O 4 de Julho, universalmente saudado como o Dia da Independência e formação dos Estados Unidos da América, na indústria do automóvel tem registro próprio. À Ford, assinala o dia de deixar a atividade industrial na França e se afastar da negra nuvem da estatização. Para a Simca, francesa com base Fiat, ocasião de enorme salto. Fundada em 1935, na véspera era a 5a maior do país, e nas comemorações da Independência dos EUA, em 1954, por negociação com a Ford, assumira a segunda posição.
Na história do automóvel no Brasil, o negócio entre Ford e Simca há sessenta anos tem muito relevo. Ano e meio após, a Simca decidiu instalar-se em nosso país, e trazer o produto recebido na negociação. No processo de implantação estabeleceu recorde até hoje não bem entendido: noventa dias entre decidir, individualizar máquinas e logística de transferência, selecionar pessoal com facilidade de trato, transportar entre Poissy e São Bernardo do Campo, individualizar, negociar, locar, preparar o espaço e compatibilizar equipamentos, entre os seus e os da antiga montadora de automóveis Nash e Fiat, tirar a primeira unidade da linha de produção. Um feito. Outros praticaria.
Olhando para trás
A II Guerra Mundial deixou como resultado enorme mudança de comportamento, novas geografias, vontades, exigências, conceitos. Nos automóveis, dinamizou a quantidade em relação à qualidade, liquidou muitas marcas e até os construtores de refinadas carrocerias especiais. No cenário, como líder dos vencedores, os americanos fidelizaram em consumo sobre os países perdedores, os com moeda fraca, ou em busca de ascensão econômica, disseminando e impondo padrões de moda, consumo, cultura, moeda, produtos úteis e inúteis e, naturalmente, automóveis exitosos ou não.
Em tal cenário com amplas mudanças econômicas e de comportamento, a Ford projetou, clientes exigiriam veículos superiores aos dirigidos antes do conflito. Assim, decidiu elevar o nível de sua marca Mercury, dando-lhe característica — ante os conceitos estadunidenses — de luxo com esportividade. E, para não aumentar a distância de preços entre os Mercury e os básicos Ford, implementou-os. E criou carro menor, para ser o degrau de entrada no mercado. A grosso modo, um mini-Ford.
Em estilo um ganho, ao lembrar um Mercury 1949 em escala. Mecânica tradicional, motor dianteiro, tração traseira. No Brasil o motor era conhecido como Ford 60, indicando a limitada potência do V-8 de 2.200 cm³, tracionando versão standard dos Ford de 1937 a 1940.
Porém, às beiradas do lançamento constatou, na prática a teoria era outra. Os estadunidenses queriam tamanho, grandes motores, cromados — demonstrar sobre rodas a aura da superioridade bélica e econômica dos EUA. Carro popular podia ser boa idéia — mas não para os EUA daquele momento. Em carro pequeno, apenas a Crosley conseguiu sucesso de nicho.
A Ford abortou o processo, empacotou o emergente problema; o projeto do novo automóvel pequeno, inviável pré-lançamento, com o motor de baixa cilindrada, válvulas no bloco, herdado ao inglês Ford Pilot, despachou-o para a França. A compatível combinação foi a família Vedette/Vendôme.
Hora de mudar
Sempre fundada na internacionalização, a Ford estava em França desde 1916, e no pós-conflito discutindo judicialmente com o antigo sócio. Produzia carrinho sem maior expressão, o Matford, a grosso modo um Ford 1937 em escala reduzida. Ao contrário da matriz, operações na Inglaterra e na Alemanha, a Ford SAF dava enormes prejuízos. Tantos, era gerida por representante dos bancos credores.
Henry Ford II é visto o sucessor do avô em soluções, visão, agilidade — e rompantes. Educado, dedicava atenção à Europa, história, tecnologias, absorvidas em cíclicas temporadas na Provence francesa. Numa destas férias ouviu volumosas más referências aos carros e à operação da Ford SAF, endividada, no vermelho, gerida por banqueiros credores. Pós-férias, reuniu-se com eles.
O encontro foi antológico choque de culturas.
Nele, por cautela, como ocorrem em negócios envolvendo entendimentos em mais de uma linguagem, tradutor juramentado atuava no afastar dúvidas. Vertia ao francês todas as afirmativas do lado americano, liderado por Ford II. E traduzia para o clã Ford, em inglês, todas as colocações dos banqueiros franceses.
Quase tudo, exceto os comentários, as piadinhas, as críticas irônicas, sobre o herdeiro alto, gordinho, recém assumira a empresa do avô, já se metia a palpitar em finanças, e de ousar indagar do por quê dos prejuízos sob comando de um honorável representante do sistema bancário francês.
