Um fracasso completo. Não há outra maneira de encarar a Squire Car Manufacturing Company. A empresa durou menos de três anos, somente sete carros foram produzidos, e nem todos eles foram efetivamente vendidos. Levou em sua falência todo o dinheiro do seu fundador e seus sócios. O pobre do fundador, por sinal, morreria não muito tempo depois, aos 30 anos de idade, vítima de um bombardeio alemão à fábrica que então o empregava, a Bristol Aeroplane Company. Uma história triste que possivelmente, imaginava sua família, seria esquecida em breve e nunca mais mencionada. Só que não.
O Squire 1 ½ litre ainda é, neste longínquo, eletrificado e autônomo 2018, um mito, um clássico sussurrado entre os entusiastas desde sempre, uma história incrível e famosa. Em 2016, o autor Jonathan Wood publicou mais um livro sobre o assunto, um enorme compêndio de mais de 400 páginas sobre a história de Adrian Squire e seu carro, o que mostra que o interesse na marca não mostra sinais de diminuir. O livro inclusive ganhou o Prêmio Cugnot, o Oscar da literatura automobilística, no ano de seu lançamento. E mais: o carro de Val Zethrin (mais sobre ele mais adiante), um recém-restaurado modelo de entre-eixos longo com uma belíssima carroceria tourer de Ranalah, encontra-se à venda pela bagatela de um milhão e meio de dólares. Raramente um Squire é colocado à venda, mas quando acontece, é notícia importante para os colecionadores mundo afora. Esquecido? Nem um pouco.
Sonhos da juventude
Todo entusiasta, quando jovem, sonhou em criar seu próprio carro. É sonho recorrente para os de nosso credo, mas um que na vasta maioria das vezes é esquecido por força da realidade de uma época em que cada vez mais o desenho de um carro é gerido não por engenheiros e técnicos, mas sim por políticos e burocratas dos governos mundo afora. Mas criar um carro de verdade, original, de sua cabeça, antes de completar 25 anos, sempre foi raro, mesmo quando a criação em si era o que bastava, e lei nenhuma regia a arte.
Mas exceções existem, claro. Gordon Murray, por exemplo, pode ter criado o McLaren F1 já aos seus 45 anos de idade, mas desde muito jovem rabiscava em cadernos de escola um carro onde o motorista estava ao centro e dois ocupantes um pouco atrás, ao lado. Exemplos de inspiração precoce como esse abundam na história, mas nenhum deles é tão pleno quanto o de Adrian Morgan Squire.
Nascido de uma família de posses (mas não nobre; seu pai e, incomum então, sua mãe, eram engenheiros) em 1909, Adrian desde cedo mostrou um interesse incomum e precoce por automóveis. Antes de completar 10 anos, escrevia uma revista que chamava de “All Machinery Bimonthly” (Todo maquinário bimestral), uma brincadeira de criança guardada até hoje pela família que surpreende pelo detalhe técnico. No segundo grau, numa escola católica de elite, faz vários amigos interessados por automóveis, algo que o ajudaria a realizar no futuro próximo seu mais recorrente sonho: o carro esporte que já existia em sua cabeça, chamado Squire 1 ½ litre.
Em 1925, aos 16 anos, coloca no papel o seu sonho. Era um folheto de venda que colocava em detalhes o que pretendia. Um carro de dois lugares, com freios e estabilidade de primeira linha, obtidos a partir de um centro de gravidade bem baixo. O motor de quatro cilindros em linha teria exatos 1.496 cm³ a partir do diâmetro e curso de 68 x 103 mm. Olhando hoje o folheto feito à mão, parece incrível que ele tenha conseguido realizá-lo tão fielmente. Muitos de nós imaginamos carros na infância, mas logo se tornam tão esquecidos quanto o café da manhã da semana passada.
Adrian Squire, porém, era obstinado como poucos. Seu biógrafo Jonathan Wood o definiu como “Um perfeccionista numa era imperfeita”, o que, por outro lado, selaria seu destino de fracasso. Uma pessoa diferente, obviamente, e uma combinação de atributos que aparece claramente no carro que leva seu sobrenome.
