“A vida é breve, a arte é longa”, postulou o médico grego Hipócrates, morto no ano 377 AC. Volta e meia, esse aforismo é mencionado nas biografias de artistas falecidos precocemente. Os talentos do paulistano Christian Heins, o “Bino”, eram outros: exímio piloto de competição e profundo conhecedor de mecânica, foi um dos personagens mais importantes do automobilismo brasileiro. E foi, provavelmente, o primeiro brasileiro a ser contratado pela Porsche.
Na década de 1950, Interlagos era um pouco mais que um caminho asfaltado no meio do mato, com instalações muito precárias. A região do autódromo localizado na zona sul de São Paulo, hoje densamente urbanizada, era de acesso difícil e pouco povoada. Mas as corridas aconteciam e o perigo inerente ao automobilismo da época fazia muitos jovens correrem escondidos dos pais, quase sempre com suas identidades ocultas por meio de pseudônimos. Não era o caso de Christian Heins: precoce, ele dirigia e fazia reparos em carros, motos e bicicletas desde garoto e era apoiado pelos pais (o alemão Carl Heinrich Christian Heins e a italiana Giuliana de Fiori Heins) e a irmã dois anos mais nova, Ornella. Bino, o apelido familiar, era uma corruptela de “bambino” (menino, em italiano, como era chamado pela mãe).
Mais por diversão, Bino resolveu correr com o codinome “Cometa”. E fez sua estreia em 11 de julho de 1954, aos 19 anos, em uma corrida comemorativa do quarto centenário da cidade de São Paulo, pilotando um Porsche 356 inscrito com o número 92. Dois meses depois, “Cometa” obteve a primeira vitória de sua vida, na classe Grã-Turismo. Com esse resultado, terminou o Campeonato Paulista de Automobilismo em segundo lugar, atrás de Oswaldo Fanucchi, com outro Porsche 356. Em 1956, terminou em segundo lugar na primeira edição da Mil Milhas Brasileiras, dividindo com Eugênio Martins a condução de um Fusca equipado com o motor do Porsche 550.,,,
Heins alternou temporadas no Brasil e na Europa. Nos anos de 1953, 1955, 1957, 1958 e 1959, morou na Alemanha, tendo cursado a “Hochschule für Technik”, uma escola técnica de nível superior em Stuttgart, e um curso técnico na Daimler-Benz. Trabalhou na Mahle (havia conhecido o fundador da empresa, Eberhard Mahle, no Brasil) e na fábrica da Porsche. E, é claro, disputou muitas corridas na Europa, quase todas ao volante de carros Porsche. Com um 550 RS, venceu em 1958 duas provas na Itália: o Giro da Calabria e a 10 Horas de Messina, esta última em dupla com o alemão Paul-Ernst Strähle.
Na temporada 1959. “Bino” terminou em segundo lugar (em dupla com Helmut Busch) na classe GT 1.600 cm³ da 1.000 km de Nürburgring, pilotando um Porsche 356 A 1600 GS Carrera GT (foto de abertura), e protagonizou aquela que provavelmente foi a primeira dobradinha brasileira em uma corrida realizada na Europa ao terminar em segundo lugar o GP de Messina de Fórmula Júnior, equivalente à atual Fórmula 3. O vencedor foi outro paulistano, Fritz D’Orey. Menos felizes foram as atuações na 24 Horas de Le Mans, em dupla com Carel Godin de Beaufort (abandonaram por problemas no motor do Porsche 718 RSK), e no GP de Spa-Francorchamps para carros esporte, em que “Bino” capotou depois de bater em um muro de proteção.
Christian Heins decidiu voltar para o Brasil em 1960. Nesse ano, disputou a 1.000 km de Buenos Aires (abertura do Campeonato Mundial de Carros Esporte) e terminou em quarto lugar, pilotando um Maserati 300S em dupla com Celso Lara Barberis. Ao volante de um FNM 2000 JK em dupla com Chico Landi, Heins venceu a Mil Milhas Brasileiras de 1960 e a 24 Horas de Interlagos de 1961. Logo depois, foi convidado pela Willys-Overland do Brasil para assumir o cargo de gerente do departamento de carros esporte e de chefe da equipe de competições da marca, além de pilotar nas corridas mais importantes.
Nessa altura, Heins tinha 25 anos de idade, mas sua experiência e conhecimento faziam dele um líder natural. Na época, o uso de macacão não era obrigatório no Brasil, e o elegante Heins pilotava usando camisa polo da marca Lacoste, calça Swixtil (confecção argentina que apoiava os pilotos conterrâneos, entre eles Juan Manuel Fangio) e capacete Les Leston, um dos preferidos dos pilotos europeus da época. Ainda em 1961, “Bino” Heins casou-se com a alemã Maria Waultraud. No ano seguinte nasceu a filha do casal, Bettina.
A primeira tarefa de Heins na Willys foi desenvolver o Interlagos, um carro esporte baseado no Alpine A108, lançado em 1962. O Interlagos fez sucesso nas ruas e nas pistas, e isso motivou o fundador da marca francesa, Jean Rédélé, a convidar Bino para disputar a 24 Horas de Le Mans de 1963 com um Alpine Renault M63 em dupla com o piloto e jornalista francês José Rosinski. O casamento, a paternidade e as atribuições na fábrica levaram Heins a pensar em parar de correr. Antes de embarcar para Le Mans, ele confidenciou a Wilsinho Fittipaldi, a quem contratara como piloto da Willys, que a corrida de Le Mans seria sua despedida do cockpit. E que não estava com bom pressentimento a respeito de sua participação.
A largada da 24 Horas de Le Mans de 1963 foi dada no horário tradicional, quatro da tarde, em 15 de junho. Inscrito pela equipe oficial Société Automobiles Alpine, o carro de Heins e Rosinski ostentava nos para-lamas, em tamanho reduzido, a inscrição “Equipe Interlagos Alpine”, uma forma de capitalizar no Brasil o bom resultado que Rédélé estava confiante em conseguir.
Às dez horas da noite, o carro 48 de Heins/Rosinski liderava na classe até 1.100 cm³. No fim da reta Mulsanne, o motor do Aston Martin pilotado por Bruce McLaren quebrou, jogando óleo na pista. Isso aconteceu logo depois de uma elevação no fim da reta, o que transformou o local em um ponto cego. Três carros se envolveram em rodadas e batidas. Ao chegar ao topo, Heins viu o Jaguar de Roy Salvadori atravessado na pista. Ao desviar, deparou com o corpo inerte do piloto francês Jean-Pierre Manzon estendido no chão. Ele havia sido ejetado de seu René Bonnet Aérodjet ao colidir com o Jaguar de Salvadori (na época, não se usava cinto de segurança). Heins fez mais uma manobra para evitar atropelar Manzon, mas seu Alpine derrapou na pista lisa, bateu no René Bonnet, saiu do traçado capotando e explodiu ao bater em um poste. Heins morreu na hora.
O acidente fatal de Christian Heins causou comoção no Brasil. Antes de ser transladado para o País, o corpo do piloto foi velado na catedral de Notre-Dame, em Paris. O enterro aconteceu em 27 de junho no Cemitério do Redentor, em São Paulo, na presença de centenas de amigos e admiradores.
AE
Texto: Luiz Alberto Ramos Pandini Fotos: Porsche
*Artigo publicado na edição 88 da revista Porsche Insider, publicada pela Stuttgart Porsche, a maior rede de concessionários Porsche do Brasil.
* Parte das informações deste artigo consta no livro “Bino – A trajetória de um vencedor”, de Paulo Scali.