cidade foi criada para ser utilizada em etapas e foi sendo entregue em seis fases. Como tudo no Catar, foi planejada e construída pelo Estado. O projeto é todo baseado em sustentabilidade, algo que pessoalmente aprecio muito, mas que me merece muitas críticas normalmente. Msheireb, ao contrário, tem muitíssimas qualidades e já peço desculpas pela falta de algumas ilustrações pois fazer fotos no Catar é uma tarefa complicada e nem sempre consegui fazer isso. Mesmo procurando na internet, há poucos registros das coisas sobre as quais vou falar.
Em primeiro lugar, Msheireb foi construído bem no centro da cidade — nada de mandar para a periferia quem usa bicicleta, bonde ou anda a pé — algo que para mim nunca fez sentido. A contrário, o novo bairro está pertíssimo de todo o burburinho (OK, ainda que dentro das bem-comportadas regras islâmicas) de Doha. Mas não vejo radicalismo nem exageros no projeto, pois toda a área subterrânea foi reservada para os carros. Aliás, não apenas a área de todo o projeto, mas quatro pavimentos de subsolo onde estão concentrados estacionamento para mais de 10.000 veículos, espaço para entregas e manutenção.
Sim, há um gigantesco estacionamento sob a cidade e, apesar de se dar preferência ao pedestre, ruas por onde circulam carro cortam a cada dois quarteirões (mais ou menos, em cada sentido) a área para quem anda a pé. Ou seja, não há execração aos carros, algo que certamente não daria certo num país como o Catar, onde a proporção é de 1,7 habitante por veículo. Mais um ponto a favor do projeto: dar alternativas em vez de tirar. Os modais de transporte não são excludentes aqui, mas se somam.
Mesmo assim, confesso que vi apenas um par de bicicletas estacionadas no meu passeio noturno por Msheireb, justamente quando esperava encontrar mais delas. Há suportes em todo lado, a cidade é totalmente vigiada por câmeras de segurança de altíssima definição, logo, segurança não parece ser problema e não imagino alguém carregar elevador acima uma bicicleta para guardá-la dentro de um apartamento. Não tenho certeza de quanto elas são usadas, pois cruzamos com poucos ciclistas, mas também cruzamos com poucos pedestres, poucas pessoas dentro do bonde…
Em segundo lugar, foi dada ênfase ao transporte coletivo com a implantação de uma rede de bondes que passam a cada seis minutos num circuito de dois quilômetros. A passagem é gratuita e além de ar-condicionado, há todos os confortos de primeiro mundo, como Wi-Fi a bordo. Os pontos de embarque e desembarque têm informações em tempo real sobre os itinerários e os horários de cada um. Claro, são pequenos, mas para felicidade do meu lado preocupado com a estética, os bondes não utilizam cabos aéreos nem sistemas de energia que os alimentem a não ser as baterias a bordo, que são carregadas por energia elétrica quando não estão em uso. Ou seja, zero poluição visual e mesmo os trilhos no asfalto são discretos.
Os bondes também têm painéis de vidro especial que filtram a inclemente luz solar catari e inibem mais de 90% do calor. Outro item que parece detalhe, mas que gostei: eles são conversíveis e podem ser utilizados ao ar livre bastando apenas remover os painéis de vidro. Assim, quando faz mais frio (ou menos calor, vá lá), eles podem ficar parecendo aquelas jardineiras de antigamente. No total, o bonde percorre 2,5 quilômetros e passa por todo o distrito. É a espinha dorsal do projeto de transporte de Msheireb e desde o início de 2020 já transportou mais de 100.000 passageiros — lembrando que o país inteiro tem 3 milhões de habitantes e Doha, 796.000).
É em Msheireb onde está localizada a maior estação de metrô de Doha, que interliga harmônica e eficientemente as três linhas de metrô da cidade. Perdi a conta de quantas vezes estive lá e admirei o lindo mural de Abdulaziz Yousef que provavelmente se destaca ainda mais pois a cidade não tem pontos de poluição visual — ao contrário, é esteticamente muito limpa e assim cada obra de arte tem o destaque que merece, sem dividir espaço com pichações ou exageros visuais.
