A embreagem é mesmo um componente essencial do automóvel. Seria até possível um carro sem câmbio, ter uma só marcha à frente, mas sem embreagem, jamais. É ela que permite acoplar o motor em funcionamento, com seu conjunto virabrequim-volante girando, ao câmbio que se encontra parado. Para conseguir isso ela se vale de um acoplamento gradual, determinado pelo motorista através de um sistema de comando a partir do pedal de embreagem, acoplamento este que sempre implica num deslizamento.
Por isso, um dos componentes mais solicitados do conjunto motriz é a embreagem, dentro das várias condições de utilização do veículo, como arrancar no plano e em rampas e, secundariamente, nas trocas de marchas, quando a embreagem precisa ser momentaneamente desacoplada para que as trocas sejam realizadas sem impor cargas nas peças móveis do câmbio com engrenagens e luvas de engate.
Assim, a embreagem tem o papel fundamental de transmitir o torque do motor através do sistema de transmissão e gerando a força de tração nas rodas, determinante para movimentar o veículo.
O veículo está sujeito a forças resistivas ao movimento, que são a resistência ao rolamento, a resistência aerodinâmica, e a resistência à força da gravidade, representada pelas rampas. Quando a força de tração nas rodas for igual à força resistiva, o veículo está imóvel ou em velocidade constante. Se a força de tração for maior que a resistiva o veículo acelera, e quando menor, desacelera ou mesmo recua.
Enquanto a rotação do motor for diferente da rotação do câmbio, a embreagem desliza, ou patina, gerando calor por atrito, e neste aspecto está o potencial problema no projeto e desenvolvimento dos sistemas de embreagem.
Partir da imobilidade significa engatar a primeira marcha, acelerar um pouco e soltar gradativamente o pedal da embreagem: com a embreagem deslizando o veículo começa a vencer a inércia e se locomover. Nesse processo, enquanto as rotações do motor e do câmbio não estiverem equalizadas a embreagem vai deslizar, gerando calor.
O sistema de embreagem é projetado levando em consideração vários parâmetros, sendo os principais o torque máximo do motor, as relações de marcha do câmbio e diferencial, o raio da roda e o peso do veículo.
Existe uma fórmula simples para calcular o Fator Inercial, que mostra a facilidade do veículo partir da imobilidade, minimizando o tempo de deslizamento da embreagem. Quanto menor o fator, tanto melhor o comportamento de modulação da embreagem.
I= Fator Inercial
P= peso do veículo
r= raio da roda
R= relação total da primeira marcha
g= aceleração da gravidade
Por exemplo, um veículo de 1.100 kg, de roda com raio de 0,3 metro, relação total de primeira 20:1 e aceleração da gravidade, que é 9,806 m/s², terá um fator inercial de 0,504. Se a relação total de primeira passar a 22:1 (mais curta), o fator será 0,458.
Outra fórmula importante é o Fator de Torque resultante do torque de acoplamento na região entre 1.000 e 1.500 rpm do motor dividido pelo fator inercial. Quanto maior for o quociente, tanto melhor para a modulação da embreagem.
Recordo-me à época do desenvolvimento do Ford Escort para o Brasil, nos idos de 1983. A relação total de primeira marcha do câmbio IB5 era muito baixa (longa) dificultando a partida em rampas, muito deslizamento do disco era exigido. O problema foi resolvido com a adoção uma relação de primeira mais curta (de 3,15:1 para 3,58:1). Os puristas (e autoentusiastas) não gostaram da alteração, apreciavam a primeira bem longa, mas para o grande público a mudança foi benéfica.
Uma primeira muito curta, que seja até desagradável, resulta em desgaste do material de atrito do disco de embreagem muito baixo, pois o período deslizamento a cada saída da imobilidade é muito curto. Bom exemplo disso é o Celta 1,0 a partir do motor VHC em 2003.
