Minha coluna desta semana é para lembrar do agora saudoso Luiz Carlos Secco, sem sombra de dúvida o melhor gerente de imprensa do setor automobilística que o Brasil já teve. O “Seccão”, como era chamado pelos mais próximos, nos deixou de forma repentina nesta quinta-feira (30/1)), consequência de uma queda quando visitava sua filha no interior paulista. Tinha 90 anos.
Conversei com ele por telefone no início dessa mesma e descobri que estávamos morando bem próximos um do outro, menos de dois quilômetros, aqui na cidade de Sorocaba, SP. Prometi a ele que iríamos nos ver em breve, para tomar um café e trocar boas histórias. Mas o destino não quis.

Secco sempre foi uma pessoa gentil, educada, e sabia bem como lidar com todos os colegas jornalistas. Um dos poucos que não priorizava os interesses da empresa para qual trabalhava: ajudava muito a imprensa no seu trabalho com informações importantes, fotos bacanas, entrevistas exclusivas, sempre incentivando matérias de excelência.
Desde que iniciei minha vida jornalística em 1974, há 51 anos, Secco sempre foi o gerente de imprensa da Ford. Mas em julho de 1987, com a formação da Autolatina, controladora da Ford e da Volkswagen brasileiras, ele assumiu a mesma função na nova companhia. Mas as duas fabricantes decidiram se separar e o processo começou em setembro de 1994, formalizado em janeiro de 1996, quando Secco foi reintegrado á Ford;
Nesses tantos anos que trabalhei com Secco, não faltaram histórias, e uma delas é a que conto agora, bem curiosa. Estávamos no final de julho ou início de agosto de 1987, quando a Ford estava prestes a apresentar o Escort linha 1988. Na época eu era repórter e piloto de testes da revista Quatro Rodas e o Secco noa passou um XR3 prata com pouco mais de 1.500 km rodados, absolutamente novo e já amaciado pela engenharia, para uma avaliação que seria publicada na edição de setembro. Como de praxe, fui com o carro para Limeira, SP, na pista de testes da Freios Varga que a Quatro Rodas utilizava, e colhi todos os resultados.

Não mudava muita coisa: o carro ganhava um novo tanque de combustível de plástico, 17 litros maior, e outro trambulador, fixado na tampa da caixa de marchas, o que deixava as trocas mais precisas e rápidas. Também mudavam forrações internas, cores e outros pormenores, mas o modelo continuava com o mesmo charme de antes.

Voltando ao dia dos testes do XR3, eu já tinha em mãos todos os resultados de desempenho do carro (aceleração, velocidade máxima, tempo de retomada, frenagem, etc.). Faltava apenas a sessão de fotos, com as estáticas primeiro, e depois as feitas em movimento, para dar mais dinamismo à matéria. Quem me acompanhava com a câmera era um colega de muitas viagens, o também saudoso Mituo Shiguihara, um japonesinho com pouco menos de 1,60 m de altura, muito talentoso no que fazia.

A última foto a ser feita era a principal, de abertura da matéria. Mituo me disse: “o diretor editorial José Carlos, Marão, e o redator-chefe, Luís Clauset, disseram que a foto de abre deveria ser com o carro voando, para dar ação. Vamos ver um lugar para fazê-la, para que fique bem bonita”. Fui logo avisando que, se o carro voasse, ele iria quebrar: os XR3 não foram feitos para aquilo. O japonês foi intransigente: “o diretor e o redator-chefe mandaram, e você como repórter tem que acatar. Se pediram para que fizéssemos o carro voar, ele vai voar!”.