Por ser um distrito tão pequeno, de apenas 310.000 metros quadrados, ele pode ser totalmente percorrido a pé. Estivemos lá duas vezes, uma delas perto da meia-noite e outra durante o dia. Fiquei com a sensação de uma cidade meio fantasma, mas entendo que ainda não está totalmente ocupada. Sinceramente, não sei qual será o resultado desta experiência, mas vejo muitos pontos positivos em relação a outras tentativas de fazer algo parecido e acho que tem mais chances de dar certo do que os projetos que vi até agora, em vários países do mundo. Seguindo o padrão catari, tudo é incrivelmente limpo e bonito, com charmosas e originais fontes espalhadas pelas calçadas que ajudam muito a manter a umidade do ar, justamente num lugar onde isso anda por volta dos 30%.
Moram em Msheireb cerca de 20.000 pessoas ou seja, apenas 23 pessoas por quilômetro quadrado, espalhadas por um total de 100 prédios, entre residenciais e comerciais. Vale a pena fazer a conta: há uma vaga de estacionamento subterrâneo para cada dois moradores do distrito – claro que esse número inclui visitantes, mas é óbvio que o carro está totalmente incorporado no bairro.
Há lojas de varejo, muitas com ênfase em design, mas nada que se pareça com o centro comercial de qualquer cidade. Os cafés, as casas de lanches e as sorveterias, por exemplo, são discretas e de design lindíssimo, muito clean e muito elegante. Restaurantes maiores só vi dentro de alguns dos hotéis que estão no bairro, vários deles cinco estrelas (como o Mandarin Oriental Doha, Al Wadi M Gallery e o Park Hyatt) e todos com manobrista e onde os carros são muitíssimo bem-vindos.
Vi também algumas academias, pequenas lojas de conveniência e outras de manutenção de bicicletas — nada de oficina suja, muito pelo contrário. Pareciam boxes de equipe de Fórmula 1 pela quantidade e organização das ferramentas e dos equipamentos. Nas vias secundárias onde transitam bicicletas há úteis armários e locais com chuveiros — mais uma vez, algo sensacional, pois não consigo achar prático pedalar numa cidade quente e chegar ao trabalho ou para visitar alguém suada ou desgrenhada. Na minha opinião, essa é uma forma autêntica de se incentivar o transporte em bicicletas e não apenas impor restrições aos carros.
Nos cruzamentos há semáforos específicos para pedestres e bicicletas, que, como já disse, convivem com carros. Há também ruas apenas para pedestres.
Esteticamente, Msheireb é moderna, mas tem uma fortíssima identidade catari. Não há dúvida de que se está num lugar árabe e especialmente, islâmico. A estrutura urbana é composta de blocos compactos e fechados, os prédios usam muito o recurso dos brises (aqueles elementos arquitetônicos usados para, como indica o nome em francês, quebrar o sol e impedir a incidência direta de raios solares) e painéis para quebrar a insolação, mas permitindo a circulação de ar e mesmo de luz. Há muito uso de colunatas, saliências e coberturas ativas de várias formas que fazem sombra nas ruas. Muitos pátios, terraços e fachadas profundas e em camadas minimizam o impacto da cruel luz solar ao mesmo tempo em que todo o projeto privilegia a circulação de ar.
Parece incrível, mas apesar de prédios altos (não arranha-céus, mas sim edifícios de vários andares) há uma ventilação natural impressionante — tanto que me chamou a atenção a presença de terraços em alguns prédios, algo impensável para lugares de temperaturas tão altas que parecem nos convidar a ficar dentro de áreas com ar-condicionado e não ao ar livre. Diria que conseguiram um bom equilíbrio entre densidade populacional relativamente alta para uma área urbana tão compacta sem sacrificar o conforto e, ainda, poupando energia.