Neste aspecto o VW Voyage era o melhor, servindo de base comparativa para a referida melhoria. Aqui entre nós, o Voyage era um veículo muito bem desenvolvido e dava prazer de dirigir. Seu único senão era a falta de uma quinta marcha para economia de combustível e amenizar as rotações do motor em velocidades de cruzeiro — o que não tardaria a acontecer, surgiu o câmbio de cinco marchas para o 1,6-litro com a quinta de relação 0,73:1 em acréscimo à quarta 0,91:1, constituindo um autêntico e perfeito escalonamento 4+E.
Outro detalhe de suma importância durante o desenvolvimento do sistema de embreagem é o material de atrito do disco e a força da placa de pressão do platô. De maneira geral, o material de atrito tem como característica sua variação de coeficiente com a temperatura: até os 50 °C ele é constante, aumenta gradativamente até os 150 °C, se mantém constante até os 180 °C e decai fortemente daí até os 230 °C, quando nesta temperatura, invariavelmente, perde suas características de transmissão de torque, a embreagem começa a patinar.
Hoje em dia, com a proibição do amianto (fibra mineral com potencial risco cancerígeno) na composição do material de atrito ficou muito mais difícil o seu desenvolvimento. Também, a força da placa de pressão do platô deve ser otimizada levando em consideração o atrito do disco e o torque máximo do motor em todas as situações de utilização do veículo.
Dificuldade nos câmbios robotizados
Se já é difícil o estabelecimento da modulação ideal para o sistema comum com pedal da embreagem, imagine o sistema robotizado, sem pedal, que deve estabelecer todos os parâmetros exigidos gravados no software gerenciador, como o tempo de deslizamento do disco na partida, no plano, em rampas e nas trocas de marcha.
A situação mais crítica para a integridade do sistema é, sem dúvida alguma, imobilizar o veículo em rampas controlando o acelerador e o pedal da embreagem, com grande deslizamento do disco. Não há sistema que resista. No caso dos robotizados, imobilizar o veiculo controlando somente o pedal do acelerador, algo que chega a ser intuitivo, é pedir para destruir a embreagem.
Existem sistemas com discos mergulhados em óleo, as ditas embreagens molhadas, que resistem bem mais aos maus tratos, mantendo temperaturas mais baixas de funcionamento. Os câmbios automáticos com conversor de torque são certamente os menos críticos neste aspecto, embora sendo os mais caros para o consumidor.
Temos um exemplo recente, o Ford PowerShift da Ford, robotizado dupla-embreagem, estado da arte em projeto de câmbio robotizado e que foi mal explicado pela fabricante. Uma simples recomendação de como dirigir feita na entrega do veículo pela concessionária e/ou no manual do proprietário, teria evitado tantos problemas de mau uso gerados no campo. Por exemplo, “Em rampas, não mantenha o veiculo imobilizado modulando o acelerador, use o freio”.
Minha opinião particular é não mexer em time que está ganhando, como diz conhecido ditado. As modernas caixas automáticas epicíclicas com conversores de torque menores e mais eficientes, passando para neutro com o veículo parado e diminuindo o deslizamento nas trocas de marcha, são as melhores opções, e mesmo sendo mais caras, são muito mais duráveis, amortizando a maior despesa inicial ao longo do tempo.
As robotizadas, com seus possíveis modos de falha, requerem alto grau de confiança em seus projetos, o que acaba não compensando em termos de custo-benefício. Fazer robotizadas “à prova de erro” fica muito caro para o fabricante e obviamente para o consumidor.
Mesmo que a Ford tenha feito correções no PowerShift e, segundo se sabe, os problemas acabaram, a imagem desse câmbio ficou irremediavelmente desgastada, infelizmente. Tanto que no afã de “apagar o passado” o nome do câmbio nas especificações agora é apenas “automático sequencial”, e o novo EcoSport recebeu um câmbio automático epicíclico, também de seis marchas.
CM