A British Anzani
Mas voltando ao ano de 1925, deixemos de lado por um momento o jovem Adrian desenhando seu famoso folheto de seis páginas nos intervalos das aulas em Hertfordshire, e vamos um pouco mais ao sul, para a cidade de Londres, sede da British Anzani Engine Company.
A empresa, originalmente uma agência do fabricante francês de motores aeronáuticos fundado pelo italiano Alessandro Anzani, havia falido recentemente e estava sendo reorganizada com o nome de British Vulpine Engine Company, sob o comando de Gustave McLure (que depois teria fama na Riley). Mas a tal reorganização e o novo nome não resolveram muita coisa, e em um ano a empresa flertava com a falência novamente.
Entra em cena então alguém que seria um comprador fiel dos motores Anzani de quatro cilindros em linha e 1,5 litro: Archibald “Archie” Goodman Frazer-Nash, famoso pelos carros que levavam seu sobrenome. A empresa é refinanciada por Archie e seus sócios, nomeada Anzani novamente, (“British Anzani Engineering Company” agora) e finalmente consegue alguma estabilidade vendendo motores V-2 motociclísticos para a Morgan usar em seus 3-rodas, e o quatro em linha que era usado nos Frazer Nash e outros fabricantes menores.
Quando chega 1929, Archie Frazer-Nash abandona suas empresas por motivos de saúde. H.J. Aldington se torna o novo dono da AFN Ltd, e surpreendentemente começa a usar motores Meadows nos Frazer Nash. Além disso, a Morgan começa a adotar os modernos V-2 JAP em seus carros, em substituição aos Anzani. A British Anzani entra de novo numa situação ruim de vendas, e flertando novamente com a bancarrota.
Chega à empresa então o engenheiro T.D. Ross, com a missão da diretoria de reverter a situação. Ross, vindo da Austin, percebe que as vendas dos 4 em linha de 1,5 litro se concentravam basicamente nos fabricantes de carros esporte. Compradores de carros esporte esperam alta potência específica, e alta tecnologia, e acreditou que era este o motivo da queda das vendas do Anzani de válvulas laterais frente a, por exemplo, o Meadows 4E de válvulas no cabeçote.
A ideia de Ross era simples: desenvolver um motor de competição de quatro cilindros em linha e 1,5 litro. Um motor no topo do estado da arte tecnológico de então. Além de vender o motor para carros de competição, poderia se fazer uma versão mais mansa para os carros esporte de rua. A competição faria a fama do motor, e as vendas em carros esporte, o dinheiro para melhorar a situação financeira da Anzani.
Foi iniciado o desenvolvimento do motor, que viria ser conhecido como Anzani R1. Era uma unidade moderna realmente: Quatro mancais, duplo comando de válvulas no cabeçote acionados por engrenagens, câmara de combustão hemisférica, vela central. A versão inicial, de competição, com dois Solex duplos, dava 100 cv. A versão de rua teria 70 cv. Mostrado à imprensa em 1933, porém, não foi o sucesso esperado, e em meados de 1934 ainda não existia um pedido sequer.
Mas o mais interessante aqui é a cilindrada do motor Anzani R1, exatamente 1.496 cm³. Lembram do folheto do jovem Squire? O diâmetro e curso eram ligeiramente diferentes (69 x 100 mm no R1), mas uma coincidência incrível. O que nos leva de volta ao jovem Adrian.
A Squire Car Manufacturing Company
Ao sair da escola, Adrian Squire começa a estudar engenharia elétrica no Colégio Faraday House, mas logo, inquieto, abandona os estudos para trabalhar como aprendiz na Bentley. Sua estadia na empresa é curta, porém, e em setembro de 1929 é empregado na M.G. em Abdington.