As brincadeirinhas de mau gosto acabaram quando Ford II dirigiu-se aos franceses, em francês, e pediu compostura e respeito. Do susto, do incômodo e da saia justa, conseguiu renegociações com prazos maiores e juros menores.
Mandou mudar tudo. No lugar do banqueiro entronizou Walter McKey, conhecido cortador de custos, ajustou planos, autorizou investimentos, reformou a fábrica de Poissy, e em 1953 a empresa cresceu e deu lucro com o novo Ford, o Vedette.
Quando se esperava tranqüila expansão industrial, três fatores se trançaram contra o futuro da Ford SAF: a eleição de Vincent Auriol a primeiro-ministro, trazendo o socialismo ao poder, e junto o temor da estatização; a certeza da desnecessidade de a Ford operar na França — mais barato importar e distribuir os carros feitos na Inglaterra e na Alemanha; e a demanda por grandes investimentos domésticos na concentrada briga por sobrevivência em seu quintal.
Ford II, prensado pelo receio da estatização, mandou vender a operação francesa; e aglutinar recursos para a matriz.
O maior mercado do mundo, após suprir a demanda reprimida pela suspensão da produção de automóveis durante a II Guerra Mundial, experimentava aura de poder e prosperidade, consumindo quantidades e volumes. Carros grandes, cromados inumeráveis, combinações de cores atrevidas.
A competição reduzira o ciclo de vida das carrocerias, o número de fabricantes às três grandes e à Willys, distante; aumentara enormemente os custos de desenvolvimento.
Ford + Simca = ? Simca!
Para vender o braço francês, a Ford teceu as variáveis jurídica, institucional e financeira, e foi-se às maiores fabricantes francesas: Citroën declinou por viver um dos grandes saltos de sua carreira, substituir a revolucionária geração Traction — os 11 e 15 — pelos DS/ID 19 sem perder a aura de inovações em estilo e tecnologia; a família Peugeot tinha aversão cutânea aos americanos; Renault, então estatal, foi desconsiderada.
Restaram as pequenas fabricantes em patamar intermediário, Panhard e Simca. A primeira vinha de sucessivos erros, interessou-se pelo negócio, mas foi preterida em cima da hora. Sobrou a Simca, como a Ford, vista pela xenofobia típica do país, como a segunda não-francesa — a Ford tinha capital dos EUA, e a Simca, italiano da Fiat, do gestor local Henri Pigozzi, e suíço pelos banqueiros da família Agnelli, controladora da Fiat.
Negociação longa. A Simca não se motivava ao negócio. Considerava, a produção e venda de 100 a 120 Vedettes/dia não justificava negócios. A Simca vendia 400 Aronde dia, mais caminhões Unic, tratores. A Ford lembrava não transferir apenas um produto, mas um pacote, incluindo a mais atualizada das fábricas na França; um produto de vendas estáveis; e enormes extensões de terra.
Sem outro cliente potencial, em esforço final para definir a situação, a Ford juntou toda a contra-argumentação, e levou ao líder Henri-Theodore Pigozzi números, resultados, e dois argumentos candentes, secretos. Numericamente projetava os ganhos econômico-financeiros pela redução dos custos de manufatura na primeira fábrica onde “máquinas controlavam máquinas“. Depois, os trunfos inesperados: primeiro, o protótipo do novo Vedette II, com linhas atualizadas, mudando totalmente o produto mandado à França poucos anos antes; complementaria a gama Simca atuando na faixa superior, como produto topo-de-linha.
H-T Pigozzi, por si e pela Fiat não se motivava pelo empreendimento.
Até então a soma de ofertas e contra-ofertas se prendia a itens conhecidos ou projetáveis. Mas a Ford convidou Leon De Rosen, braço direito de Pigozzi, interlocutor da Simca, a visita à fábrica de Poissy, beiradas de Paris. E exibiu argumento sensibilizante: o protótipo do Merkur, carrinho pequeno, projetado pela Ford alemã, pronto a ser colocado em produção. Era, por tudo, assemelhado ao Aronde, o carro-chefe da Simca, primeiro produto de sua total criação, esteio de seus lucros, presente em boa parte do mundo por exportação ou montagem em ampla relação de países, e orgulho pessoal de H-T Pigozzi.
De Rosen se assustou. Voltou a Paris, resumiu e opinou. Le Patron Pigozzi e seus mais próximos não sabiam se o projeto era verdadeiro como produto, como origem, ou apenas um blefe, e resolveu dar tempo ao tempo.
Canhão, a questão
Francis Reith, negociador da Ford, acabou com as demarches latinas. Com objetividade anglo-saxã informou, “Le patron suprême“, mandara avisar: se a Simca não fizesse negócio, autorizaria a produção do Merkur e aplicaria na França o necessário para vender a novidade a preço bem inferior ao Aronde.
