Caro leitor ou leitora,
Depois de ontem, hoje temos o prazer de anunciar a chegada de mais um editor ao time do AE, o paulistano Iago Garcia, que escreverá sobre assuntos mais técnicos. Ele é jornalista automobilístico e piloto de automobilismo, unindo experiência na imprensa especializada e nas pistas.
Como jornalista, já trabalhou em veículos como Car and Driver Brasil e Webmotors, cobrindo eventos, testando veículos e produzindo conteúdos técnicos, além de colaborar com portais do iCarros e Autoesporte. No automobilismo, tem trajetória marcada por títulos na Fórmula 1600 e participações na Porsche Cup Brasil, além de atuar como piloto de desenvolvimento e instrutor de pilotagem.
Sua primeira matéria versa sobre os pilotos de testes nas fábricas, os collaudatori em italiano.
Bem-vindo ao time do AE, Iago!
Paulo Manzano e Bob Sharp
O TOQUE HUMANO NO FERRARI 12CILINDRI E O PAPEL DOS COLLAUDATORI
Por Iago Garcia
Por trás de cada carro lendário há um nome que muitas vezes passa despercebido: o collaudatore, termo italiano para piloto de testes. São eles que traduzem gráficos e cálculos em sensações ao volante, garantindo que cada modelo entregue o comportamento dinâmico esperado. Esses profissionais não buscam apenas velocidade máxima ou tempos de volta mais baixos, seu objetivo é tornar cada carro equilibrado, previsível e prazeroso para o motorista.

Ao longo da história, alguns desses collaudatori se tornaram verdadeiras lendas dentro das fábricas. Valentino Balboni, por exemplo, passou mais de 40 anos na Lamborghini, refinando a dirigibilidade de modelos icônicos como Countach, Diablo e Murciélago. A marca até criou uma versão em sua homenagem, o Gallardo LP550-2 Valentino Balboni.
Dario Benuzzi, na Ferrari, esteve por trás do desenvolvimento do 288 GTO, F40, F50, Enzo e LaFerrari, obras-primas nascidas na fábrica do cavallino rampante. Já Loris Bicocchi trabalhou na Lamborghini antes de ajudar a moldar o caráter dinâmico de marcas como Bugatti, Pagani e Koenigsegg.
Entre esses grandes nomes, aponto um que apareceu mais recentemente, Raffaele De Simone, collaudatore da Ferrari responsável pelo refinamento de modelos modernos como o 488 Pista, SF90 Stradale e Ferrari 12Cilindri. Seu trabalho é essencial para transformar números de engenharia em sensações reais na pista e, neste caso, fica claro como o toque humano no meio de um mar de números pode mudar o comportamento de um carro.
Gosto de acompanhar a forma com que esses profissionais transformam suas impressões em soluções práticas nos veículos. No caso de Raffaele, em particular, me chamou a atenção um dos desafios com o desenvolvimento do sistema de esterçamento traseiro do Ferrari 12Cilindri, que foi lançado oficialmente no Brasil na última sexta-feira (21).
O desafio do esterçamento traseiro no 12Cilindri
O Ferrari 12Cilindri é um grã-turismo de essência, que preserva — e talvez encerre — a linhagem de motores V-12 da Ferrari, com o F140HD, evolução do motor do Ferrari Enzo. Pela sua proposta, dimensões e características, é difícil esperar um comportamento ágil e previsível desse modelo. São 1.560 kg em ordem de marcha, 4.733 mm de comprimento e entre-eixos de 2.700 mm. Seus 819 cv e 69,1 m·kgf entregues pelo V-12 dianteiro recuado de 6,5 litros são despejados diretamente nas rodas traseiras. Mas lendo testes de diversos veículos da indústria mundial, uma característica me chamou a atenção: a responsividade e agilidade do carro em todas as condições.
Claro que houve uma grande evolução em relação ao antecessor 812 Superfast, com um novo sistema de distribuição de torque, atualização do software do controle de estabilidade, entre-eixos levemente mais curto e chassis 15% mais rígido. Mas das inovações mais marcantes e que acredito ser a maior responsável por esse comportamento do Ferrari 12Cilindri é seu sistema de esterçamento das rodas traseiras.
Esse componente não é novidade, especialmente em modelos esportivos e de luxo. A Porsche, por exemplo, já usa o eixo traseiro esterçante chamado de Weissach — nome da pequena cidade a 30 quilômetros de Stuttgart onde está o Centro de Desenvolvimento da Porsche — assim batizado por ocasião do desenvolvimento do 928 na década de 1970 e aplicado no modelo em 1977. Sua existência mais notória, entretanto, foi com a sua aplicação no 911 pela primeira vez na série 993, sucessora da 964, no final de 1993. Uma engenhosa suspensão traseira multibraço (cinco braços) em substituição à simplória suspensão traseira de braços semiarrastados nascida no primeiro 911 em setembro de 1963.
A “Weissach” sanou o maior problema de nascença do 911, a súbita saída de traseira ao levantar o pé do acelerador numa curva, mas o esterçamento nas rodas traseiras do 911 só chegaria no 991.2 em 2015 e hoje está também no Macan e no Taycan. A diferença do sistema do 12Cilindri para as configurações convencionais é o que ativa o esterçamento das rodas traseiras. Nos Porsches a convergência das rodas traseiras muda de acordo com uma série de parâmetros que correlacionam principalmente velocidade e ângulo de volante. Em baixa velocidade, por exemplo, as rodas abrem para reduzir virtualmente o entre-eixos e resultar na redução diâmetro de giro favorecendo a manobrabilidade. Acima de 60 km/h, as rodas fecham para mais agilidade numa mudança de faixa e mais estabilidade nas curvas.
No 12Cilindri, além de ter esterçamento independente nas quatro rodas, esse mecanismo funciona de maneira mais sofisticada e com mais influência do motorista. O sistema desenvolvido atua com base num parâmetro chamado slip angle. O slip angle (ângulo de deriva) é a diferença entre a direção para onde a roda está apontando e a trajetória real que o carro efetivamente segue. Ele é muito utilizado no automobilismo como uma maneira de identificar tendências de substerço/sobresterço em carros de corrida.
Isso acontece porque, ao fazer uma curva, os pneus não rolam perfeitamente na direção que estão apontados — há sempre uma leve deflexão devido à deformação da borracha e da aderência com o solo. Quanto maior a força lateral gerada (como em altas velocidades ou curvas fechadas), maior tende a ser esse ângulo.
Sistemas como o esterçamento traseiro baseado no limite de slip angle do Ferrari 12Cilindri utilizam essa medida para ativar ou ajustar a direção das rodas traseiras no momento exato em que o carro começa a atingir esse limite, otimizando a estabilidade e a resposta dinâmica.
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Em vez de esterçar automaticamente com qualquer movimento do volante, o sistema monitora continuamente o comportamento do carro e entra em ação apenas quando necessário, de acordo com o nível de aderência disponível. Isso significa que as rodas traseiras podem permanecer alinhadas em certas condições, garantindo máxima estabilidade, e serem ativadas sob demanda para melhorar a resposta e a agilidade nas curvas. Esse valor é extraído de um canal matemático, que transmite para as rodas traseira o quanto é necessário de correção para diminuir o sobreesterço (saída de traseira) baseado no ângulo do volante. É quase como se fosse sob demanda — com uma ação mais acentuada de volante, o slip angle aumenta e o eixo traseiro ajuda o contorno da curva no seu ponto mais fechado.
Na prática, esse ajuste confere ao carro um comportamento mais previsível e progressivo. O motorista não sente mudanças abruptas no eixo traseiro, como poderia ocorrer em sistemas mais tradicionais, e o resultado é um superesportivo que combina precisão milimétrica com uma sensação de controle quase intuitiva.

