Na matéria “Por que novos conceitos de motores de aviões raramente progridem?“, de julho de 2021, falei meio que de passagem nesses motores aeronáuticos. Achei que valeria a pena ir um pouco mais fundo nesse assunto.
A chamada aviação geral, que engloba aeronaves de pequeno porte, monomotores e bimotores leves a pistão e pequenos turboélices, de um pico de 18.000 unidades fabricadas em 1978, sofreu uma derrocada brutal com aprovação da lei americana de passivos oriundos de vício de produto, o que levou a um brutal aumento de custos de produção e manutenção como forma de os Fabricantes se defenderem economicamente de eventuais ações decorrentes de acidentes.
Naturalmente, isso também afetou a indústria de motores aeronáuticos, cujos produtos, muitos deles concebidos nas décadas de 1950 e 1960, permaneceram e permanecem iguais até hoje, uma vez que o investimento em tecnologia não encontra o retorno financeiro lógico que o justifique.
Os poucos fabricantes que se aventuraram neste segmento, ou desistiram na fase de projeto ou arcaram com prejuízos. Podemos citar o caso da Porsche, com seu PFM3200, um motor derivado de um motor veicular, mas que não apresentou vantagens expressivas sobre um Lycoming ou um Continental de mesma potência, com aagravante: o motor da Porsche ser mais pesado e complexo.
Enquanto isso, os fabricantes tradicionais continuam com sua receita básica oriunda desde os primórdios da aviação: motores de cilindros horizontais e opostos arrefecidos a ar, acionamento direto da hélice, ignição dupla (por questão de segurança) com corrente elétrica produzida por magneto, que independe de bateria, e manutenção simples. E, naturalmente, na aviação quanto menos componentes passíveis de darem problemas, menos riscos se corre.
Entretanto, o aumento dos custos da gasolina de aviação (avgas) a pressão ambiental pelo banimento do chumbo tetraetila da gasolina pela sua alta toxidade, algo que infelizmente os motores aeronáuticos convencionais ainda não conseguiram eliminar (gasolina de avião, além da octanagem, tem a questão da pressão de vapor na bomba e linha de combustível para evitar a ocorrência do vapor lock (bloqueio por vapor) tem colocado os principais fabricantes em algumas encruzilhadas sobre qual rumo tomar nos combustíveis aeronáuticos e nos novos produtos a serem oferecidos pelos fabricantes de motores.
Ignorando os motorizações elétricas ou híbridas, algo que gostemos ou não, parece um futuro distante devido à questão de peso e autonomia oferecida por esses conceitos (a própria Rolls-Royce considera que os motores a reação movidos a querosene durarão até pelo menos 2050), têm vindo à tona os motores a pistão de movimento recíproco, mas de ciclo Diesel, permitindo um menor consumo de combustível, um melhor aproveitamento térmico e o uso do querosene de aviação (QAV) amplamente difundido e distribuído no mundo.
É neste contexto, que a Diamond, fabricante de pequenos e revolucionários mono e bimotores, tem se destacado com ênfase na motorização Diesel derivada de motores automobilísticos.
O Austro AE300
Para falarmos um pouco do motor Austro temos que voltar um pouco no tempo para o início dos anos 2000, quando uma empresa alemã chamada Thielert Aircraft Engines GmbH, que se valendo do projeto do motor Mercedes OM668 de 1,7 litro, “aeronautizou” esse motor e o .lançou nas aeronaves Diamond.
Posteriormente, passou a empregar o motor Mercedes OM640 numa versão 2-litros, sempre no ciclo Diesel.
Empregando bloco de alumínio, quatro válvulas por cilindro, comando de válvulas no cabeçote e uma caixa de redução de 1,689:1, o motor entregava entre 135 a 155 hp/136,9 a 157 cv) , dependendo da versão, a 3.900 rpm, queimando Jet-A ou diesel de especificação EN590 (especificação parecida com a do nosso diesel S-10).
A Diamond encampou esse motor ,mas aquilo que era para ser uma solução acabou se tornando uma dor de cabeça: a Thielert não vingou e deixou fabricantes e proprietários de aeronaves na mão, sendo posteriormente vendida à empresa chinesa Avic, atualmente proprietária também da Continental Motors.
Para não ficar refém da Thielert, a Diamond criou sua própria fábrica de motores, a Austro Engines e, valendo-se do mesmo conceito-base, o Mercedes OM640. fez algumas modificações que julgou convenientes, entre elas a adoção de bloco de ferro fundido (!!!). E tornou a oferecer as suas aeronaves, agora com motorização própria.
O Austro AE300 basicamente é o OM640, um motor 4-cilindros, de ciclo Diesel ,de alta rotação, com taxa de compressão de 17,5:1, duplo comando de válvulas no cabeçote acionado por corrente, e 4 válvulas por cilindro. O diâmetro dos cilindros de 83 mm e curso dos pistões de 92 mm (para 1.991 cm³), são iguais aos encontrados no Mercedes-Benz Classe A; o arrefecimento permaneceu a líquido.
O sistema de injeção de combustível deste motor é Bosch common rail com pressão de injeção de 1.600 bar feito por bombas de baixa e alta pressão acionadas mecanicamente mas, com gerenciamento totalmente eletrônico com duplo sistema Fade (Fulll Authority, Digital Engine Control, Controle Digital do Motor com Total Autoridade)l para garantia de redundância de sistemas.