Todos os edifícios atendem ao padrão LEED Platina ou Ouro — aliás, aqui está a maior concentração de prédios com essa certificação num único lugar no mundo. Mais exatamente, há 53 projetos com certificação Platina.
Os museus de Msheireb contam a história do lugar. Eles estão divididos em quatro casas históricas e cada uma abriga um aspecto da história. A Company House narra a história do petróleo; a Mohammed Bin Jassim House conta a história da área, propriamente dita, a Bin Jelmood House está totalmente focada na escravidão, e a Radwani House fala sobre a vida familiar em Doha ao longo do tempo.
Provavelmente o espaço mais conhecido de Msheireb seja a praça Barahat Msheireb, bem no centro do distrito. Ela tem teto retrátil e um sistema de refrigeração que permite que se fique ao ar livre, mas com conforto e por onde pode-se passear mesmo no verão catari. No entorno da praça há cafés e pequenos restaurantes e em ocasiões especiais há projeção de luzes nos edifícios do entorno, como se fosse um show. Aliás, a iluminação multicolorida é uma caraterística de Doha e não é diferente em Msheireb.
Vamos, então, ao momento uiquipídia de hoje: Msheireb significa “lugar para beber água” em árabe. E é justamente a água que mereceu muita atenção dos projetistas deste interessante lugar. Obviamente, ela é um recurso muito, muito escasso no Catar. Toda a água no país é tratada e depois reciclada para irrigação dentro de um enorme projeto de gerenciamento de resíduos. Mas claro que Msheireb tinha que levar isso um passo adiante. A água do distrito passa por um processo de osmose reversa de dois estágios. Depois de tratada inicialmente, ela é recebida por uma usina de alta tecnologia que a armazena em tanques subterrâneos individuais e não potáveis e mantida separada da água potável.
A água da chuva (sim, chove no Catar, embora o índice pluviométrico lá seja de meros 75 mm por ano) também é coletada, tratada e então enviada para tanques específicos. Este processo é replicado com a água condensada que é coletada dos sistemas de ventilação de ar e de ar-condicionado (sim, até essas quantidades aparentemente pequenas são coletadas e tratadas). Os tanques que armazenam água não potável são usados para os sistemas de irrigação (vi vários sendo utilizados nas lindas praças do distrito), mas também para descarga de vasos sanitários e na estação de resfriamento do distrito. Com isso, as autoridades estimam que Msheireb tenha conseguido reduzir o desperdício de água potável em 75%. Genial, não?
Como todo lugar modernoso, há centros criativos que reúnem diversos tipos de empreendimento, lojas-conceito e toda uma parafernália de palavras em inglês que se possa imaginar, totalmente alinhadas com as modernidades e os modismos atuais. Provavelmente o mais antenado seja o M7 (não, não é nenhum tipo de serviço secreto britânico), um centro criativo da indústria de design, moda e tecnologia com, claro, espaço para coworking, para exposições e, por que não, para ver e ser visto.
Como o Catar é um país profundamente religioso, não podia faltar uma mesquita emblemática. A mesquita Msheireb tem a cara do distrito: simples, elegante e feita com o mesmo calcário branco que predomina no bairro. Tem um minarete de 25 metros e uma entrada cheia de ornamentos em bronze.
Ainda é cedo para saber se Msheireb será um sucesso, mas já dá para dizer que começou com boas chances. Especialmente por não execrar hábitos arraigados no Catar, como o uso do carro ou de ambientes fechados com ar-condicionado, entre outros confortos, mas por dar alternativa a eles.
Mudando de assunto: já começo minha fase de abstinência de Fórmula 1. Paciência. Enquanto não começa a temporada 2023 me irrito e, principalmente, me divirto, com as bobagens ditas nas redes (anti) sociais sobre corridas e pilotos. Estou começando uma espécie de seleção de momentos absurdos, mas parece que não vai acabar nunca. Talvez seja superada pela quantidade de besteiras que tenho lido sobre a Copa do Mundo e sobre o Catar. A ver.
NG