Logo em seguida, Squire recebe uma herança generosa. Imediatamente, entra em contato com um colega de escola, G.F.A. ‘Jock’ Manby-Colegrave. Colegrave era jovem como Squire, e também tinha uma vasta herança que garantiria uma vida tranquila sem necessidade de trabalho. Mas foi infectado desde cedo pelo entusiasmo por carros e pelo sonho de seu amigo, então ambos resolvem arregaçar as mangas e fazer algo a respeito. O terceiro sócio, o vendedor de carros Reginald Slay, era chamado de “Tio Reginald” pelos outros dois, em referência a sua idade mais avançada. Slay tinha 26 anos de idade…
É comprado um galpão em Remenham Hill, em uma linda e tranquila rua da cidade de Henley-on-Thames, com árvores dos dois lados e um ambiente bucólico e agradável. Lá, além da manutenção e preparação dos carros de competição de Jock Manby-Colegrave, e da operação de um posto de gasolina, é desenvolvido o sonho de Adrian Squire.
Adrian inicialmente planejava criar um motor próprio, mas ao ver na imprensa uma reportagem sobre o Anzani R1, percebe que existia uma maneira mais fácil de chegar onde queria. Alguém tinha desenvolvido um motor que batia com suas especificações quase a risca, e ele estava à venda!
Em reunião com T.D. Ross na Anzani, porém, Squire fez um pedido que, temia ele, pudesse impedir o negócio: queria chamar o motor de Squire, e ninguém poderia saber que se tratava de uma unidade comprada. Ross, obviamente, com sérias dificuldades de vendas de seu caro e sofisticado motor, respondeu que se ele pagasse por eles, podia chamá-lo do que bem quisesse. A Anzani inclusive modificaria os moldes de fundição das tampas do cabeçote para que o nome “Squire” aparecesse nelas. Nas reportagens de época, em nenhum momento o motor é identificado como Anzani. Além disso, Squire impõe mais uma importante modificação: um compressor David Brown (sim, o mesmo da Aston Martin) tipo Rootes. Com ele, o motor de rua daria generosos 110 cv.
O carro, que seria apresentado em 1934 como o “Squire 1 1/2 Litre”, era realmente algo especial. Como imaginado em 1925, era extremamente baixo, em busca de um centro de gravidade também baixo. Dois eixos rígidos, é claro, mas o traseiro era underslung, eixo em cima da mola e não embaixo, e amortecedores Houdaille. O chassi era extremamente rígido, com reforços cruciformes localizados, para uma base sólida para o trabalho das suspensões. A direção usava uma caixa Marles Weller.
Os freios eram enormes tambores de 15 1/8 de polegada (385 mm), que tomavam praticamente todo diâmetro interno das rodas, que eram raiadas Rudge-Witworth de 18″ com fixação central por porca-borboleta, apertada ou retirada com martelo. O sistema de freio era todo desenvolvido por Squire, e usava acionamento Lockheed, mas todo o resto do sistema era sob medida para o carro. Era um dos pontos altos: a empresa afirmava que conseguia parar o carro em 6 metros a partir de 50 km/h. Os freios eram tão fortes que trincavam os suportes de mola, que tiveram que ser reforçados retroativamente em carros já vendidos.
A estabilidade em curvas também era lendária. Disse a revista Motorsport: “Curvas rápidas podem ser feitas a 70 mph (112 km/h) constantes, o chassi tão sereno que parece seguro por uma corda invisível ao centro da curva… não existem os deslizamentos controlados tão comuns em outros carros desta categoria aqui, pois o Squire apenas se agarra ao chão sem nenhum drama.” A revista também cronometrou o carro em 10 seg no 0-60 mph (0-96,5 km/h), e atingiu 160 km/h de final. Números comuns hoje, mas em 1934, coisa de Bugatti & cia.
O câmbio era um Wilson de quatro marchas pré-seletivo. Um prercursor dos semi-automáticos, com este tipo de câmbio seleciona-se sempre a próxima marcha antes de precisar efetivamente dela, em um pequeno seletor elétrico. Quando quer a marcha pré-selecionada, é só acionar a embreagem e pronto. Num tempo sem sincronizadores, era uma delícia, e coisa de outro mundo em termos de sofisticação. Mas como tudo neste carro, caríssimo.