Diante dessa situação, não tive muita saída. Fazer o Escort voar seria fácil, mas o problema era deixar ele inteiro depois disso. Fomos até um canavial atrás da pista de testes, onde havia uma longa rampa que terminava num planalto, tudo de terra. Shiguihara se posicionou com sua máquina fotográfica, portando um motordrive (dispositivo que permitia que fossem tiradas várias fotos em sequência). Eu, ao volante, subi a tal rampa a cerca de 70 km/h. O XR3 voou, aterrissou, e tudo certo.
O problema é que Mituo queria mais. Já veio logo reclamando que o voo tinha sido baixo e curto, pedindo para eu repetir a ação: “ele voou pouco, menos de 30 cm de altura, tem que fazê-lo voar de verdade!”. Mais uma vez, repeti: “se eu voar mais alto, o Escort vai desmontar na hora de aterrissar”. Ele, por sua vez, novamente falou das ordens da chefia, e disse que tínhamos que cumpri-las.

Pois fui eu novamente lá para o pé da rampa. Peguei um bom espaço para “embalar” e subir a ladeira, a pouco mais de 100 km/h. Lá no alto, o voo foi lindo: é aquele que você pode ver na foto de abertura da matéria. Quanto o XR3 saiu do chão? Sei lá. O que posso afirmar é que cheguei até a tirar o pé do acelerador para não tirar o motor de giro. O salto durou bastante, e foi alto!
Na hora de aterrissar, eu estava certo: catástrofe! O leitor viu apenas aquela imagem bonita do carro no ar, mas como Mituo fez a sequência com o motordrive, depois vimos o “passo a passo” da manobra: o Escort bateu primeiro a parte de trás no chão, danificando o para-choque traseiro, e em seguida as rodas entraram ao máximo dentro das suas caixas. A dianteira bateu no chão logo depois, com uma sequência de danos parecida.

Claro, o carro não suportou a manobra: as rodas da frente ficaram totalmente abertas, e o monobloco não suportou o impacto, criando um vão entre o teto e a porta. Como dizem por aí, “embodocou”. O XR3 novinho, com menos de 2 mil km, já não tinha mais salvação.
Consegui levar o Escort, todo torto e quebrado, até a nossa base na pista de Limeira. Telefonei para o Secco, e tratei de explicar todo o ocorrido, contando sobre os danos causados no carro que ele havia me entregado tinindo dois dias antes. Com toda sua calma e educação, foi logo me dizendo: “o carro cumpriu sua missão? Conseguiram fazer todos os testes e fotos que você precisava? Se tudo isso deu certo, então o objetivo foi cumprido. Vou tratar de mandar um guincho para buscar o carro, onde ele estiver, e, se vocês precisarem de qualquer outra coisa da Ford, podem me ligar novamente!”.

A grande maioria dos gerentes de imprensa, no mínimo, mandariam arrancar meu fígado sem anestesia. Mas Secco ficou feliz e tranquilo após saber que todo o nosso trabalho havia sido feito. Para ele, era mais importante a reportagem exibida na Quatro Rodas mostrando as novidades do XR3 1988 do que o valor daquele carro em si. Para ele, como gerente de imprensa, era uma missão cumprida, e ele sabia que a matéria com o carro se tornaria destaque, algo que era importante para a fabricante.
Para mim, sobrou uma bela bronca do meu chefe Luiz Bartolomais Júnior, o “Bartô”, que, dentre outros puxões de orelha, me disse para nunca seguir as ordens do fotógrafo, e que o correto seria ligar para ele antes do voo com o XR3, perguntando se “poderíamos dar PT em um carro de teste”. E, claro, sobraram duas lições: a primeira é que um automóvel de testes servia para fazermos nosso trabalho, mas tínhamos que devolvê-lo nas mesmas condições de quando retiramos; e a segunda é que existiam limitações no nosso trabalho, e nem sempre a ideia mirabolante de um fotógrafo deveria ser seguida.

O tal XR3 prata? Ainda cheguei a vê-lo na fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, encostado pelos cantos e coberto com uma lona. Foi perda total, e certamente ele deve ter virado sucata algum tempo depois. Lições que a vida nos dá, sempre auxiliadas por professores como o “Seccão”.
DM
A coluna “Perfume de carro” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.