Esse refinamento foi possível graças ao trabalho meticuloso de Raffaele De Simone, um piloto de competição que se aprofundou na engenharia, unindo incontáveis horas na pista analisando a resposta do carro em diferentes cenários com a imensidão de dados que um carro gera a cada teste. Suas informações ajudaram a calibrar o sistema para que a transição entre os modos de esterçamento ocorresse da maneira mais natural possível.
Como engenheiro formado em uma das universidades de engenharia mais prestigiadas no mundo, a de Bolonha, Itália, ele soube ler os milhares de dados disponíveis no desenvolvimento de um carro. Como piloto, soube identificar a necessidade do carro para ser mais rápido e constante. Como entusiasta, soube traduzir tudo isso para proporcionar uma experiência prazerosa para o motorista.

A importância dos collaudatori no futuro
Esse caso mostra como os carros precisam de um toque humano para gerar conexão com seus motoristas, mesmo em tempos de simulações avançadas e inteligência artificial. O papel do collaudatore continua essencial. Sensações como a resposta da direção, a transição entre aderência e perda de tração e a forma como o carro responde ao limite, ainda são difíceis de replicar apenas com algoritmos.
Assista ao breve vídeo de 2min16s no qual Raffaele fala sobre o ângulo de deriva:
Modelos como o Ferrari 12Cilindri são a prova de que a interação entre engenharia de ponta e sensibilidade humana ainda define o caráter de um superesportivo. Raffaele De Simone e sua equipe mostram que, mesmo numa era de carros que nem sempre querem fazer o motorista sentir algo ao volante, o toque humano é insubstituível na construção de um carro verdadeiramente especial.
IG