O carro era extremamente bem cuidado em todos os detalhes, do painel de instrumentos ao radiador, um belíssimo desenho reclinado e baixo, feito com todo cuidado, e de enorme capacidade visto de hoje; na época, quase nenhum carro tinha ventilador auxiliar, e portanto o tamanho do radiador era uma tentativa de evitar superaquecimento em trânsito pesado. Havia um grande reservatório de óleo de 2 galões ingleses/9,1 litros atrás do painel de instrumentos também, coisa de carro esporte da época: o óleo dali era usado para lubrificar as suspensões, ou para completar o óleo do motor (cujo cárter também comportava 2 galões de lubrificante).
Naquela época, carros esporte costumavam perder óleo pelos respiros e outros orifícios em curvas e competições, o que podia ser remediado com este reservatório secundário, sem parar o carro. Um luxo!
Dois entre-eixos foram oferecidos, 2.590 e 3.124 mm, o segundo possível de comportar 4 pessoas. As carrocerias inicialmente eram Vanden Plas, sport (2 lugares) e tourer (4 lugares). Toda essa qualidade vinha com um preço, claro: a 1.220 libras esterlinas, era caro como um Rolls-Royce de sete litros.
Com o tempo, o preço diminuía numa tentativa de melhorar as vendas, muito pela adoção de outras carrocerias mais baratas, de Ranalah e Markam. Em 1936 um chassi curto com a carroceria mais barata (o “Skimpy” de Markam) podia ser comprado por menos de 700 libras. Uma redução monumental, mas ainda assim, um carro caríssimo, sete vezes o preço de um Austin Seven. Com apenas sete carros vendidos em dois anos, a empresa voluntariamente fecha as portas em 1936.
Adrian Squire, brigado com a família que o acusava de gastar toda sua herança para nada (e sem dividir com a parentada, claro), vai trabalhar como engenheiro na Lagonda. Logo depois, pega mulher e filhos e se muda para Filton, onde vai trabalhar como engenheiro da Bristol Aeroplane Company, um lugar fervilhando de atividade as vésperas de mais uma guerra mundial. Filton, muito por causa da Bristol, claro, é um dos alvos dos bombardeios alemães na Inglaterra em 1940. Num desses ataques, em 20 de setembro Adrian Morgan Squire é atingido e vem a falecer. Ainda não completara 31 anos de idade.
Valfried Zethrin
Mas sua marca quase consegue sobreviver. Val Zethrin, um entusiasta dos Squire, comprara o primeiro carro com chassis longo a ser produzido, com uma carroceria tourer de Ranalah. Com ele, participara de ralis e encontros em Brooklands, inclusive batendo um recorde no famoso circuito (categoria até 1,5 litro), a uma velocidade média de 140 km/h.
No fechamento da empresa em 1936, Zethrin compra todas as peças de reposição, dispositivos e moldes da pequena fábrica. Começa a fabricar artesanalmente mais alguns carros, todos chassis curto, com uma nova carroceria assinada por Corsica. Como era um usuário dos Squire, resolve gastar energia para resolver os problemas do Anzani R1, principalmente barulho das engrenagens de acionamento dos comandos e dificuldades de ajuste de folga de válvulas. Desenvolve novo trem de engrenagens e tuchos de válvulas diferentes, melhorando muito algo que já era muito bom. Três carros são feitos de 1937 até o início da guerra.
No pós-guerra Zethrin tenta retomar a produção, mas sem novos blocos de motor e cabeçotes, se torna impossível. Um esforço é feito para encontrar os moldes na Bélgica, onde os fundidos brutos eram fabricados, mas sem sucesso. Sem condições de financiar moldes novos, os Squire de Valfried Zethrin param também de ser produzidos.
O que seria dela se os moldes não tivessem desaparecido? Teríamos hoje novos Squire em produção feito os Morgan e tantas outras marcas pequenas inglesas? Quem sabe? O fato é que o natimorto Squire ainda hoje provoca emoção em todos que veem suas baixas e elegantes linhas. E mais ainda em quem tem a oportunidade única de dirigi-los.
MAO