Consultados, os italianos da Fiat, a quem Pigozzi se reportava por razões de hierarquia e capital, traduziram o aviso como sendo a “ultima ratio regum”, expressão latina significando o último argumento do Rei, e o derradeiro argumento real é o uso do canhão. O Rei era Ford II. O canhão, o Merkur a preço inferior.
Fabricante quebrando outro através de preço subsidiado é prática antiga.
Se por lógica de resultados positivos o negócio não desenvolvia, por medo quanto ao futuro, funcionou. A Ford, com maneirismo fenício arrematou numérica e negocialmente: fechasse negócio, a Simca seria a segunda fabricante francesa. Não precisou mostrar o outro lado da conta: fosse enfrentá-la, deixaria de ser a quinta, arriscando-se seriamente. Pigozzi capitulou. Chamou os acionistas — Fiat e bancos suíços. Concordaram ao negócio de transmitir a Ford à Simca. Condições desconhecidas, exceto o custo, zero. As empresas se fundiram.
Domingo, 4 de julho de 1954, dia de paradas e desfiles nos EUA, no âmbito econômico francês o clima era febricitante aos envolvidos e interessados no setor, embora industriais, governo, imprensa e consumidores pouco soubessem da essência real do negócio entre duas marcas importantes e diferenciadas, além do texto do comunicado à imprensa mundial. Pigozzi ligou pessoalmente para os dirigentes da Citroën, Peugeot, Renault e Panhard, explicitando sua coragem no adquirir incômodo concorrente estrangeiro. E o ministro da Indústria saudou-o como salvador da indústria francesa. Contou pouco do negócio, exceto o não haver exportação de divisas ou desvio de recursos e fluxo de caixa prejudicando o futuro. Minúcias negociais permaneceram desconhecidas, exceto o custo, divulgado como Zero Franco. As empresas se fundiram — a Simca pagou com 15,2% das ações da nova companhia.
Durante as demoradas tratativas foi lançado o Ford Vedette II, vendido em apenas 1.077 unidades — hoje raros e menos valorizados que concorrentes da época, os Citroën 15 H, últimos pré DS/ID.
Para a nova empresa a Ford SAF passou ações, a moderna fábrica de Poissy, e valorou os produtos da linha Vedette/Vendôme, linhas de produção de motores, e prometeu gentilezas — como o foi o presente do projeto da geração Vedette 3, o Chambord mandado ao Brasil.
Logo em seguida, aos 15 de setembro a Simca assumia o mando, e o novo Ford Vedette mudava os emblemas para Simca.
Num comparativo, por medo o ovo comprou a galinha. Bem no estilo Pigozzi, especialista em negócios com sócios poderosos. Na Simca, a Fiat — sócia desde o início — manteria 25% de participação até 1964, quando a Chrysler assumiu o mando e conseguiu inviabilizar a empresa. Poissy hoje pertence à Peugeot.
Case
No cenário da implantação da indústria automobilística brasileira a Simca foi o melhor exemplo de romantismo para a instalação, criação de atrativos, novidades, movimentação promocional no primeiro ciclo de instalação de nossa indústria do automóvel.
Monoproduto, sem capital ou socorro pela matriz, ao Deus-dará, fez história rica, bem marcada, deixou saudades, fez lucros. Criou versões, e os carros nacionais superiores aos de origem, implementou ímpar desenvolvimento de tecnologia, inovou com o radiador para o óleo do motor, a ignição transistorizada, o alternador. E usou, como ninguém, as corridas como laboratório de desenvolvimento.
Os contínuos acertos realizados com o Chambord — suspensão, direção, motor, mudanças mecânicas, de conforto, de decoração —, a síntese destas alterações caracterizando o modelo Tufão, inexistiram na França. Os produtos daqui eram bem superiores: câmbio com primeira marcha sincronizada; motor evoluindo de potencia, de 84 a 112 cv, e com maior suavidade e confiabilidade, desenvolvimento de versões como o Rallye, a utilização das corridas como laboratório, e ao final, a evolução do motor para Emi-Sul, com a passagem das válvulas do bloco para o cabeçote.
Como Simca, operou de janeiro de 1959 a março de 1967, quando assumida pela Chrysler, implementando o produto recebido, até retirar de produção os produtos Simca, então transformados em Esplanada e Regente.
Foram, no total, 51.896 unidades Simca, e mais 16.386 de seus produtos como Chrysler, de produção encerrada em julho de 1967.
Simca é assunto rico, amplo, para livro próprio, inédito, de onde este texto foi retirado e sintetizado.
RN