E em virtude de toda essa eletrônica, diferentemente de um Continental ou um Lycoming, no painel, só há uma única manete — a de potência. O passo de hélice é gerenciado eletronicamente e motor Diesel, como se sabe, não tem ajuste de mistura ar-combustível por funcionar com excesso de ar (não tem borboleta de aceleração).
Uma curiosidade é que o combustível de retorno em alta pressão passa por um pequeno radiador que reduz a sua temperatura para aproximadamente 60 ºC antes de retornar aos tanques de combustível nas asas, o que durante o voo promove um aquecimento do combustível.
O turbocarregador mantém a pressão no coletor de admissão em 3 bar absolutos na decolagem (por pressão absoluta entenda-se pressão atmosférica mais a de turbocarregamento).
Em voo de cruzeiro, esse valor cai para cerca de 2,4 bar e o sistema garante uma potência constante do motor até 16 mil pés de altitude (quase 4.900 metros)
Em matéria de consumo de combustível temos um valor significativamente baixo, de 40 litros de QAV por hora em potência de decolagem e 21 L/h com 60% de potência em cruzeiro.
Os “drawbacks” do AE300
Por “drawback” entende-se que nem tudo são flores nessa motorização, há desvantagens. E talvez a primeira coisa que chame a atenção seja os 186 kg de massa, quase 60 kg a mais que seu congênere Lycoming O-360. Falando em números, pode não ser muita coisa, mas na aviação geral, 84 kg é o peso de um passageiro-padrão da estipulado pela FAA (Agência Federal de Aviação dos EUA) para cálculo de peso e balanceamento em aeronaves comerciais. Estatística pura.
Especificamente no caso do AE300/AE330, a caixa de redução requer sua substituição por ocasião da reforma completa do motor (1.800 horas). Entretanto há necessidade desmontagem do conjunto para inspeção a cada 300 horas.
Assim, embora tenhamos um motor de ignição por compressão,, há um complexo processo envolvido para que isso seja possível, pesando e onerando o conjunto, coisa que não acontece com um Continental ou um Lycoming de cilindros contrapostos.
Enquanto nos tradicionais motores de cilindros contrapostos arrefecidos a ar temos comando de válvulas no bloco, com ignição por centelha produzida magnetos duplos, no AE300 temos todo um sistema de injeção no duto, controlado eletronicamente, comando de válvulas duplo acionado por corrente (mais partes móveis), caixa de redução e até mesmo um volante do motor de duas massas (semelhantes aos usados em algumas picapes de motorização diesel e câmbio manual).
Mesmo assim, a Diamond vem produzindo quantidades expressivas de suas aeronaves com essa motorização. A tecnologia embarcada nos painéis de instrumentos, bem como a economia da operação — quem não quer consumir apenas 21 litros de QAV por hora de voo por motor? — vem garantindo o sucesso da aeronave.
Os outros “diesels”
Hoje existem outros motores de ciclo Diesel em produção, um deles, o SMA305-230, até mais simples que o AE300/330. Mas alguns problemas e o custo acabaram tornando-os produtos que ainda não ganharam o mercado e a baixa demanda de motores de pequeno porte para a aviação geral não permitiram maiores desenvolvimentos.
O SMA305-230, é um motor de cilindros contrapostos arrefecidos a ar/óleo, no melhor estilo Lycoming, produzindo 227 hp/ 250 cv mas, questões como o “flame out” na hora do pouso ainda não estão 100% resolvidos, a ponto de se ter que “sujar” o avião (gerar mais arrasto aerodinâmico) para manter a aceleração do motor e ter pressão de admissão, a correr o risco de um indesejado apagamento no pouso.
A Continental Aerospace Technologies, que adquiriu o espólio da Thielert Arcraft Company também trabalha e produz um motor similar ao AE300/330 da Austro, também nascido do Mercedes OM640, denominado CD-135 e CD155 (conforme a potência em hp) mas só a Piper emprega essa motorizaçâo em seu Archer DX (o nosso Embraer/Neiva Tupi).
A mesma Continental adquiriu os projetos e aprimorou o motor SMA-305-230 e fez o Continental CD-230/265/285 de 5 L, 4 cilindros e arrefecido a ar/óleo. Dotado de injeção eletrônica no duto com Fadec, e uma taxa de compressão mais alta que o similar francês (17:1 contra 15:1), entretanto, estranhamente, o motor não teve aceitação por parte da indústria americana, que não anunciou nenhuma versão dos suas conhecidas aeronaves com essa motorização.
A mesma Piper, por sua vez, lançou o Piper Pilot 100i com o tradicional motor Lycoming IO-360, 4 cilindros e 6 litros cujo projeto é do inicio dos anos 1950!
A Cessna ate chegou a anunciar o Cessna 172 Skyhawk NXT com essa motorização mas da mesma maneira que anunciou, ela tirou o modelo de catálogo, tendo fabricado apenas protótipos.
E enquanto isso não ocorre, a Diamond e a Austro vêm nadando de braçadas neste segmento. Talvez até pelo fato de termos aeronave e motor projetados de maneira casada, e não um projeto para uso de um motor “de prateleira” como ocorria antes.
DA