Ao propor a organização de uma competição de 24 horas, a direção do ACO (Automobile Club de l’Ouest) tinha como objetivo básico uma prova de resistência e não de velocidade pura. A ideia era de comprovar a confiabilidade mecânica dos carros submetendo-os a um teste ininterrupto que equivaleria a algum tempo de uso normal pelos proprietários de automóvel incentivando assim sua popularização como meio de transporte.
Por isso, o regulamento era bem rígido exigindo veículos completamente equipados, como eram vendidos: com para-lamas, para-brisa, estribos, espelhos retrovisores e até a buzina. Na primeira edição, as capotas conversíveis puderam ser removidas, mas na segunda edição foi colocado um curioso adendo no regulamento: cinco voltas após a largada, os concorrentes deviam parar, fechar a capota, e percorrer 20 voltas assim.
Além disso, nas primeiras edições da prova, somente os dois pilotos inscritos por carro podiam fazer os reparos mecânicos e, inclusive, trocar pneu furado, o que só poderia ser feito pelo que estava pilotando. Ele descia do carro, pegava os equipamentos, soltava a porca-borboleta com martelo de bronze, levantava o carro, trocava a roda, apertava a porca, abaixava o carro, guardava tudo, e fazia isso em menos de 1 minuto.
A tremenda rigidez no regulamento tinha, inclusive, índice de eficiência. Conforme a cilindrada do motor, os carros precisavam percorrer quilometragem pré-determinada. Quanto maior o motor, mais voltas o carro tinha que completar para ter classificação oficial no final. Assim, o objetivo era incentivar a participação de muitos concorrentes e atrair o maior número de marcas, especialmente os grandes fabricantes.
Mas isso não ocorreu. A maioria das equipes de fábrica que prestigiaram a competição, desde o começo, era de marcas com produção reduzida e geralmente fabricantes de chassis rolantes, que depois eram enviados aos encarroçadores. Chenard et Walcker, Lorraine-Dietrich, Bentley e Alfa Romeo, as marcas que venceram nas doze primeiras edições eram, na época, fabricantes em pequena escala de modelos esportivos ou de luxo.
Isso fez com que, aos poucos, o ACO fosse afrouxado as regras. O Buagatti Tank que venceu em 1937 e 1939 era um protótipo, já o Delahaye vencedor em 1938 tinha a carroceria especial em cima do chassi de um modelo de série. Após a Segunda Guerra Mundial não mudou muito. Quando o Ferrari 166 MM venceu em 1949, com a devida carroceria original, a fábrica de Maranello, entretanto, não tinha produzido ainda mais do que duas dezenas de carros.
Na década de 1950 finalmente alguns dos grandes fabricantes participaram da competição com equipes oficiais. Em 1951, a Equipe Renault de fábrica inscreveu três modelos 4CV, com motor de 700 cm³. No ano seguinte, além da Renault, também estavam presentes as equipes oficiais das marcas Jaguar, Lancia e Mercedes-Benz, que venceu a prova com o modelo esportivo 300 SL. A disputa aumentou e a velocidade também.
A competição entre as equipes da Ferrari e Jaguar, na edição de 1954, comprovou isso. Mas enquanto a velocidade dos carros aumentava aceleradamente o regulamento e a segurança da pista corria lentamente. E isto foi comprovado na edição da 24 Horas de 1955, que provocou o mais grave acidente da história do automobilismo vitimando 83 espectadores, mais o piloto francês Pierre Levegh e deixando mais de 100 de feridos. Levegh fazia- dupla com o americano John Fitch,
As três marcas vencedoras nas edições anteriores: Mercedes-Benz, Jaguar e Ferrari inscreveram três carros cada. Todos eles com carrocerias esculpidas aerodinamicamente. Já nos treinos as velocidades impressionaram com os carros chegando próximos dos 300 km/h na grande reta de Mulsanne, de seis quilômetros. A média por volta na classificação ficou próxima dos 200 km/h e Eugenio Castellotti foi o mais rápido com o Ferrari 121 LM, motor 6 em linha de 4,4-litros.
Na largada Castellotti assumiu a ponta e imprimiu um ritmo forte seguido pelos carros da Jaguar, enquanto os Mercedes faziam uma estratégia diferente só acompanhando o ritmo dos ponteiros. O Ferrari rápido não durou muito e abandonou após três horas de corrida. Entretanto, pouco antes disso, ocorreu o terrível acidente na reta dos boxes provocado por decisão afoita dos pilotos e também por grave falha na organização.
Como na época ainda não havia o procedimento para entrada nos boxes, os pilotos saiam da pista direto para eles. Quando o inglês Mike Hawthorn, com Jaguar, superou o Austin-Healey 100S do também inglês Lance Macklin na reta dos boxes, imediatamente cruzou na frente do carro que acabara de ultrapassar e se dirigiu para abastecer seu carro. Sentindo que iria passar do ponto onde estava sua equipe freou seu carro. Veja abaixo a dinâmica do grave acidente:
Este movimento surpreendeu Macklin que, para não bater na traseira do Jaguar desviou para a esquerda, mas não percebeu que estava para ser ultrapassado pelo Mercedes de Pierre Levegh, que vinha muito mais rápido a cerca de 250 km/h e não teve como desviar. Como o Healey tinha a traseira inclinada, isto fez o Mercedes ser catapultado e cair à beira da pista explodindo e atingido o enorme público postado logo após a cerca.
Muitas críticas foram feitas pelo fato de a prova não ter sido interrompida imediatamente. Atordoados, os organizadores não sabiam o que fazer, mas acabaram sendo aconselhados pelas equipes de socorro para continuar a competição, pois assim seria a melhor maneira para socorrer as vítimas, já que a interrupção iria provocar a debandada de quase 200 mil pessoas, o que prejudicaria as vias de acesso ao circuito.
Em Stuttgart, entretanto, em uma reunião convocada de emergência, o comando da Daimler-Benz ordenou que os carros da marca abandonassem imediatamente a competição. Justamente quando ocupavam a liderança da prova e o terceiro lugar, cerca de seis horas após o acidente. Além disso, a empresa também decidiu não participar mais de competições oficialmente, o que perdurou por mais de três décadas.
RM